terça-feira, 18 de outubro de 2016

O eu fictício

A primeira vantagem do eu fictício a quem nos endereçamos é a de que ele realmente nos ouve. Ele está sempre a postos; nunca nos dá as costas. Não simula interesse; não é gentil. Ele não nos interrompe; deixa-nos falar. Não é só curioso, mas também paciente. Só posso falar aqui de minha própria experiência, mas espanta-me continuamente o fato de que exista alguém que me ouça com tanta paciência como eu a outros. Não se pense, contudo, que esse ouvinte torna as coisas mais fáceis para nós. Tendo o mérito de nos entender, em nada podemos enganá-lo. Não é só paciente, mas também malévolo. Não deixa passar nada, vê tudo. Registra o menor detalhe, e, assim que nos pusermos a dissimulá-lo, apontará para ele com veemência. Em toda a minha vida, já sexagenária, ainda não encontrei um interlocutor tão perigoso, mesmo tendo conhecido alguns que não causariam vergonha a ninguém. Talvez sua vantagem especial resida no fato de que tal interlocutor não defende nenhum interesse próprio. Ele tem todas as reações de uma pessoa, sem suas motivações. Não defende nenhuma teoria, nem se beneficia de nenhuma descoberta. Seu instinto para detectar manifestações de poder ou vaidade é enorme. Naturalmente, favorece-o o fato de nos conhecer a fundo.
Se percebe algo incorreto — insuficiência de conhecimento, fraqueza ou preguiça — cai sobre mim como um raio. Se digo “Isso não é importante; para mim importa algo mais que minha pessoa, importa o estado do mundo, tenho de advertir — eis tudo”, ele ri na minha cara. “Mesmo assim”, responde. Permito-me citá-lo textualmente aqui: “O erro de todos os benfeitores” — e esta palavra infame já me fere — “é que eles, apesar da responsabilidade que sentem e do bem que talvez realmente desejem, esquecem-se de desenvolver o instrumento que lhes permita conhecer os homens e compreendê-los em seus milhares de particularidades, rudes ou requintadas. Pois desses mesmos homens flui o que há de mais terrível, ordinário e perigoso em tudo o que acontece. Não há outra esperança de que a algo tão falso, simplesmente porque lhe é mais cômodo?”.
Ocorre que eu previra algo de terrível — entenda-se para o mundo — que, posteriormente, se confirmou com exatidão. Não tinha nada de melhor a fazer do que anotá-lo. Com isso, podia provar que já o havia antevisto muito tempo antes que acontecesse. Provavelmente pretendia com isso conferir-me o direito a futuras predições. Transcrevo aqui a resposta aniquiladora de meu interlocutor a essa minha pretensão; ela é mais importante que a deplorável vaidade da predição confirmada:
Aquele que adverte, o profeta, cujas predições se confirmam, é uma pessoa respeitada sem razão. Ele tornou as coisas fáceis demais para ele, deixando-se dominar pelos horrores que abomina, antes mesmo que estes se tornassem reais. Ele acredita que está advertindo; mas, comparada ao sofrimento que previu, sua advertência é sem valor. Ele será admirado por sua previsão, mas nada mais fácil. Quanto mais monstruosa sua previsão, tanto mais cedo ela se tornará verdade. Admirado deveria ser o profeta que prediz algo de bom. Pois isso, e tão somente isso, é que é improvável.
Elias Canetti, in A consciência das palavras

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