Google Imagens
Era
o que ele estudava. “A estrutura, quer dizer a estrutura” - ele
repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu
ficava olhando seu gesto impreciso, porque uma bolha de sabão é
mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho.
Película e oco. “A estrutura da bolha de sabão, compreende?”
Não compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal
de minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava
os mais tenros que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de
cada vez. Amor calculado, porque, se me afobava, o sopro desencadeava
o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham
rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo. Molhando o
peito. Então eu jogava longe o canudo e caneca. Para recomeçar no
dia seguinte, sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura? “A
estrutura” - ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e
fuga parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho, ô a
paciência. A paixão.
No
escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo.
Estou me espiritualizando, eu disse e ele riu fazendo fremir os
dedos-asas, a mão distendida imitando libélula na superfície da
água, mas sem se comprometer com o fundo, divagações à flor da
pele, ô, amor de ritual sem sangue. Sem grito. Amor de transparência
e membranas, condenado à ruptura.
Ainda
fechei a janela para retê-la, mas com sua superfície que refletia
tudo ela avançou cega contra o vidro. Milhares de olhos e não
enxergava. Deixou um círculo de espuma. Foi simplesmente isso,
pensei quando ele tomou a mulher pelo braço e perguntou: “Vocês
já se conheciam?” Sabia muito bem que nunca tínhamos nos visto
mas gostava dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos
num bar e seus olhos de egípcia se retraíam, apertados. A fumaça,
pensei. Aumentavam e diminuíam até que se reduziram a dois riscos
de lápis-lazúli e assim ficaram. A boca polpuda também se apertou,
mesquinha. Tem boca à-toa, pensei. Artificiosamente sensual, à-toa.
Mas como é que um homem como ele, um físico que estudava a
estrutura das bolhas, podia amar uma mulher assim. Mistérios, eu
disse e ele sorriu, nos divertíamos em dizer fragmentos de ideias,
peças soltas dum jogo que jogávamos meio ao acaso, sem encaixe.
Convidaram-me
e sentei, os joelhos de ambos encostados nos meus, a mesa pequena
enfeixando copos e hálitos. Me refugiei nos cubos de gelo amontoados
no fundo do copo, ele podia estudar a estrutura do gelo, não era
mais fácil? Mas ele queria fazer perguntas. Uma antiga amizade? Uma
antiga amizade. Ah. Fomos colegas? Não, nos conhecemos numa praia,
onde? Enfim, uma praia. Ah. Aos poucos o ciúme foi tomando forma e
transbordando espesso como um licor azul-verde, do tom da pintura dos
seus olhos. Escorreu pelas nossas roupas, empapou a toalha da mesa,
pingou gota a gota. Usava um perfume adocicado. Veio a dor de cabeça:
“Estou com tanta dor de cabeça”, repetiu não sei quantas vezes.
Uma dor fulgurante que começava na nuca e se irradiava até a testa,
na altura das sobrancelhas. Empurrou o copo de uísque. “Fulgurante”.
Empurrou para trás a cadeira e antes que empurrasse a mesa ele pediu
a conta. Noutra ocasião a gente poderia se ver, de acordo? Sim,
noutra ocasião, é lógico. Na rua, ele pensou em me beijar de leve,
como sempre, mas ficou desamparado e eu o tranquilizei, está bem,
querido, está tudo bem, entendi. Tomo um taxi, não tem problema, vá
depressa, vá. Quando me voltei, já dobravam a esquina. Que palavras
estariam dizendo enquanto dobravam a esquina? Fingi me interessar
pela valise de plástico de xadrez vermelho, estava diante de uma
vitrine de valises. Me vi perplexa no vidro. Mas como era possível.
Choro em casa, resolvi. Em casa telefonei a um amigo, fomos jantar e
ele concluiu que o meu cientista estava felicíssimo.
Felicíssimo,
repeti quando no dia seguinte cedo ele telefonou para explicar.
Cortei a explicação com o felicíssimo e lá do outro lado da linha
senti-o sorrir como uma bolha de sabão sorriria. Realmente, a única
coisa inquietante era aquele ciúme. Mudei logo de assunto com o
licoroso pressentimento de que ela ouvia na extensão, oh, o teatro.
A poesia. Então ela desligou.
O
segundo encontro foi numa exposição de pintura. No começo, aquela
cordialidade. A boca pródiga. Ele me puxou para ver um quadro de que
tinha gostado muito. Não ficamos distante dela nem cinco minutos.
Quando voltamos, os olhos já estavam reduzidos aos dois riscos.
Passou a mão na nuca. Furtivamente acariciou a testa. Despedi-me
correndo antes da dor fulgurante. Vai virar sinusite, pensei. A
sinusite do ciúme, bom nome para um quadro ou ensaio.
“Ele
está doente, sabia? Aquele cara que estuda bolhas, não é seu
amigo?” Em redor, a massa latejante de gente, música. Calor. Quem
é que está doente? Eu perguntei. Sabia perfeitamente que se tratava
dele, mas precisei perguntar de novo. É preciso perguntar uma, duas
vezes para ouvir a mesma resposta, que aquele cara, aquele que estuda
essa frescura da bolha, não era meu amigo? Pois estava muito doente,
quem contou foi a própria mulher, bonita, sem dúvida, mas um pouco
sobre a grossa, fora casada com o primo dum amigo, um industrial meio
nazista que veio para cá com passaporte falso, até a Interpol já
estava avisada, durante a guerra se associou com um tipo que se dizia
conde italiano mas não passava dum contrabandista muito grande.
Estendi a mão e agarrei seu braço porque a ramificação da
conversa se alastrava pelas veredas, eu mal podia vislumbrar o
desdobramento da raiz varando por entre pernas, sapatos, croquetes
pisados, palitos, fugia pela escada na descida vertiginosa até a
porta da rua, espera! eu disse. Espera. Mas que é que ele tem? Esse
meu amigo. A bandeja de uísque oscilou perigosamente acima do nível
das nossas cabeças. Os copos tilintaram na inclinação para a
direita, para a esquerda, deslizando num só bloco na dança dum
convés na tempestade. O que ele tinha? O homem bebeu metade do copo
antes de responder: não sabia os detalhes e nem se interessava em
saber, afinal, a única coisa gozada era um cara estudar a estrutura
da bolha, ora que idéia! Tirei-lhe o copo e bebi devagar o resto do
uísque com o cubo de gelo colado ao meu lábio, queimando. Não ele,
meu Deus. Não ele, eu repeti. Embora grave, curiosamente minha voz
varou todas as camadas de barulho como a ponta agudíssima varara
todas as camadas do meu peito até tocar no fundo, lá no fundo onde
as pontas todas acabam por dar, que nome tinha? Esse fundo, perguntei
e fiquei sorrindo para o homem e seu espanto. Expliquei-me que era o
jogo que eu costumava jogar com ele, com esse meu amigo, o físico. O
infortunante riu. “Juro que nunca pensei que fosse encontrar no
mundo um cara que estudasse um troço desses”, resmungou ele
voltando-se rápido para apanhar mais dois copos na bandeja, ô, tão
longe ia a bandeja e tudo o mais, fazia quanto tempo? “Me diga uma
coisa, vocês não viveram juntos?” - lembrou-se o homem de
perguntar. Peguei no ar o copo borrifando na tormenta. Estava nua na
praia. Mais ou menos, respondi.
Mais
ou menos, eu disse ao motorista que perguntou se eu sabia onde ficava
essa rua. Tinha pensado em pedir notícias por telefone, mas a
extensão me travou. E agora ela abria a porta e o sorriso. Contente
de me ver? A mim?! Elogiou minha bolsa. Meu penteado despenteado.
Nenhum sinal da sinusite. Mas daqui a pouco vai começar. Fulgurante.
“Foi
mesmo um grande susto,” ela disse. “Mas passou, ele está ótimo
ou quase”, acrescentou levantando a voz. Do quarto ele poderia nos
ouvir se quisesse. Não perguntei nada.
A
casa. Aparentemente, não mudara, mas, reparando melhor, tinha menos
livros. Mais cheiros: flores de perfume ativo no vaso, óleos
perfumados nos móveis. E seu próprio perfume. Objetos frívolos –
os múltiplos – substittuindo em profusão os únicos, aqueles que
ficavam obscuros nas antigas prateleiras da estante. Examinei-a
enquanto me mostrava um tapete que tecera nos dias em que ele ficou
no hospital. E a fulgurante? Os olhos continuavam bem abertos, a boca
descontraída. Ainda não.
“Você
poderia ter se levantado, hem, amor? Mas é um preguiçoso”, disse
ela quando entramos no quarto. E começou a contar muito animada a
história dum ladrão que entrara pelo porão da casa ao lado, “a
casa da mãezinha”, acrescentou afagando ligeiramente os pés dele
debaixo da manta de lã. Acordaram no meio da noite com o ladrão aos
berros, pedindo socorro com a mão na ratoeira, tinha ratos no porão
e na véspera a mãezinha armara uma enorme ratoeira para pegar o rei
de todos, lembra, amor?
O
amor estava de chambre verde, recostado na cama cheia de almofadas.
As mãos branquíssimas descansando entrelaçadas na altura do peito.
Ao lado, um livro aberto e cujo título deixei para ler depois e não
fiquei sabendo. Ele mostrou interesse pelo caso do ladrão, de mim e
dela. De quando em quando me olhava interrogativo, sugerindo
lembranças, mas eu sabia que era por delicadeza, sempre foi
delicadíssimo. Atento e desligado. Onde? Onde estaria com seu
chambre largo demais. Era devido àquelas dobras todas que fiquei com
a impressão de que emagrecera? Duas vezes enxugou o queixo úmido,
transpirava. Enfim, fazia calor.
Comecei
a sentir falta de alguma coisa, era do cigarro? Acendi um e ainda a
sensação aflitiva de que alguma coisa faltava, mas o que estava
errado ali? Na hora da pílula lilás ela foi buscar o copo d’água
e então ele me olhou lá do seu mundo de estruturas. Bolhas. Por um
instante relaxei completamente: “Não sei onde está mas sei que
não está”, eu disse, e ele perguntou: “Jogar?” Rimos um para
o outro.
“Engole,
amor, engole” - pediu ela segurando-lhe a cabeça. E voltou-se para
mim: - “Preciso ir aqui na casa da mãezinha e minha empregada está
fora, você se importa em ficar mais um pouco? Não demoro muito, a
casa é ao lado”, acrescentou. Ofereceu-me uísque, não queria
mesmo? Se quisesse estava tudo na copa, uísque, gelo, ficasse à
vontade. Telefone tocando será que eu podia?...
Saiu
e fechou a porta. Fechou-nos. Então descobri o que estava faltando,
ô Deus. Agora eu sabia que ele ia morrer.
Lygia
Fagundes Telles, in A estrutura da bolha de sabão
Nenhum comentário:
Postar um comentário