O
menino insinuou-se pela horta em pontinha de pé. Emudeciam as
cigarras à sua passagem, depois voltavam a rechinar. Agachou-se
entre as folhas de couve, depositou no chão a latinha de água.
Viera desde o riacho e, cheia como estava, sem derramar uma gota.
Sentado,
modelou pelotas para o estilingue. Molhando um bocado de barro preto,
rolava-o na palma da mão. Uma cigarra ali perto, iludida com o
silêncio e alucinada pelo brilho do caco de vidro, chiou bem alto.
Ele não ouvia; girando as bolotas, dispostas uma ao lado da outra,
pensava em Estacha.
Havia
cinco dias na casa, único vestido desbotado e quase transparente de
tão gasto.
Magra
e pálida, surpreendeu-a devorando o resto dos pratos. Antes de
dormir, lavava os pés, uma crosta escura no calcanhar, os pés
incansáveis que o menino seguia por todos os caminhos. Cada noite
ela enxaguava o vestido, pendurado a secar no arame sobre o fogão.
Silêncio na casa, o menino saltava da cama, ia esfregar a cabeça no
vestido amarelo.
Pela
manhã ela recolhia braçadas de lenha, empilhava-a ao lado do fogão
e batia o pó da roupa: não saíam as duas pintas pretas do peito.
Ao ver o menino, prendia o vestido com as mãos, apertava os joelhos:
— Conto
para tua mãe. Olhe que eu conto.
Não
contou que, lavando roupa no riacho, ele a espreitava. Escondido
entre as moitas:
“Psiu,
psiu...” Atirando uma das trancas para trás, sempre a malhar o
pano na tábua, olhava-o sem escândalo, quem sabe um pouco
deslumbrada.
Na
volta, a capoeira com seu bosque escuro. Sabia que era perseguida e
vinha a correr, a bacia de roupa no braço.
— Quer
morango? — o menino de pernas abertas cortou-lhe o caminho.
— Está
verde.
— Dois
madurinhos — ofereceu a mão fechada. — Quer?
—
Mentira.
A mão vazia.
Estendeu
a mão e, para a acariciar, abriu os dedos.
— Conto
para tua mãe.
Largar
a bacia e sair correndo? Chegasse sem ela, a mãe do menino havia de
mandá-la embora. Daí ele viu o caco de vidro.
— Me
pegue, eu te corto!
Foi
erguer-lhe o vestido, ela o atingiu com o vidro. Não doeu, uma
coceguinha no dedo ferido.
— Viu
o que fez? — ele se lamentou, o sangue era doce e quente.
— Me
deixa que tua mãe me surra.
O
pedaço de vidro caído entre os dois. Ela começou a chorar — as
lágrimas rolavam dos olhos iguais a pingos de chuva na vidraça.
—
Polaca
é fria! — tirou o dedo da boca para a xingar. Ela se afastava sem
olhar para trás, curva da do outro lado da bacia. — Polaca fria!
Naquela
manhã, esperando por ela na horta, onde viria colher verdura para o
almoço, o menino rematou as pelotas. Enquanto secavam ao sol,
deitou-se de costas, mãos na nuca — ao arrepio do vento faiscavam
as folhas da laranjeira. Pertinho do nariz fervia uma tropa de
formigas, lavadeiras de trouxa na cabeça.
Virou
as bolotas, algumas tinham rachado e jogou-as fora. Ouviu a cancela
que rangia.
Estacha
a deixava aberta... Devagar espiava os canteiros, tão aflita que
esmagou batalhão de formigas. O menino agarrou o pé, torcia a perna
e ela gemeu de dor. Caules de couve partiam-se com estrondo quando
eles rolavam por cima. Ela, a mais forte, deixou cair os tiraços —
quatro pés descalços espalharam as bolinhas de barro.
Jaziam
lado a lado, cuidosos de não se tocarem, olhos perdidos no manso
embalo das nuvens. O menino sentou-se primeiro, a guardar as pelotas
no saquinho de pano. Estacha ergueu-se, deu-lhe as costas, bateu o pó
do vestido. Ao chegar à cancela, voltou para colher a verdura. Ele a
olhou, ela não. Tão vagarosa, as trancas nem buliam no ombro. As
formigas refizeram a correição. Ali perto ziziou a cigarra.
Dalton
Trevisan, in Novelas nada exemplares
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