sexta-feira, 8 de abril de 2016

O sentimento

Então, nhá Maria, que aconteceu?
João de pé, a mão na cadeira. Ela sentada, boquinha pintada em coração. No joelho, a caçula de cinco anos, olhinho arregalado.
Eu tenho um sentimento.
É certo o que ele se queixa? A senhora de noite não quer?
Ele está fracão, sargento. Quer que eu deixe forte.
Não minta, mulher.
E a história das duas calças?
Nem todo dia a gente está boa. Sabe o que ele fez? Picou todinha com a tesoura. De ciúme não quer que eu use calça comprida. Olhe a minha perna, sargento.
Debaixo do vestidinho o cascão escuro do sol.
Essa aí deixa o arroz em cima do fogão. E vai tomar mate com a irmã.
Não se pode mais passear? Ele volta da roça, meio bêbado, me toca de casa. Manda eu ir com outro. Quando esperava esse anjinho...
De tanto tossir a menina perdia o fôlego.
... me deu um soco na barriga.
Ah, é? Conte do baile para o sargento.
Se alguém convida, a gente não nega. É festinha de domingo.
Um casal de velhos, dona Maria. Com oito filhos. Discutindo por bobagem.
A ideia do sargento só tenho a gabar. Na mesma casa, cada um no seu canto. Desmanchar o ranchinho não quero. Sabe o que disse? Que era uma vagabunda. Não me respeita?
Ele está fracão, sargento. Começa a bater na gente para ficar forte. Só judiando de mim ele consegue.
Passar a mão não é bater, seu João.
Agora eu sei o que é a lei, sargento.
Em negócio de boca não me fio. Quero um papel do sargento. Bem capaz, esse aí, de arruinar o trato.
Termo de bem-viver? Não carece, dona Maria.
Ele faz muito estropício. Onde cuspo eu não lambo. Esse aí, não. Se abaixa e come do chão.
Agora podem ir. Cuidar dos filhos.
O sentimento eu guardo.
Sentimento a gente perdoa, não é, sargento?
E o pobre ostentou os dois caninos solitários.
Dona Maria acudiu:
O meu está no coração. Eu morro com ele.
Mais um safanão na menina:
Dê louvado para o sargento.
Mão posta, unhinha preta, tossindo.
Deus te abençoe, minha filha.
Dalton Trevisan, in A trombeta do anjo vingador

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