“Convivem
sempre na burguesia uma grande multidão de naturezas fortes e
selvagens. Nosso Lobo do Estepe, Harry, é um exemplo característico.
Ele que se desenvolveu muito mais do que se espera de um burguês,
ele que conhece as delícias da meditação e também as sombrias
alegrias do ódio e do ódio contra si mesmo, ele que despreza a lei,
a virtude, o senso comum, é, no entanto, um prisioneiro forçado da
burguesia e não pode escapar a ela. E assim em torno do núcleo da
burguesia se sobrepõem amplas camadas de Humanidade, muitos milhares
de vidas e inteligências, cada uma das quais surgida certamente da
burguesia e disposta a uma vida sem reservas, mas que continua
dependente da burguesia por sentimentos infantis e um tanto
contagiada em sua debilidade pela intensidade vital; e embora
desterradas da burguesia, continuam de certo modo pertencendo a ela,
obrigadas a ela e a seu serviço, pois à burguesia assenta
perfeitamente o contrário da máxima do Grande: Quem
não está contra mim, está comigo.
Se examinarmos agora a alma do Lobo da Estepe, veremos que ele é
distinto do burguês por causa do alto desenvolvimento de sua
individualidade, pois toda a individualização superior se orienta
para o egotismo e propende portanto ao aniquilamento. Vemos que tem
em si um forte impulso tanto para o santo quanto para o libertino; no
entanto, não pode tomar o impulso necessário para atingir o espaço
livre e selvagem, por debilidade ou inércia, e permanece desterrado
na difícil e maternal constelação da burguesia. Esta é sua
situação no espaço do mundo e sua sujeição. A maior parte dos
intelectuais e dos artistas pertence a esse tipo. Só os mais fortes
entre eles ultrapassam a atmosfera da terra da burguesia e logram
entrar no espaço cósmico; todos os demais se resignam ou selam
pactos, pertencem a ela, reforçam-na e glorificam-na, pois em última
instância têm de professar sua crença para viver. A vida desse
infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um
infortúnio considerável e uma desventura, em cujo inferno seus
talentos engendram e frutificam. Os poucos que se libertaram buscam
sua recompensa no absoluto e sucumbem no esplendor. São os trágicos
e seu número
é pequeno. Mas os outros, os que permaneceram submissos, a cujo
talento a burguesia concede com frequência
grandes homenagens, a estes se abre um terceiro reino, um mundo
imaginário, mas soberano: o humor. Aos inquietos lobos da estepe, a
esses contínuos e terríveis pacientes, aos que está negado o apoio
necessário para o trágico, para subir ao espaço sideral, que se
sentem chamados para o absoluto e, no entanto, não podem nele viver;
para esses, quando seu espírito se fez duro e elástico na dor,
abre-se-lhes o caminho conciliante do humor. O humor é sempre um
pouco burguês, embora o verdadeiro burguês seja incapaz de
compreendê-lo. Em suas imaginárias esferas realiza-se o ideal
intrincado e multifacetado de todos os lobos da estepe; aqui é
possível não apenas celebrar o santo e o libertino ao mesmo tempo e
unir um pólo ao outro, mas também incluir os burgueses na mesma
afirmação. É possível estar-se possuído por Deus e sustentar o
pecador, e vice-versa, mas não é possível nem ao santo nem ao
libertino (nem a nenhum outro absoluto) afirmar aquele meio termo
fraco e neutro que se chama burguês. Somente o humor, a magnífica
descoberta dos que foram detidos em seu voo
para o mais alto, dos quase trágicos, dos infelizes superdotados, só
o humor (talvez o produto mais genuíno e genial da Humanidade)
atinge esse impossível e une todos os aspectos da existência humana
nos raios de seu prisma.”
Hermann
Hesse,
in O
lobo da Estepe
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