Embora
não tivesse escolhido a cor nem os móveis, os quadros ou tapetes, a
casa era mais minha que de qualquer outra pessoa: só eu via os
desenhos no piso do quintal, o que se escondia embaixo dos tacos, os
tufos mágicos sob a cristaleira. Ali dentro, nenhum mal poderia me
atingir.
Um
dia, brincando no chão da sala com meus carrinhos, ouvi um homem
dizer na TV que, no ano 2000, o mundo iria acabar.
“Pena”,
pensei, sem tirar os olhos dos Matchboxes, “não vou mais poder
sair pra rua” — e continuei a tratar dos meus assuntos.
Não,
não é verdade que a casa era “mais minha que de qualquer outra
pessoa”. Havia uma área fora do meu domínio: o quarto da Vanda,
território independente, onde eu não tinha o direito de entrar.
Vez
ou outra, pela porta entreaberta, sentia o cheiro forte de perfume e
a via na cama, sob o lusco-fusco da televisão preto e branco, de
bobes na cabeça, pintando as unhas dos pés e cantarolando a música
da novela das seis, numa postura relaxada que não levava para fora
dali.
Vanda
vinha do interior de Minas Gerais e de dentro de um livro de Charles
Dickens. Sem dinheiro para criá-la, sua mãe a dera, com sete anos,
a uma conhecida. Ao recebê-la, a mulher perguntou o que a garotinha
gostava de comer. Anotou tudo num papel. Mal a mãe virou as costas,
no entanto, a fulana amassou a lista e, como uma vilã de folhetim,
decretou: “A partir de hoje, você não vai mais nem sentir o
cheiro dessas comidas!”.
Vanda
trabalhou lá até os quinze anos, quando recebeu a carta de uma
prima com uma nota de cem cruzeiros, saiu de casa com a roupa do
corpo e fugiu num ônibus para São Paulo.
Todas
as vezes que eu ou minhas irmãs a importunávamos com nossas
demandas de criança mimada, ela nos contava histórias da infância
de Gata Borralheira, fazia-nos apertar seu nariz, quebrado por uma
das filhas da “patroa” com um rolo de amassar pão e nos
expulsava da cozinha: “Sai pra lá, peste, e me deixa acabar essa
janta!”.
Minha
mãe não gostava que nos referíssemos a Vanda como “empregada”,
preferia “a moça que trabalha lá em casa”. Eu estranhava: por
que dizer “a moça que trabalha lá em casa”, se a todas as moças
que trabalhavam nas casas dos outros, os vizinhos chamavam
“empregadas”?
Antonio
Prata,
in Nu,
de botas
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