Com
diferença de poucos dias, uma amiga carioca e um leitor gaúcho me
enviaram vídeos protagonizados pelo escritor uruguaio Eduardo
Galeano. Em um, ele dá uma entrevista e, no outro, lê os próprios
textos. Ambos os programas estão acessíveis pelo Youtube. Respeito
as coincidências: como é que eu ainda não havia me dedicado a esse
grande pensador humanista?
Num
dos vídeos, Galeano aparece lendo seu texto “El derecho al
delirio”, onde descreve como seria um mundo ideal, e aproveita para
homenagear aqueles que insistem em não esquecer a própria história
(a exemplo das mães da Plaza de Mayo) nesses tempos de amnésia
obrigatória.
A
partir daí não ouvi mais nada, pois considerei marcante essa
expressão: tempos de amnésia obrigatória. O assunto mereceria um
tratado. Amnésia. É o que explica tanta neurose e tanta
infelicidade. A gente procura esquecer para poder ir adiante, mas que
espécie de caminho trilhamos quando não enfrentamos a verdade?
Esquecer
é uma estratégia de sobrevivência. Somos todos uns esquecidos
crônicos. Pra começar, esquecemos de alguns descuidos que sofremos
na infância, pois fomos educados para considerar pai e mãe
infalíveis. Dessa forma, nossas dores internas acabam ganhando o
apelido de fricotes, só que esses fricotes viram traumas, e esses
traumas minam nossa confiança na vida e sustentam os consultórios
psiquiátricos, já que esquecer é uma forma de impedir a
compreensão absoluta de nós mesmos, e alguém precisa nos ajudar a
lembrar para nos libertarmos.
Esquecemos
os desaforos que tivemos que engolir durante um casamento ou namoro,
tudo porque nos ensinaram que o amor deve ser forte o suficiente para
aguentar os reveses da convivência, e também por medo da solidão,
que tem péssimo cartaz. Então, para nos enquadramos e nos sentirmos
amados e estoicos, esquecemos as mentiras, as traições, os
maus-tratos, as indiferenças e mantemos algo que ainda parece uma
relação, mas que deixou de ser no momento em que enfiamos a cabeça
dentro do buraco.
Esquecemos
em quem votamos, céticos de que em política nada muda, e em vez de
investirmos nossa energia em manifestações de repúdio à
corrupção, deixamos pra lá e seguimos em frente conformados com a
roubalheira, desmemoriados sobre nossos direitos.
E
esquecemos, principalmente, de quem somos. Dos nossos ideais, das
nossas vontades, dos nossos sonhos, das nossas crenças, tudo em prol
de uma adaptação ao meio, de uma preguiça em desfazer o combinado
e buscar uma saída alternativa, de uma covardia que gruda na alma e
congela os movimentos. Esquecer de nós mesmos é assinar um contrato
com a resignação.
Obrigada, Galeano, por nos lembrar que a
amnésia é uma opção, não é obrigatória.
Martha
Medeiros, in
A graça da coisa
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