A
respeito de Michael e Abbey Dunbar, talvez tenha chegado a hora de
nos perguntarmos:
O
que havia entre eles era felicidade genuína?
Qual
era a verdade?
A
mais pura verdade?
Vamos
começar com as obras de arte.
Não
havia dúvidas de que ele pintava bem, lindamente até; conseguia
capturar um rosto, tinha um olhar apurado. Era capaz de desenvolver
seus temas no papel ou na tela, mas a verdade é que ele sabia muito
bem: fazia o dobro de esforço de todos os outros estudantes, que
ainda produziam mais rápido. E seu talento se restringia a uma única
área, à qual ele se agarrava com unhas e dentes.
Ele
era bom em retratar Abbey.
***
Inúmeras
vezes, chegou bem perto de desistir da graduação em belas-artes.
A
única coisa que o impedia era a ideia de ter que ir até ela e
admitir o fracasso. Então ele continuou. Sobreviveu aos trancos e
barrancos, valendo-se de bons trabalhos teóricos e arroubos de
brilhantismo sempre que a incluía em alguma obra, mesmo que em
apenas um detalhe. Alguém sempre olhava e dizia: “Puxa, gostei
desta parte aqui.” A paciência e a inspiração eram só
para ela.
Em
seu trabalho de conclusão de curso, encontrou uma porta abandonada e
pintou Abbey na madeira, dos dois lados. Em um painel, ela estendia a
mão para a maçaneta; no outro, estava indo embora. Entrava como
adolescente; a menina com uniforme escolar, macia, apesar de
magricela, e o cabelo infinito. Na parte de trás, ela ia embora —
salto alto, cabelo curto, uma mulher de negócios —, virando o
rosto para trás, espiando tudo que acontecera entre os dois
momentos. Ao receber a avaliação final, ele já sabia o que estaria
escrito antes mesmo de ler. E acertou:
O
conceito da porta é bem clichê.
Proficiência
na técnica, porém nada além disso. Admito, contudo, que a mulher
me intriga.
Quero
saber o que aconteceu entre os dois momentos.
O
que quer que houvesse no mundo entre as duas imagens, dava para saber
de antemão que, do outro lado, a mulher ficaria bem — e,
sobretudo, que ficaria sem ele, o que de fato acabou acontecendo.
***
Quando
voltaram para a cidade, casados, alugaram uma casinha na rua Pepper.
Número 37. Abbey arrumou um trabalho no banco — o primeiro cargo a
que se candidatou; Michael trabalhava como ajudante de obra e
continuava pintando na garagem.
As
rachaduras começaram a aparecer com uma rapidez surpreendente.
Não
levou nem um ano.
Algumas
questões foram ficando cada vez mais óbvias — por exemplo, que
todas as ideias sempre partiam dela:
A
casa alugada, os pratos com bordas pretas.
Iam
ao cinema quando ela sugeria, nunca ele, e enquanto o diploma
alavancara a carreira dela de imediato, ele permanecia onde sempre
estivera, batendo laje; parecia que ela tinha fome de viver, enquanto
ele apenas vivia. No início, o fim começou assim:
Era
noite.
Na
cama.
Ela
suspirou.
Ele
levantou a cabeça e a encarou.
— O
que houve?
Ela
respondeu:
— Assim
não.
A
partir daí a coisa foi de “Então me mostra” para “Eu não
tenho mais o que te ensinar”; de “Como assim?” para ela se
levantando e dizendo “Eu não posso mais ficar te ensinando tudo,
não posso ficar te carregando nas costas. Você precisa aprender
sozinho”.
Michael
ficou abismado com a calma dela ao desferir cada golpe, na escuridão
que entrava pela janela.
— Durante
todo esse tempo em que estamos juntos, acho que você nunca chegou
a... — Ela hesitou.
— O
quê?
Ela
engoliu em seco, a menor das preparações.
— Nunca
chegou a tomar a iniciativa.
— Iniciativa?
Iniciativa pra quê?
— Não
sei... Pra tudo... Onde morar, o que fazer, o que comer, quando, onde
e como nós...
— Meu
Deus, eu...
Ela
ficou ainda mais ereta.
— Você
nunca me seduz. Nunca passa a sensação de que precisa me ter, a
qualquer custo. Se dependesse de você, eu me sentiria sempre...
Ele
preferia não saber.
— Você
se sentiria... como?
Em
um tom ligeiramente mais brando:
— Como
o menino que puxei pro chão do meu quarto, ainda na casa dos meus
pais...
— Eu...
Mas
não saiu mais nada.
Só
eu.
Eu
e o nada.
Eu
e o abismo, e as roupas penduradas em uma cadeira… e Abbey ainda
não tinha terminado.
— E
talvez todo o resto também, como eu disse...
— Todo
o resto?
Naquele
momento, o quarto parecia uma costura prestes a rasgar.
— Não
sei. — Ela se empertigou ainda mais, tomando coragem. — Se não
fosse por mim, talvez você nunca tivesse saído de casa. Talvez você
estivesse lá até hoje, com aqueles capiaus de regata, fazendo
faxina naquela merda de consultório e atirando tijolos para outros
caras que atiram tijolos para outros caras.
Sentiu
o coração ser corroído pela escuridão.
— Eu
fui bater na sua porta.
— Só
quando a cachorra morreu.
O
golpe o acertou em cheio.
— Esse
tempo todo você só estava esperando para me tratar como um
vira-lata?
(Tenho
certeza de que esse trocadilho não foi intencional.)
— Claro
que não. Saiu sem querer. — Ela cruzou os braços, mas sem chegar
a se cobrir, e estava tão linda e nua, com as clavículas tão
pronunciadas. — Mas talvez eu sempre tivesse guardado isso dentro
de mim.
— Você
tinha ciúme da cachorra?
— Não!
— Mais uma vez, a questão principal escapava a Michael. — É só
que... é impossível não me perguntar por que você levou meses
para bater na minha porta depois de passar tanto tempo só parado em
frente à minha casa, olhando, esperando! Na esperança de que eu
fosse fazer isso por você... que eu fosse correr atrás de você
pela rua.
— Você
nunca fez isso.
— Claro
que não... Eu não poderia fazer isso. — Ela não sabia para onde
olhar, então acabou olhando para o nada atrás dele. — Meu Deus,
você não entende, né?
Esse
comentário foi o último prego no caixão — uma verdade tão
serena e tão brutal. O esforço consumiu todas as energias dela,
mesmo que por um momento, e ela voltou a se deitar ao lado dele; sua
bochecha parecia pedra contra o pescoço dele.
— Sinto
muito — disse ela. — Muito mesmo.
Contudo,
sabe-se lá por quê, ele persistiu.
Talvez
quisesse abraçar a derrota vindoura.
— Me
fala.
O
gosto na voz dele. Era seco e arenoso, como se tivessem atirado nele
todos aqueles tijolos, enfiado goela abaixo, um por um.
— Só
me fala o que posso fazer para consertar as coisas.
De
repente, o ato de respirar se tornou uma modalidade olímpica, e onde
estava Emil Zátopek quando Michael precisava dele? Por que não
tinha treinado como aquele tcheco insano? Um atleta com aquele nível
de resistência certamente suportaria bem um dia como aquele.
Já
Michael…
Outra
vez.
— Me
fala o que fazer, e eu vou consertar tudo.
— Não
dá.
A
voz de Abbey estava na horizontal, largando as palavras sobre o peito
dele. Sem ansiedade, sem dificuldade.
Sem
a menor vontade de consertar ou ser consertada.
— Talvez
não haja mesmo nada a fazer — constatou. — Talvez seja
isso. — Ela chegou a um ponto final, depois retomou: — Talvez nós
não sejamos... uma boa combinação, ao contrário do que
acreditávamos.
Ele
suspirou, o último suspiro.
— Mas
eu te... — sua voz engasgou na garganta — ... tanto.
— Eu
sei. — Havia tanta pena na voz dela, mas era irredutível. — Eu
também, mas talvez não seja o bastante.
Se
ela tivesse usado uma agulha para desferir o golpe final, ele teria
sangrado na cama até a morte.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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