domingo, 6 de abril de 2025

DIÁRIO DE BERNARDO SOARES – Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa

14.

Saber que será má a obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. Essa planta é a alegria dela, e também por vezes a minha. O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distração de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou me não basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida.
Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a pena, já, de amanhã ter pena de ter tido pena hoje — grandes emaranhamentos sem utilidade nem verdade, grandes emaranhamentos...
... Onde, encolhido num banco de espera da estação apeadeiro, o meu desprezo dorme entre o gabão do meu desalento’...
... O mundo de imagens sonhadas de que se compõe, por igual, o meu conhecimento e a minha vida...
Em nada me pesa ou em mim dura o escrúpulo da hora presente. Tenho fome da extensão do tempo, e quero ser eu sem condições.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

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