quarta-feira, 9 de março de 2016

A moça que trabalha lá em casa

Embora não tivesse escolhido a cor nem os móveis, os quadros ou tapetes, a casa era mais minha que de qualquer outra pessoa: só eu via os desenhos no piso do quintal, o que se escondia embaixo dos tacos, os tufos mágicos sob a cristaleira. Ali dentro, nenhum mal poderia me atingir.
Um dia, brincando no chão da sala com meus carrinhos, ouvi um homem dizer na TV que, no ano 2000, o mundo iria acabar.
Pena”, pensei, sem tirar os olhos dos Matchboxes, “não vou mais poder sair pra rua” — e continuei a tratar dos meus assuntos.
Não, não é verdade que a casa era “mais minha que de qualquer outra pessoa”. Havia uma área fora do meu domínio: o quarto da Vanda, território independente, onde eu não tinha o direito de entrar.
Vez ou outra, pela porta entreaberta, sentia o cheiro forte de perfume e a via na cama, sob o lusco-fusco da televisão preto e branco, de bobes na cabeça, pintando as unhas dos pés e cantarolando a música da novela das seis, numa postura relaxada que não levava para fora dali.
Vanda vinha do interior de Minas Gerais e de dentro de um livro de Charles Dickens. Sem dinheiro para criá-la, sua mãe a dera, com sete anos, a uma conhecida. Ao recebê-la, a mulher perguntou o que a garotinha gostava de comer. Anotou tudo num papel. Mal a mãe virou as costas, no entanto, a fulana amassou a lista e, como uma vilã de folhetim, decretou: “A partir de hoje, você não vai mais nem sentir o cheiro dessas comidas!”.
Vanda trabalhou lá até os quinze anos, quando recebeu a carta de uma prima com uma nota de cem cruzeiros, saiu de casa com a roupa do corpo e fugiu num ônibus para São Paulo.
Todas as vezes que eu ou minhas irmãs a importunávamos com nossas demandas de criança mimada, ela nos contava histórias da infância de Gata Borralheira, fazia-nos apertar seu nariz, quebrado por uma das filhas da “patroa” com um rolo de amassar pão e nos expulsava da cozinha: “Sai pra lá, peste, e me deixa acabar essa janta!”.
Minha mãe não gostava que nos referíssemos a Vanda como “empregada”, preferia “a moça que trabalha lá em casa”. Eu estranhava: por que dizer “a moça que trabalha lá em casa”, se a todas as moças que trabalhavam nas casas dos outros, os vizinhos chamavam “empregadas”?
Antonio Prata, in Nu, de botas

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