Ilustração: Viviane Fonseca
Foi
de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés
nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo.
Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
Um
grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente,
frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda,
três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me
nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum
amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele
homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu
cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi
grande dúvida.
Nenhum
se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem
olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada,
sopitados, constrangidos — coagidos, sim. Isso por isso, que o
cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo,
intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a
frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois
lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de
resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto
donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem
contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de
rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os
três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem,
para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço
até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara
amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse,
também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo
é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me
miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
Disse
de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que
passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se
mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não
estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava,
querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez
são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem
farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar
com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio,
mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
— “Eu
vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada...”
Carregara
a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de
canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do
cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de
melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o
alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os
ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas
— e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no
cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo,
ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto
meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana,
pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo
de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno,
mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência
podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café,
calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede
nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem
certeza.
—
“Vosmecê é que não me conhece.
Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra...”
Sobressalto.
Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com
dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também,
se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de
evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali,
antenasal, de mim a palmo! Continuava:
—
“Saiba vosmecê que, na Serra, por o
ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio
estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero
questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz,
muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado...”
Com
arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de
evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens;
pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as
feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não
me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho
indeciso. Redigiu seu monologar. O que frouxo falava: de outras,
diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos,
inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de
aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir
seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso,
no me iludir, ele enigmava. E, pá:
—
“Vosmecê agora me faça a boa obra de
querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado ...
faz-me-gerado ... falmisgeraldo ... familhas-gerado...? ”
Disse,
de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas,
o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua
presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a
desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me:
alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a
palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se
famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória
satisfação?
—
“Saiba vosmecê que saí ind’hoje da
Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra
mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...”
Se
sério, se era. Transiu-se-me.
— “Lá,
e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o
legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra
informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o
padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo
engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no
pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe
preguntei?”
Se
simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
—
Famigerado?
— “Sim
senhor...” — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos
vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava,
interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a
cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me
carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os
três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas,
Damázio:
—
“Vosmecê declare. Estes aí são de
nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...”
Só
tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o
verivérbio.
—
Famigerado é inóxio, é
“célebre”, “notório”, “notável”...
—
“Vosmecê mal não veja em minha
grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável?
É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”
— Vilta
nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
—
“Pois... e o que é que é, em fala de
pobre, linguagem de em dia-de-semana?”
—
Famigerado? Bem. É: “importante”,
que merece louvor, respeito...
—
“Vosmecê agarante, pra a paz das mães,
mão na Escritura?”
Se
certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu
sincero disse:
— Olhe:
eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora
destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...
— “Ah,
bem!...” — soltou, exultante.
Saltando
na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num
desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — “Vocês
podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição...” —
e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela,
aceitava um copo d’água. Disse: — “Não há como que as
grandezas machas duma pessoa instruída!” Seja que de novo, por um
mero, se torvava? Disse: — “Sei lá, às vezes o melhor mesmo,
para esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não...” Mas mais
sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — “A gente tem
cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a
mandioca...” Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez,
aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o
alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais,
o famoso assunto.
Guimarães
Rosa, in Primeiras estórias
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