terça-feira, 11 de outubro de 2016

Ratos e homens (trecho inicial)

Alguns quilômetros ao sul de Soledad, o rio Salinas aproxima-se do sopé das colinas e fica bem profundo e verde. A água também é quente, por deslizar, reluzente, sobre as areias amarelas banhadas pelo sol antes de chegar à lagoa estreita. De um lado do rio, as encostas das colinas sobem até as montanhas Gabilan, fortes e rochosas, mas, do lado do vale, a água se faz acompanhar por uma fileira de árvores – chorões que se renovam verdejantes a cada primavera, segurando nos entroncamentos das folhas mais baixas os restos das enchentes de inverno; e plátanos com troncos e galhos cobertos de manchas, brancos e recurvados, que se arqueiam por sobre a lagoa. Na margem arenosa sob as árvores, uma grossa camada de folhas se aglomera tão seca que um lagarto que passe correndo por lá faz muito barulho. Lebres saem do bosque para se acomodar sobre a areia ao cair da noite, e a porção úmida das margens fica coberta com os rastros noturnos dos guaxinins, com as almofadinhas espaçadas das patas dos cães das fazendas, e com as pegadas em forma de V dos veadinhos que vão até ali beber água no escuro.
Há uma trilha entre os chorões e os plátanos, uma trilha bem desgastada pelos garotos que vêm das fazendas para nadar na lagoa, e desgastada pelos mendigos que descem cansados da estrada ao anoitecer para se aninhar perto da água. Na frente do tronco baixo e horizontal de um plátano gigante há uma pilha de cinzas formada por muitas fogueiras antigas; o lugar do tronco em que os homens costumam se sentar é liso.
O anoitecer de um dia quente fez com que uma brisa começasse a soprar por entre as folhas. A sombra ia subindo pelas montanhas, em direção ao topo. Nas margens arenosas, as lebres se acomodaram como se fossem pedrinhas cinzentas e esculpidas. E então, dos lados da autoestrada estadual, veio o som de passos sobre as folhas de plátano secas. As lebres saíram correndo em silêncio, em busca de abrigo. Uma garça que ali descansava saiu voando rio abaixo. Por um instante o lugar ficou sem vida, e então dois homens surgiram da trilha e passaram à clareira ao lado da lagoa verde.
Haviam caminhado em fila indiana pela trilha, e mesmo ali, em terreno aberto, continuavam um atrás do outro. Ambos usavam calças de brim e jaquetas de brim com botões de latão. Ambos usavam um chapéu preto disforme e ambos carregavam cobertores enrolados bem apertados, pendurados no ombro. O primeiro era pequeno e rápido, moreno de rosto, com olhos inquietos e traços bem definidos e fortes. Cada parte dele era bem definida: mãos pequenas e fortes, braços delgados, nariz fino e ossudo. Atrás dele vinha sua antítese, um homem enorme, sem formas definidas no rosto, com olhos grandes e claros, com ombros caídos e amplos, que caminhava pesadamente, arrastando um pouco os pés, da maneira como um urso arrasta as patas. Os braços não balançavam ao lado do corpo, apenas permaneciam soltos.
O primeiro homem parou de repente na clareira, e seu seguidor quase passou por cima dele. Tirou o chapéu, limpou a faixa interna com o indicador e sacudiu a mão para se livrar da umidade. Seu enorme companheiro deixou cair os cobertores, se jogou no chão e bebeu a água da superfície da lagoa verde; bebeu com goles compridos, fazendo barulho na água como se fosse um cavalo. O homenzinho parou em pé ao seu lado, nervoso.
Lennie! – disse com severidade. – Lennie, pelo amor de Deus, num bebe tanto assim.
Lennie continuou a beber ruidosamente. O homenzinho se abaixou e o sacudiu pelo ombro.
Lennie. Ocê vai se sentir mal, igual na noite passada.
Lennie enfiou toda a cabeça na água, com chapéu e tudo, então se sentou na margem e a água no chapéu pingou na jaqueta e escorreu pelas costas.
Foi bom – disse. – Bebe um pouco, George. Bebe um golão. – Sorriu alegremente.
George soltou a alça da trouxa e a colocou com cuidado no chão:
Num sei se essa água é boa – disse. – Parece meio cheia de lodo.
Lennie enfiou sua patarra na água e remexeu os dedos, fazendo com que a água espirrasse em pequenos jorros; anéis se formaram e chegaram ao outro lado da lagoa e então voltaram. Lennie ficou observando o trajeto:
Oia, George. Oia o que eu fiz.
George se ajoelhou ao lado da lagoa e bebeu com a mão em forma de concha, em porções rápidas.
O gosto é normal – reconheceu. – Mas num parece corrente. A gente nunca deve bebê água que num corre, Lennie – disse, inutilmente.
Ocê ia bebê água da sarjeta se tivesse com sede.
Jogou uma porção de água no rosto e a espalhou com a mão, sob o queixo e em volta do pescoço. Então recolocou o chapéu, deixou-se cair sentado no chão, colocou os joelhos perto do corpo e os abraçou. Lennie, que tinha observado tudo com atenção, imitou George com exatidão. Deixou-se cair sentado no chão, puxou os joelhos para perto do corpo e os abraçou, olhou para George para ver se tinha feito certo. Puxou o chapéu mais um pouco por sobre os olhos, para ficar igual ao chapéu de George.
George ficou olhando morosamente para a água. Seus olhos estavam vermelhos por causa do brilho do sol. Disse, bem bravo:
A gente bem que podia tê chegado direto na fazenda se aquele idiota daquele motorista de ônibus soubesse o que tava falando. “Só uma caminhadinha curtinha, saindo da estrada”, ele disse. “Só uma caminhadinha curtinha.” Que diabo, foi mais de seis quilômetro, isso sim! Ele não quis é pará na portera da fazenda, só isso. Preguiçoso dimais pra estacioná. Tô aqui pensando que ele deve de se achá bom dimais pra pará em Soledad também. Chuta a gente pra fora e fala “só uma caminhadinha curtinha, saindo da estrada”. Aposto que era mais que seis quilômetro. Que porcaria de dia quente.
John Steinbeck, in Ratos e homens

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