domingo, 21 de fevereiro de 2016

Era bom no trago

Fotograma do filme

Procurou onde sentar. Tudo que havia, além do catre, era um caixão de querosene vazio. Vanda o pôs de pé, soprou a poeira, sentou-se. Quanto tempo demoraria o médico a chegar? E Leonardo? Imaginou o marido cheio de dedos na Repartição, explicando ao chefe a inesperada morte do sogro. O chefe de Leonardo conhecera Joaquim nos bons tempos da Mesa de Rendas. E quem não o conhecera então, quem não lhe tinha consideração, quem poderia imaginar o seu destino? Para Leonardo seriam momentos difíceis, comentando com o chefe as loucuras do velho, buscando explicação para elas. O pior seria se a notícia se espalhasse entre os colegas, murmurada de mesa em mesa, enchendo as bocas de risinhos maledicentes, de piadas grosseiras, de comentários de mau gosto. Era uma cruz aquele pai, transformara suas vidas num calvário, estavam agora no cimo do morro, era ter um pouco mais de paciência. Com o rabo do olho, Vanda espiou o morto. Lá estava ele sorrindo, achando tudo aquilo infinitamente engraçado.
É pecado ter raiva de um morto, ainda mais se esse morto é o pai da gente. Vanda conteve-se, era pessoa religiosa, frequentava a igreja do Bonfim, um pouco espírita também, acreditava na reencarnação. Além do mais, agora pouco importava o sorriso de Quincas. Era ela finalmente quem mandava e dentro em pouco ele voltaria a ser o pacato Joaquim Soares da Cunha, irrepreensível cidadão.
O santeiro entrou com o médico, rapaz jovem, certamente recém-formado pois ainda se dava ao trabalho de representar o profissional competente. O santeiro apontou o morto, o médico cumprimentou Vanda, abriu a maleta de couro brilhante. Vanda levantou-se, afastando o caixão de querosene.
De que morreu?
Foi o santeiro quem explicou:
Foi encontrado morto, assim como está.
Sofria alguma enfermidade?
Não sei, não senhor. Conheço ele há uns dez anos e sempre sadio como um boi. A não ser que o doutor...
O quê?
...chame cachaça de doença. Virava um bocado, era bom no trago. Vanda tossiu, repreensiva. O doutor dirigiu-se a ela:
Era empregado da senhora?
Houve um silêncio breve e pesado. A voz veio de longe:
Era meu pai.
Doutor jovem, ainda sem experiência da vida. Mediu Vanda, seu vestido de dia de festa, sua limpeza, os sapatos altos. Espiou o morto de pobreza sem medida, o quarto de desmedida miséria.
E ele vivia aqui?
Fizemos tudo para que voltasse para casa. Era...
Maluco?
Vanda abriu os braços, estava com vontade de chorar. O médico não insistiu. Sentou-se na beira da cama, começou o exame. Suspendeu a cabeça e disse:
Ele está rindo, hein! Cara de debochado.
Vanda fechou os olhos, apertou as mãos, o rosto vermelho de vergonha.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D'água

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