sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Ensinar a ler

Uma das primeiras armadilhas interiores é aquilo que chamamos de realidade. Falo, é claro, da ideia de realidade que atua como a grande fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de não ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam de razão, outros de bom-senso. A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira. Nós não temos sempre que a levar tão a sério.
Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu: Eu desvalorizei as paredes. Essa lição se converteu num lema da minha conduta.
Ho Chi Minh ensinou a si próprio a ler para além dos muros da prisão. Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentidos visíveis e invisíveis. E ensinar a pensar no sentido original da palavra pensar que significava curar ou tratar um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece. Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade da transcendência, recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação de um medicamento chamado inquietação crítica. Significa fazermos com a nossa vida quotidiana aquilo que fizemos neste congresso que é deixar entrar a luz da poesia na casa do pensamento.”
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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