– Tom,
toda pessoa muito conhecida, como você, é no fundo o grande
desconhecido. Qual é a sua face oculta?
– A
música. O ambiente era competitivo, e eu teria que matar meu colega
e meu irmão para sobreviver. O espetáculo do mundo me soou falso. O
piano no quarto escuro me oferecia uma possibilidade de harmonia
infinita. Esta é a minha face oculta. A minha fuga, a minha timidez
me levaram inadvertidamente, contra a minha vontade, aos holofotes do
Carnegie Hal. Sempre fugi do sucesso, Clarice, como o diabo foge da
cruz. Sempre quis ser aquele que não vai ao palco. O piano me
oferecia, de volta da praia, um mundo insuspeitado, de ampla
liberdade – as notas eram todas disponíveis e eu antevi que se
abriam os caminhos, que tudo era lícito, e que poderia ir a qualquer
lugar desde que fosse inteiro. Subitamente, sabe, aquilo que se
oferece a um menor púbere, o grande sonho de amor estava lá e este
sonho tão inseguro era seguro, não é Clarice? Sabe que a flor não
sabe que é flor? Eu me perdi e me ganhei, enquanto isso sonhava pela
fechadura com os seios de minha empregada. Eram lindos os seios dela
através do buraco da fechadura.
– Tom,
você seria capaz de improvisar um poema que servisse de letra para
uma canção? Ele assentiu e, depois de uma pequena pausa, me ditou o
que se segue:
Teus
olhos verdes são maiores que o mar.
Se
um dia eu fosse tão forte quanto você eu te desprezaria e viveria
no espaço.
Ou
talvez então eu te amasse.
Ai!
que saudades me dá da vida que nunca tive!
– Como
é que você sente que vai nascer uma canção?
– As
dores do parto são terríveis. Bater com a cabeça na parede,
angústia, o desnecessário do necessário, são os sintomas de uma
nova música nascendo. Eu gosto mais de uma música quanto menos mexo
nela. Qualquer resquício de savoir-faire me apavora.
–
Gauguin, que não é meu predileto, disse
uma coisa que não se deve esquecer, por mais dor que ela nos traga.
É o seguinte: “Quando tua mão direita estiver hábil, pinta com a
esquerda; quando a esquerda ficar hábil, pinta com os pés”. Isso
responde ao seu terror do savoir-faire?
– Para
mim a habilidade é muito útil mas em última instância a
habilidade é inútil. Só a criação satisfaz. Verdade ou mentira,
eu prefiro uma forma torta que diga, do que uma forma hábil que não
diga.
– Você
é quem escolhe os intérpretes e os colaboradores?
–
Quando posso escolher intérpretes,
escolho. Mas a vida veio muito depressa. Gosto de colaborar com quem
eu amo, Vinícius, Chico Buarque, João Gilberto, Nílton Mendonça,
etc. E você?
– Faz
parte de minha profissão estar mesmo sempre sozinha, sem intérpretes
e sem colaboradores. Escute, todas as vezes em que eu acabei de
escrever um livro ou um conto, pensei com desespero e com toda a
certeza de que nunca mais escreveria nada. Você, que sensação tem
quando acaba de dar à luz uma canção?
–
Exatamente a mesma. Eu sempre penso que
morri depois das dores do parto.
Veio
a cerveja.
– A
coisa mais importante do mundo é o amor, a coisa mais importante
para a pessoa como indivíduo é a integridade da alma, mesmo que no
exterior ela pareça suja. Quando ela diz que sim, é sim, quando ela
diz que não, é não. E durma-se com um barulho desses. Apesar de
todos os santos, apesar de todos os dólares. Quanto ao que é o
amor, amor é se dar, se dar, se dar. Dar-se não de acordo com o seu
eu – muita gente pensa que está se dando e não está dando nada –
mas de acordo com o eu do ente amado. Quem não se dá, a si próprio
detesta, e a si próprio se castra.
Amor
sozinho é besteira.
– Houve
algum momento decisivo na sua vida?
– Só
houve momentos decisivos na minha vida. Inclusive ter de ir, aos 36
anos, aos Estados Unidos, por força do Itamarati, eu que gostava já
nessa época de pijama listrado, cadeira de balanço de vime, e o céu
azul com nuvens esparsas.
–
Muitas vezes, nas criações em qualquer
domínio, podem-se notar tese, antítese e síntese.
Você
sente isso nas suas canções? Pense.
– Sinto
demais isso. Sou um matemático amoroso, carente de amor e de
matemática.
Sem
forma não há nada. Mesmo no caótico há forma.
– Quais
foram as grandes emoções de sua vida como compositor e na sua vida
pessoal?
– Como
compositor nenhuma. Na minha vida pessoal, a descoberta do eu e do
não-eu.
– Qual
é o tipo de música brasileira que faz sucesso no exterior?
– Todos
os tipos. O Velho Mundo, Europa e Estados Unidos estão completamente
exauridos de temas, de força, de virilidade. O Brasil, apesar de
tudo, é um país de alma extremamente livre. Ele conduz à criação,
ele é conivente com os grandes estados da alma.
Clarice
Lispector, in A descoberta do mundo
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