domingo, 12 de maio de 2024

Zátopeck


A respeito de Michael e Abbey Dunbar, talvez tenha chegado a hora de nos perguntarmos:
O que havia entre eles era felicidade genuína?
Qual era a verdade?
A mais pura verdade?
Vamos começar com as obras de arte.
Não havia dúvidas de que ele pintava bem, lindamente até; conseguia capturar um rosto, tinha um olhar apurado. Era capaz de desenvolver seus temas no papel ou na tela, mas a verdade é que ele sabia muito bem: fazia o dobro de esforço de todos os outros estudantes, que ainda produziam mais rápido. E seu talento se restringia a uma única área, à qual ele se agarrava com unhas e dentes.
Ele era bom em retratar Abbey.

***

Inúmeras vezes, chegou bem perto de desistir da graduação em belas-artes.
A única coisa que o impedia era a ideia de ter que ir até ela e admitir o fracasso. Então ele continuou. Sobreviveu aos trancos e barrancos, valendo-se de bons trabalhos teóricos e arroubos de brilhantismo sempre que a incluía em alguma obra, mesmo que em apenas um detalhe. Alguém sempre olhava e dizia: “Puxa, gostei desta parte aqui.” A paciência e a inspiração eram só para ela.
Em seu trabalho de conclusão de curso, encontrou uma porta abandonada e pintou Abbey na madeira, dos dois lados. Em um painel, ela estendia a mão para a maçaneta; no outro, estava indo embora. Entrava como adolescente; a menina com uniforme escolar, macia, apesar de magricela, e o cabelo infinito. Na parte de trás, ela ia embora — salto alto, cabelo curto, uma mulher de negócios —, virando o rosto para trás, espiando tudo que acontecera entre os dois momentos. Ao receber a avaliação final, ele já sabia o que estaria escrito antes mesmo de ler. E acertou:
O conceito da porta é bem clichê.
Proficiência na técnica, porém nada além disso. Admito, contudo, que a mulher me intriga.
Quero saber o que aconteceu entre os dois momentos.
O que quer que houvesse no mundo entre as duas imagens, dava para saber de antemão que, do outro lado, a mulher ficaria bem — e, sobretudo, que ficaria sem ele, o que de fato acabou acontecendo.

***

Quando voltaram para a cidade, casados, alugaram uma casinha na rua Pepper. Número 37. Abbey arrumou um trabalho no banco — o primeiro cargo a que se candidatou; Michael trabalhava como ajudante de obra e continuava pintando na garagem.
As rachaduras começaram a aparecer com uma rapidez surpreendente.
Não levou nem um ano.
Algumas questões foram ficando cada vez mais óbvias — por exemplo, que todas as ideias sempre partiam dela:
A casa alugada, os pratos com bordas pretas.
Iam ao cinema quando ela sugeria, nunca ele, e enquanto o diploma alavancara a carreira dela de imediato, ele permanecia onde sempre estivera, batendo laje; parecia que ela tinha fome de viver, enquanto ele apenas vivia. No início, o fim começou assim:
Era noite.
Na cama.
Ela suspirou.
Ele levantou a cabeça e a encarou.
O que houve?
Ela respondeu:
Assim não.
A partir daí a coisa foi de “Então me mostra” para “Eu não tenho mais o que te ensinar”; de “Como assim?” para ela se levantando e dizendo “Eu não posso mais ficar te ensinando tudo, não posso ficar te carregando nas costas. Você precisa aprender sozinho”.
Michael ficou abismado com a calma dela ao desferir cada golpe, na escuridão que entrava pela janela.
Durante todo esse tempo em que estamos juntos, acho que você nunca chegou a... — Ela hesitou.
O quê?
Ela engoliu em seco, a menor das preparações.
Nunca chegou a tomar a iniciativa.
Iniciativa? Iniciativa pra quê?
Não sei... Pra tudo... Onde morar, o que fazer, o que comer, quando, onde e como nós...
Meu Deus, eu...
Ela ficou ainda mais ereta.
Você nunca me seduz. Nunca passa a sensação de que precisa me ter, a qualquer custo. Se dependesse de você, eu me sentiria sempre...
Ele preferia não saber.
Você se sentiria... como?
Em um tom ligeiramente mais brando:
Como o menino que puxei pro chão do meu quarto, ainda na casa dos meus pais...
Eu...
Mas não saiu mais nada.
Só eu.
Eu e o nada.
Eu e o abismo, e as roupas penduradas em uma cadeira… e Abbey ainda não tinha terminado.
E talvez todo o resto também, como eu disse...
Todo o resto?
Naquele momento, o quarto parecia uma costura prestes a rasgar.
Não sei. — Ela se empertigou ainda mais, tomando coragem. — Se não fosse por mim, talvez você nunca tivesse saído de casa. Talvez você estivesse lá até hoje, com aqueles capiaus de regata, fazendo faxina naquela merda de consultório e atirando tijolos para outros caras que atiram tijolos para outros caras.
Sentiu o coração ser corroído pela escuridão.
Eu fui bater na sua porta.
Só quando a cachorra morreu.
O golpe o acertou em cheio.
Esse tempo todo você só estava esperando para me tratar como um vira-lata?
(Tenho certeza de que esse trocadilho não foi intencional.)
Claro que não. Saiu sem querer. — Ela cruzou os braços, mas sem chegar a se cobrir, e estava tão linda e nua, com as clavículas tão pronunciadas. — Mas talvez eu sempre tivesse guardado isso dentro de mim.
Você tinha ciúme da cachorra?
Não! — Mais uma vez, a questão principal escapava a Michael. — É só que... é impossível não me perguntar por que você levou meses para bater na minha porta depois de passar tanto tempo só parado em frente à minha casa, olhando, esperando! Na esperança de que eu fosse fazer isso por você... que eu fosse correr atrás de você pela rua.
Você nunca fez isso.
Claro que não... Eu não poderia fazer isso. — Ela não sabia para onde olhar, então acabou olhando para o nada atrás dele. — Meu Deus, você não entende, né?
Esse comentário foi o último prego no caixão — uma verdade tão serena e tão brutal. O esforço consumiu todas as energias dela, mesmo que por um momento, e ela voltou a se deitar ao lado dele; sua bochecha parecia pedra contra o pescoço dele.
Sinto muito — disse ela. — Muito mesmo.
Contudo, sabe-se lá por quê, ele persistiu.
Talvez quisesse abraçar a derrota vindoura.
Me fala.
O gosto na voz dele. Era seco e arenoso, como se tivessem atirado nele todos aqueles tijolos, enfiado goela abaixo, um por um.
Só me fala o que posso fazer para consertar as coisas.
De repente, o ato de respirar se tornou uma modalidade olímpica, e onde estava Emil Zátopek quando Michael precisava dele? Por que não tinha treinado como aquele tcheco insano? Um atleta com aquele nível de resistência certamente suportaria bem um dia como aquele.
Já Michael…
Outra vez.
Me fala o que fazer, e eu vou consertar tudo.
Não dá.
A voz de Abbey estava na horizontal, largando as palavras sobre o peito dele. Sem ansiedade, sem dificuldade.
Sem a menor vontade de consertar ou ser consertada.
Talvez não haja mesmo nada a fazer — constatou. — Talvez seja isso. — Ela chegou a um ponto final, depois retomou: — Talvez nós não sejamos... uma boa combinação, ao contrário do que acreditávamos.
Ele suspirou, o último suspiro.
Mas eu te... — sua voz engasgou na garganta — ... tanto.
Eu sei. — Havia tanta pena na voz dela, mas era irredutível. — Eu também, mas talvez não seja o bastante.
Se ela tivesse usado uma agulha para desferir o golpe final, ele teria sangrado na cama até a morte.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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