O
meu amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade é autor do conto “Quando
minha avó morreu”. Sei por ele que é uma história
autobiográfica. Aí Rodrigo confessa ter passado, aos 11 anos, por
fase da vida em que se sentia profundamente corrupto. Violava as
promessas feitas de noite a Nossa Senhora; mentia desabridamente;
faltava às aulas para tomar banho no rio e pescar na Barroca com
companheiros vadios; furtava pratinhas de dois mil-réis...
Ai!
de mim que mais cedo que o amigo também abracei a senda do crime e
enveredei pela do furto... Amante das artes plásticas desde cedo,
educado no culto do belo, eu não pude me conter. Eram duas coleções
de postais pertencentes a minha prima Maria Luísa Palleta. Numa,
toda a vida de Paulo e Virgínia – do idílio infantil ao navio
desmantelado na procela. Pobre Virgínia, dos cabelos esvoaçantes!
Noutra, a de Joana d’Arc, desde os tempos de pastora e das vozes ao
da morte. Pobre Joana dos cabelos em chama! Não resisti. Furtei,
escondi e depois de longos êxtases, com medo, joguei tudo fora.
Terceiro roubo, terceira coleção de postais – a que um carcamano,
chamado Adriano Merlo, escrevia a uma de minhas tias. Os cartões
eram fabulosos. Novas contemplações solitárias e piquei tudo de
latrina abaixo.
Mas
o mais grave foi o roubo de uma nota de cinco mil-réis, do
patrimônio da própria Inhá Luísa. De posse dessa fortuna
nababesca, comprei um livro e uma lâmpada elétrica de tamanho
desmedido. Fui para o parque Halfeld com o butim de minha pirataria.
Joguei o troco num bueiro. Como ainda não soubesse ler, rasguei o
livro e atirei seus restos em um tanque. A lâmpada, enorme,
esfregada, não fez aparecer nenhum gênio. Fui me desfazer de mais
esse cadáver na escada da Igreja de São Sebastião. Lá a estourei,
tendo a impressão de ouvir os trovões e o morro do Imperador
desabando nas minhas costas.
Depois
dessa série de atos gratuitos e delitos inúteis, voltei para casa.
Raskólnikov. O mais estranho é que houve crime, e não castigo.
Crime perfeito. Ninguém desconfiou. Minha avó não deu por falta de
sua cédula. Eu fiquei por conta das Fúrias de um remorso, que me
perseguiu toda a infância, veio comigo pela vida afora, com a
terrível impressão de que eu poderia reincidir porque vocês sabem,
cesteiro que faz um cesto... Só me tranquilizei anos depois, já
médico, quando li num livro de Psicologia que só se deve considerar
roubo o que a criança faz com proveito e dolo. O furto inútil é
fisiológico e psicologicamente normal. Graças a Deus! Fiquei
absolvido do meu ato gratuito…
Pedro
Nava, in
Baú
de ossos – Memórias 1
Nenhum comentário:
Postar um comentário