Trabalhávamos
no mesmo andar, em salas diferentes, para o mesmo patrão impessoal,
e apenas nos víamos de passagem, um dia ou outro. O cumprimento de
cabeça resumia nossas relações. Pedi-lhe uma vez que me decifrasse
a letra alemã de uma canção de Caymmi. Seu português era
estropiado, quanto à construção e à prosódia, apesar do longo
tempo de Brasil. Exprimia-se melhor em formas e linhas. Escultor
laureado, desenhista de traço exato, vivia à margem dos grupos que
se chocam ou se exibem na passarela. Era considerado “moderno”,
até o dia em que o Salão dito moderno lhe impugnou os trabalhos.
Era principalmente solitário, fechado em si, canhestro, desengonçado
em sua pobreza, vagamente áspero.
Que
é que eu pensava dele, depois de tantos anos de cumprimentos no
elevador, e de duas ou três frases sem conteúdo afetivo? Nada. Um
nome estrangeiro, a presença quase estrangeira em sua frialdade.
E
chegando ao trabalho me dizem que ele morreu na véspera. Sabia-o
doente, imaginei a morte comum e nivelada, na cama, entre injeções.
Não fora assim. Era domingo sem sol, desses que o jornal anuncia com
a informação: “Não haverá praia para o carioca”. Para um
europeu haveria sempre praia, e ele, metido no short, lá se foi ao
mar de Ipanema, onde eu o figuraria calado, mirando o volume dos
corpos, a composição plástica das nuvens, ou apenas e animalmente
fruindo a água e o vento alheio ao resto do mundo, este que se
danasse.
Eis
que alguém está se afogando naquele mar difícil, e ele se atira
para salvar o desconhecido. Bom nadador, logo o consegue. Mas já de
volta à areia, enquanto o outro se recupera, o esforço físico o
abate, e ele falece a caminho do Posto de Socorro do Lido, na
ambulância. Tinha 62 anos, o coração não resistiu à prova. (O
médico lhe recomendara tanto que não se gastasse, nem sequer
jogasse peteca.)
Passa
então a ser um cadáver de indigente, com destino certo para a
Faculdade de Medicina, pois não tem parente algum no Rio. É aí que
a repartição, alertada, toma conta dele, torna-se sua família,
luta com as autoridades para vestir o corpo e sepultá-lo. Seu
pequeno apartamento fora interditado pela polícia, já se passaram
24 horas, e o delegado não chega, para autorizar a entrada no
domicílio do morto. Afinal o comissário se compadece, abre-se a
porta, o melhor terno vai substituir o short, e, depois da autópsia,
no triste, vulgar e sinistro Instituto Anatômico, sob flores, o
cadáver parece transbordar um pouco do caixão, como se o gesto
final de sacrifício lhe aumentasse a dimensão humana.
Quatro
mulheres, de idades diferentes, cercam-no em silêncio. É outra
pequena família que se forma, e que irá dissolver-se daí a pouco.
Não há como as mulheres para virem, não se sabe de onde, pousarem
um instante junto a alguém imóvel, criarem em torno dele uma
atmosfera de carinho, que a simples solidariedade dos homens não
saberia compor. A mais jovem alisa as mãos cruzadas do escultor,
beija-as suavemente, pede que não fechem tão depressa o caixão. O
pequeno grupo se movimenta, há um cadeado que falta e que é
procurado e achado entre as flores. Quase ninguém soube, os jornais
não noticiaram, o fluxo geral não mudou o seu ritmo, enquanto um
homem dava sua vida para salvar a de um desconhecido, e esse homem
era um artista, espécie de gente muito afeita ao egoísmo, na
opinião dos entendidos.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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