quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Um pequeno deus noturno

Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. Gosto de ver as labaredas altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacudindo as fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas. É um espetáculo sempre idêntico. Todas as tardes, porém, venho até aqui e divirto-me e comovo-me como se o visse pela primeira vez. A semana passada Félix Ventura chegou mais cedo e surpreendeu-me a rir enquanto lá fora, no azul revolto, uma nuvem enorme corria em círculos, como um cão, tentando apagar o fogo que lhe abrasava a cauda.
Ai, não posso crer! Tu ris?!
Irritou-me o assombro da criatura. Senti medo mas não movi um músculo. O albino tirou os óculos escuros, guardou-os no bolso interior do casaco, despiu o casaco, lentamente, melancolicamente, e pendurou-o com cuidado nas costas de uma cadeira. Escolheu um disco de vinil e colocou-o no prato do velho gira-discos. “Acalanto para um Rio”, de Dora, a Cigarra, cantora brasileira que, suponho, conheceu alguma notoriedade nos anos setenta. Suponho isto a julgar pela capa do disco. É o desenho de uma mulher em biquíni, negra, bonita, com umas largas asas de borboleta presas às costas. “Dora, a Cigarra – Acalanto para um Rio – O Grande Sucesso do Momento”. A voz dela arde no ar. Nas últimas semanas tem sido esta a banda sonora do crepúsculo. Sei a letra de cor.

Nada passa, nada expira
O passado é
um rio que dorme
e a memória uma mentira
multiforme.
Dormem do rio as águas
e em meu regaço dormem os dias
dormem
dormem as mágoas
as agonias,
dormem.
Nada passa, nada expira
O passado é
um rio adormecido
parece morto, mal respira
acorda-o e saltará
num alarido.

Félix esperou que, com a luz, se apagassem também as últimas notas do piano. A seguir girou um dos sofás, quase sem fazer ruído, de forma a ficar voltado para a janela. Por fim sentou-se. Esticou as pernas num suspiro:
Pópilas! Pois vossa baixeza ri-se?! Extraordinária novidade...
Pareceu-me abatido. Aproximou o rosto e vi-lhe as pupilas raiadas de sangue. O bafo dele envolveu-me o corpo. Um calor azedo.
Péssima pele, a sua. Devemos ser da mesma família.
Estava à espera daquilo. Se conseguisse falar teria sido rude. O meu aparelho vocal, porém, apenas me permite rir. Assim, tentei atirar-lhe à cara uma gargalhada feroz, algum som capaz de o assustar, de o afastar dali, mas consegui apenas um frouxo gargarejo. Até à semana passada o albino sempre me ignorou. Desde essa altura, depois de me ter ouvido rir, chega mais cedo. Vai à cozinha, retorna com um copo de sumo de papaia, senta-se no sofá, e partilha comigo a festa do poente. Conversamos. Ou melhor, ele fala, e eu escuto. Às vezes rio-me e isso basta-lhe. Já nos liga, suspeito, um fio de amizade. Nas noites de sábado, não em todas, o albino chega com uma rapariga pela mão. São moças esguias, altas e elásticas, de finas pernas de garça. Algumas entram a medo, sentam-se na extremidade das cadeiras, evitando encará-lo, incapazes de disfarçar a repulsa. Bebem um refrigerante, golo a golo, e a seguir despem-se em silêncio, esperam-no estendidas de costas, os braços cruzados sobre os seios. Outras, mais afoitas, aventuram-se sozinhas pela casa, avaliando o brilho das pratas, a nobreza dos móveis, mas depressa regressam à sala, assustadas com as pilhas de livros nos quartos e nos corredores, e sobretudo com o olhar severo dos cavalheiros de chapéu alto e monóculo, o olhar trocista das bessanganas de Luanda e de Benguela, o olhar pasmado dos oficiais da marinha portuguesa nos seus uniformes de gala, o olhar alucinado de um príncipe congolês do século XIX, o olhar desafiador de um famoso escritor negro norte-americano, todos posando para a eternidade entre molduras douradas. Procuram nas estantes algum disco,
Não tens cuduro, tio?,
e como o albino não tem cuduro, não tem quizomba, não tem nem a Banda Maravilha nem o Paulo Flores, os grandes sucessos do momento, acabam por escolher os de capa mais garrida, invariavelmente ritmos cubanos. Dançam, bordando curtos passos no soalho de madeira, enquanto soltam um a um os botões da camisa. A pele perfeita, muito negra, úmida e luminosa, contrasta com a do albino, seca e áspera, cor-de-rosa. Eu vejo tudo. Dentro desta casa sou como um pequeno deus noturno. Durante o dia, durmo.
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

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