Meu
Deus, como o amor impede a morte! Não sei o que estou querendo dizer
com isso: confio na minha incompreensão, que tem me dado vida
instintiva e intuitiva, enquanto que a chamada compreensão é tão
limitada. Perdi amigos. Não entendo a morte. Mas não tenho medo de
morrer. Vai ser um descanso: um berço enfim. Não a apressarei,
viverei até a última gota de fel. Não gosto quando dizem que tenho
afinidade com Virginia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o
meu primeiro livro): é que não quero perdoar o fato de ela se ter
suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com
ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a verdade. E, para
sofrer menos, embotar-me um pouco. Pois não posso mais carregar as
dores do mundo. Que fazer, se sinto totalmente o que as outras
pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais
força. Vou viver um pouco na minha. Vou me impermeabilizar um
pouco mais. – Há coisas que jamais direi: nem em livros e muito
menos em jornal. E não direi a ninguém no mundo. Um homem me disse
que no Talmude falam de coisas que a gente não pode contar a muitos,
há outras a poucos, e outras a ninguém. Acrescento: não quero
contar nem a mim mesma certas coisas. Sinto que sei de umas verdades.
Mas não sei se as entenderia mentalmente. E preciso amadurecer um
pouco mais para me achegar a essas verdades. Que já pressinto. Mas
as verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não, nem pensem
que vou falar em Deus: é um segredo meu.
Está
fazendo um lindo dia de outono. A praia estava cheia de um vento bom,
de uma liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava
de ninguém. Preciso aprender a não precisar de ninguém. É
difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar
estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa
calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O
imprevisto me fascina.
Com
duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de
existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não
dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu. É
tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser
ditas, é tão silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do
encontro entre duas almas? É dificílimo contar: nós estávamos nos
olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só
ser. Esses momentos são o meu segredo. Houve o que se chama de
comunhão perfeita. Eu chamo isso de: estado agudo de felicidade.
Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano
mais alto de humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais
tive. Só que depois… Depois eu percebi que para essas pessoas
esses momentos de nada valiam, elas estavam ocupadas com outras. Eu
estivera só, toda só. É uma dor sem palavra, de tão funda. Agora
vou interromper um pouco para atender o homem que veio consertar o
toca-discos. Não sei com que disposição voltarei à máquina.
Música não ouço há bastante tempo pois estou procurando me
dessensibilizar. Mas um dia desses fui pegada desprevenida, ao ver o
filme Cada um vive como quer. Tinha música e eu chorei. Não
é vergonha chorar. É vergonha eu contar em público que chorei.
Pagam-me para eu escrever. Eu escrevo, então.
Pronto,
já voltei. O dia continua muito bonito. Mas a vida está muito cara
(isso por causa do preço que o homem pediu pelo conserto). Preciso
trabalhar muito para ter as coisas que quero ou de que preciso. Acho
que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou escrever para
este jornal. Eu queria um emprego de poucas horas por dia, digamos
duas ou três horas, e que me fizesse (o emprego) lidar com pessoas.
Tenho jeito para isso, embora pareça um pouco ausente às vezes.
Mas, quando estou com uma pessoa verdadeira, fico verdadeira também.
Se vocês pensam que vou recopiar o que estou escrevendo ou corrigir
este texto, estão enganados. Vai é assim mesmo. Só que lerei para
corrigir erros datilográficos.
A
propósito de uma pessoa de quem estou me lembrando agora e que usa
uma pontuação completamente diferente da minha, digo que a
pontuação é a respiração da frase. Acho que já disse isso uma
vez. Escrevo à medida de meu fôlego. Estarei sendo hermética?
Porque parece que em jornal se tem de ser terrivelmente explícito.
Sou explícita? Pouco se me dá.
Agora
vou interromper para acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou
talvez pare por aqui mesmo.
Voltei.
Estou agora pensando em tartarugas. Quando escrevi sobre bichos,
disse, de pura intuição, que a tartaruga era um animal
dinossáurico. Depois é que vim a ler que é mesmo. Tenho cada uma.
Um dia vou escrever sobre tartarugas. Elas me interessam muito.
Aliás, todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de
maravilhamento. Parece que, se fomos modelados, sobrou muita matéria
energética e formaram-se os bichos. Para que serve, meu Deus, uma
tartaruga? O título do que estou escrevendo agora não devia ser Ao
correr da máquina. Devia ser mais ou menos assim, em forma
interrogativa: E as tartarugas? E quem me lê se diria: é
verdade, há muito tempo que não penso em tartarugas. Agora vou
acabar mesmo. Adeus. Até sábado que vem.
Clarice
Lispector, in Aprendendo a viver
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