[
1 ]
Tenho
que depender de rumores, de velhas fotografias, de histórias
contadas e de lembranças nebulosas misturadas com fábula para
tentar contar-lhes sobre os Hamilton. Não eram pessoas importantes e
existem poucos registros a seu respeito, exceto as costumeiras
certidões de nascimento, casamento, posse de terra e óbito.
O
jovem Samuel Hamilton veio do norte da Irlanda e sua mulher também.
Era filho de pequenos fazendeiros, nem ricos nem pobres, que viveram
numa terra arrendada e numa casa de pedra durante muitas centenas de
anos. Os Hamilton conseguiam ser notavelmente instruídos e versados;
e, como ocorre geralmente naquele país verde, eram ligados e
aparentados a pessoas muito importantes e a pessoas humildes, de modo
que um primo podia ser um baronete e outro primo, um mendigo. E
naturalmente descendiam dos antigos reis da Irlanda, como todo
irlandês descende.
Por
que Samuel deixou a casa de pedra e os verdes hectares dos seus
ancestrais, eu não sei. Nunca foi um homem político, então é
pouco provável que uma acusação de rebelião o tenha banido, e era
escrupulosamente honesto, o que elimina a polícia como o principal
agente da sua saída. Havia um murmúrio — não chegava a ser um
rumor, era mais um sentimento não declarado — na minha família de
que foi o amor que o fez partir, e não o amor da mulher que tinha
desposado. Mas se foi um amor bem-sucedido demais, ou se ele partiu
espicaçado por um amor não correspondido, eu não sei. Sempre
preferíamos pensar que foi a primeira hipótese. Samuel tinha uma
bela aparência, era encantador e alegre. É difícil imaginar que
qualquer jovem irlandesa do campo o recusasse.
Chegou
ao vale do Salinas exuberante e animado, cheio de invenções e
energia. Seus olhos eram muito azuis e quando estava cansado um deles
escapava um pouco para fora. Era um homem grandalhão, mas de certa
forma delicado. Na atividade empoeirada da fazenda, parecia sempre
imaculado. Suas mãos eram hábeis. Era um bom ferreiro, carpinteiro
e entalhador, e capaz de improvisar qualquer coisa com pedaços de
madeira e metal. Estava sempre inventando novas formas de se fazer
uma coisa velha e o fazia cada vez melhor e mais rápido, mas nunca
em toda a sua vida teve qualquer talento para ganhar dinheiro. Outros
homens que tinham talento para isso pegavam as ideias de Samuel, as
vendiam e ficavam ricos, mas Samuel mal chegou a ganhar salário na
vida inteira.
Não
sei o que orientou seus passos para o vale do Salinas. Era um lugar
pouco promissor para um homem de um país verde, mas ele chegou cerca
de trinta anos antes da virada do século e trouxe consigo sua
pequenina esposa irlandesa, uma mulherzinha tensa e dura como o humor
de uma galinha. Tinha uma mentalidade presbiteriana austera e um
código moral que proibia e tirava a graça de tudo o que era
prazeroso.
Não
sei onde Samuel a conheceu, como a cortejou e desposou. Acho que
devia ter outra jovem gravada em algum lugar do seu coração, pois
era um homem de amor e sua esposa não era uma mulher de demonstrar
sentimentos. E, apesar disso, em todos os anos da sua juventude até
a sua morte no vale do Salinas, nunca houve nenhum sinal de que
Samuel tivesse procurado outra mulher.
Quando
Samuel e Liza chegaram ao vale do Salinas toda a terra plana estava
tomada, o solo rico, as pequenas pregas férteis nos morros, as
florestas, mas ainda havia terra marginal a ser cultivada e, nas
colinas nuas a leste do que é hoje King City, Samuel Hamilton
cultivou.
Seguiu
a prática habitual. Tomou um lote que o governo concedia para si
mesmo e outro para sua mulher e, como ela estava grávida, tomou
outro lote para a criança. Ao longo dos anos, nove crianças
nasceram, quatro meninos e cinco meninas, e a cada nascimento outro
lote era acrescido ao rancho, que assim chegou a onze lotes, ou
setecentos e doze hectares.
Se
a terra fosse boa, os Hamilton teriam ficado ricos. Mas os hectares
eram ásperos e secos. Não havia fontes de água e a crosta do solo
era tão fina que pedaços de pedra apareciam à superfície. Até a
artemísia lutava para existir e os carvalhos ficavam nanicos por
falta de umidade. Mesmo nos anos relativamente bons havia tão pouco
pasto que o gado ficava magro de tanto rodar em busca de algo para
comer. Das suas colinas áridas, os Hamilton podiam avistar no oeste
a riqueza das terras planas e as áreas verdejantes ao redor do rio
Salinas.
Samuel
construiu sua casa com as próprias mãos e construiu também um
celeiro e uma ferraria. Descobriu em pouco tempo que mesmo que
tivesse cinco mil hectares de terra de encosta não conseguiria viver
do solo esquelético sem água. Suas mãos hábeis construíram uma
sonda de perfuração e ele cavava poços nas terras dos homens com
mais sorte. Inventou e construiu uma debulhadora e corria as fazendas
da planície na época da colheita, debulhando o grão que sua
própria fazenda não dava. E na sua ferraria afiava arados,
consertava charruas, soldava eixos quebrados e botava ferradura em
cavalos. Homens de toda a região traziam-lhe ferramentas para
consertar e aperfeiçoar. Além do mais, gostavam de ouvir Samuel
falar do mundo e do seu pensamento, da poesia e da filosofia que
existiam fora do vale do Salinas. Ele tinha uma voz rica e grave, boa
para cantar e para falar, e embora não tivesse sotaque irlandês
havia uma ondulação, um canto e uma cadência na sua fala que a
tornavam doce aos ouvidos dos taciturnos fazendeiros do vale. Eles
também traziam uísque e, fora da visão da janela da cozinha e do
olho reprovador da sra. Hamilton, tomavam goles ardentes da garrafa e
mordiam nacos de anis verde selvagem para disfarçar o bafo de
uísque. Era um dia ruim quando não havia três ou quatro homens de
pé em torno da forja, ouvindo o malho e a conversa de Samuel.
Chamavam-no de gênio cômico e levavam suas histórias
cuidadosamente para casa, mas se perguntavam como as histórias
podiam se perder pelo caminho, porque nunca soavam iguais se
repetidas em suas próprias cozinhas.
Samuel
devia ter ficado rico com o seu perfurador de poços, sua debulhadora
e sua ferraria, mas ele não tinha tino para negócios. Seus
fregueses, sempre com dinheiro apertado, prometiam pagar depois da
colheita e então depois do Natal e então depois — até que
finalmente se esqueciam. Samuel não tinha nenhum jeito para
lembrá-los da dívida. E assim os Hamilton continuavam pobres.
Os
filhos vieram tão regularmente como os anos. Os poucos médicos
sobrecarregados do condado não iam com frequência aos ranchos para
um parto, a não ser que a alegria se transformasse num pesadelo e
prosseguisse por vários dias. Samuel Hamilton fez o parto de todos
os seus filhos, deu um nó preciso nos cordões umbilicais, os
tapinhas no bumbum e limpou a bagunça. Quando o primogênito nasceu
com uma pequena obstrução respiratória e começou a ficar roxo,
Samuel colou sua boca na da criança, soprou ar dentro dela e sugou o
ar até que o bebê conseguisse respirar sozinho. As mãos de Samuel
eram tão boas e suaves que vizinhos num raio de trinta quilômetros
o chamavam para ajudar nos partos. E ele era igualmente bom com égua,
vaca ou mulher.
Samuel
tinha um grande livro preto numa estante à mão, com letras douradas
na capa — Medicina da Família do Dr. Gunn. Algumas páginas
estavam dobradas e surradas pelo uso, e outras nunca haviam sido
expostas à luz. Folhear o Dr. Gunn é conhecer a história médica
dos Hamilton. Estes são os capítulos mais consultados: ossos
quebrados, cortes, contusões, caxumba, sarampo, dor de coluna,
escarlatina, difteria, reumatismo, males femininos, hérnia e,
naturalmente, tudo o que tivesse a ver com gravidez e parto. Os
Hamilton deviam ser afortunados ou moralistas porque as páginas
sobre gonorreia e sífilis nunca foram abertas.
Não
existia ninguém como Samuel para acalmar a histeria e aquietar uma
criança assustada. Era a doçura da sua língua e a ternura de sua
alma. Assim como havia limpeza em seu corpo, havia também uma
limpeza no seu pensamento. Homens que vinham à sua ferraria, para
falar e ouvir, deixavam de lado os palavrões por um tempo, não por
se sentirem restringidos, mas automaticamente, como se não fosse um
lugar para aquilo.
Samuel
sempre manteve um ar distante. Talvez fosse a cadência da sua fala e
isso tivesse o efeito de levar homens e mulheres também a lhe contar
coisas que não contariam a parentes ou amigos íntimos. Sua ligeira
estranheza o distinguia e fazia dele um repositório seguro.
Liza
Hamilton era uma irlandesa de uma cepa muito diferente. Sua cabeça
era pequena e redonda e guardava pequenas convicções redondas.
Tinha um nariz em forma de botão e um queixo pequeno e recuado, um
maxilar duro e resoluto capaz de desafiar até a vontade dos anjos de
Deus.
Liza
era uma boa cozinheira no trivial e sua casa — era sempre sua casa
— era varrida, espanada e lavada. Parir os filhos não interferia
muito na sua atividade — precisava só se cuidar durante duas
semanas, no máximo. Devia ter a ossatura pélvica de uma baleia,
pois deu à luz bebês grandes um após o outro.
Liza
tinha uma noção muito elaborada do pecado. O ócio era um pecado,
assim como jogar cartas, que era um tipo de ócio para ela.
Desconfiava de qualquer tipo de diversão, fosse dançar ou cantar ou
até mesmo gargalhar. Achava que as pessoas que se divertiam estavam
expostas ao diabo. E isso era uma pena, pois Samuel sempre foi um
homem chegado a risadas, mas acho que Samuel estava escancarado para
o demônio. Sua mulher o protegia sempre que podia.
Usava
os cabelos sempre puxados para trás e amarrados num coque. E, como
não consigo me lembrar do seu modo de vestir, deve ser porque usava
roupas que combinavam exatamente com a sua personalidade. Não tinha
nenhuma centelha de humor e apenas ocasionalmente uma lâmina de
ironia. Assustava os netos porque não tinha nenhuma fraqueza.
Atravessou a vida sofrendo bravamente sem se queixar, convencida de
que era assim que Deus queria que todos vivessem. Sentia que as
recompensas viriam depois.
John Steinbeck, em A leste do Éden
Nenhum comentário:
Postar um comentário