A
entrada do senhor Ka no canto de muro foi realmente triunfal. Apenas
superior contar-se-á de Dondon, carijó heroica que iniciou as
façanhas devorando uma centopeia de dezesseis centímetros, dando
uma carreira olímpica em Gô e obrigando Titius e Licosa a uma
quarentena rigorosa nos aposentos particulares, assombrados com a
belicosidade do galináceo invicto. A cobrinha-de-coral também teve
o seu minuto de celebridade mas noutra acepção.
O
senhor Ka impôs-se pela originalidade de sua presença e
naturalidade dos gestos que decidiram sua aceitação na comunidade.
Passou
num voo baixo e zumbidor, chamando atenção e despertando
curiosidades. Os élitros estendidos, imóveis, protegiam a vibração
das asas membranosas, propulsoras, varando o espaço. Parecia um
helicóptero. Passou raseiro, numa reta que não teria fim deduzível.
Enfiou-se por uma teia de aranha no tinhorão e atravessou-a,
deixando o rasgão poligonal que sobremaneira indignou a proprietária
e construtora. Perdendo o equilíbrio, precipitou-se numa descida de
cabeça, capotando espetacularmente nos arredores do sapotizeiro.
Ficou de pernas para o ar, agitando-se como se fizesse ginástica
muscular, procurando alcançar o chão com uma das patas posteriores.
Conseguindo-o, empurrou o corpanzil teimosamente, ajudando-se com uma
pata dianteira e voltou-se, retomando a posição comum a todos os
coleópteros deste mundo e unanimidade zoológica, exceto um peixe
Synodontis, do Nilo, que se dá ao excentrismo de nadar com a barriga
para cima.
Meio
enleado nos restos da teia que destroçara, o senhor Ka continuou a
marcha pedestre, firme e decidida na pista da brecha do muro e por
ela se meteu, resoluto, desaparecendo.
No
campo vizinho, logo à esquerda da fenda no muro, segue-se uma linha
de montes de esterco. Foram deixados pelas vacas, bezerros e cavalos
que vêm aproveitar o capim novo no terreno abandonado. Não podem
ser motivos de atenção pública e sim acidental interesse
individual porque, três ou quatro vezes por ano, são removidos para
a vendagem como adubos de jardins. Cada monte de estrume é um mundo
com seus habitantes, meios de vida, uma fauna e uma flora próprias,
desenvolvendo-se na dependência do lixo orgânico. Ali reside, há
muito tempo, o senhor Ka. Escolheu inteligentemente o montão mais
antigo, mais amarelecido embora merecendo renovação
aprovisionadora. As porções mais próximas da estrada é que são
exploradas comumente porque dão menos trabalho ao carreto. O velho
montão do muro é um sinal na deriva, uma montureira que daria
rendimento bem inferior às coletas do resto do campo. Por isso é
mais rico nas vidas residenciais e sua tranquilidade garante a
multiplicação pacata de uma população que nunca foi recenseada.
O
senhor Ka é um escaravelho de quatro centímetros, negro-ébano com
reflexos metálicos, lampejos do bronze rico e do cobre ornamental,
seis patas sólidas, recurvadas como de campeão de luta romana, as
dianteiras dentadas e temíveis. Os élitros cobrem-no inteiramente
como uma couraça, ocultando a transparência resistente das asas de
pergaminho, finas e vibrantes. Na testa maciça, baixa, obstinada,
chapeada de ferro, ergue-se um acúleo, rostro de agressão e
utilidade, ponta córnea que lembra os espigões decorativos dos
antigos capacetes da imperial Alemanha. Anda devagar, pesado, pisando
com segurança, como encouraçado vencendo onda solta. Dá uma
impressão imediata de força, solidez, resistência, tenacidade.
Nenhuma
força existente no mundo relativa ao peso pode comparar-se com a do
senhor Ka. Se ele fosse do tamanho de um gato carregaria um elefante.
Mal consigo imobilizá-lo nas polpas do indicador e polegar. Quando
tenta abrir caminho com as serrilhadas dianteiras sente-se o poder
impressionante do pequeno escarabeu poderoso.
Nunca
lhe dei importância pela facilidade com que o via na chácara onde
me criei, habitual e familiar ao redor do estábulo. Quotidana
vilescunt... As coisas vistas diariamente perdem insensivelmente
o valor. A surpresa foi depará-lo nas coleções egípcias dos
museus europeus como símbolo sagrado, o khopirron do deus Phtah. O
espanto de ver o humilde copeiro sendo ministro de Estado ou o
chauffer comandando uma brigada. Pude vê-lo em argila, vidro,
esmalte, marfim, ouro, cornalina, sardônica, ônix, joia de respeito
divino no Egito, Fenícia, Chipre, Sicília, Sardenha, nas necrópoles
púnicas, nos túmulos dos reis, protetor e indiscutível,
representando um deus. Não havia dúvida. Era o escaravelho tão meu
conhecido. Com esta preparação psicológica tratei de olhar o
senhor Ka noutras perspectivas venerandas.
Era
dedicado ao deus Phtah, associado aos mais antigos deuses de Mênfis,
Tanen, deus da terra, Sokari, deus da vegetação. Estava ligado aos
mistérios da fecundação, sabendo os segredos impenetráveis da
germinação das plantas, explicações a vida humana. Vivia no seio
da terra, nas trevas, num trabalho obscuro e silencioso. Não podia
ser morto. Secando, guardavam-no nos hipogeus como uma relíquia. E
eu, que nenhuma atenção dava ao senhor Ka!... Ignorância,
sacrilégio, atrevimento!
Um
pouco a culpa cabia ao senhor Ka pelos nomes que usava: rola-bosta,
fofa-bosta não são títulos que imprimam respeito às crianças.
Sua utilidade era arrastar carrinhos de papel ou de caixa de fósforos
ou, amarrando-se ao corno um fósforo aceso, vê-lo deslocar-se
naquela lamapadaforia trágica. Quando o vi imóvel nas mostras de
cristal, apresentado com discursos preliminares de professores
famosos, alemães barbudos e graves, norte-americanos escanhoados e
sorridentes, tomei-me de pavor sagrado. Quando voltei a encontrá-lo,
ocupadíssimo nos estercos do quintal, tratei de acompanhar-lhe vida
e atos como quem registra as originalidades excêntricas de um sábio
amalucado ou dum rei meio demente.
O
senhor Ka vive nos estercos e dos estercos. É natural que use um
dispensável perfume de matérias fecais. O cheiro nos animais
mereceria investigação que teria o mérito de divertir e ocupar
quem se encarregasse desta maravilha. Há odores pouco explicáveis
como a saúva trazer uns leves de laranja e os micos um tanto de
canela, que eles nunca viram. Adianto que as raças humanas possuem
perfumes próprios, que os africanos e asiáticos, quando começaram
a receber a civilização branca com metralhadoras e mortes, diziam
sentir. Os grandes felinos conservam no faro estas distinções. Como
as onças no Brasil e os leões na África preferem a carne dos
negros à dos brancos, seguem com mais paciência os rastros daqueles
do que destes. Os indígenas brasileiros de fala tupi afirmavam que o
branco cheirava a peixe, opitu; o negro fede, ocatinga, e eles,
osakena, cheiram bem. Na velha China Imperial identificava-se a moeda
de ouro intacta cheirando-a. Todas as coisas têm aromas
intransferíveis. Há quem possa precisá-los, individualizando
centenas deles. Um perfume é uma entidade perfeita. Não há
sinônimo. But that is another story…
No
seu monturo a que os excrementos dão consistência e volume, o
senhor Ka é, como dizem os bem-falantes, um inseto estercorário.
Faz belas bolas de excretos, abre um túnel e leva a preciosidade
para saboreá-la sozinho, longe de invejosos e concorrentes.
Vê-lo
construir sua bola excrementícia é uma admiração. A cabeça
sólida e as patinhas dentadas servem de garfos juntadores e quando a
primeira porção atinge volume apreciável, o senhor Ka arredonda-a
com as patas, empurrões de cabeça ajeitadora, arrumando-a com a
pressão eficaz dos membros na massa ainda fofa que também sofre a
revisão das patas anteriores, legítimo compasso esférico. As patas
traseiras funcionam como réguas, pondo as saliências na justa
medida e o volume se adensa, lento e seguro, na forma desejada. Nunca
o senhor Ka está satisfeito da obra e a aperfeiçoa e completa com
requintes de acabamento cuidadoso. Não roda a obra para obter a
esfera. Trabalha empoleirado no alto, sem descer e sem ir verificando
se a massa toma a forma arredondada. J. H. Fabre, que o estudou
longamente, crê que o escaravelho possua o dom da esfera como a
abelha o dom do prisma hexagonal. Chegam à mesma perfeição e
exatitude geométrica independentes de aparelhagem conformadora.
Pronta,
rola-a destramente, trepado e firme nos dois pares de patas, a cabeça
para baixo e as patas anteriores servindo de motores para a impulsão.
A bola se desloca incessantemente mas o senhor Ka é motor traseiro,
impelindo-a pela parte de trás. Assim não vê o caminho seguido
pela sua bola, dez vezes maior que o próprio artífice,
movimentando-a tão somente com as duas patinhas primeiras, as duas
mãos hábeis, cabeça no nível do chão, segurando o bolo com as
quatro patas firmes, fincadas na massa.
Dispenso-me
de meditar duas horas sobre esta habilidade do senhor Ka e as
excelências do seu instinto. O alimento será absorvido numa câmara
subterrânea e não ao ar livre. Tem de ser transportado para o local
da consumação. Este nunca é próximo da fonte de produção. A
forma esferoidal impunha-se como simplificadora para a viagem,
podendo suster-se, com base de apoio em qualquer ponto, nas paradas
necessárias ao correr do percurso. Criado sem escola, sem o modelo
da obra que terá de fazer a vida inteira, nasce sabendo, já doutor
formado. Nunca vi uma bola excrementícia do senhor Ka desfazer-se,
desmanchar-se durante a jornada e nem mesmo ceder à pressão do
terreno, fazendo reentrância, dificultando a deslocação. Fica
intacta seja qual for o percurso e só se deforma quando saboreada
pelo seu construtor.
Repetindo
experiência de J.-H. Fabre, fiz o bolo, empurrado pelo senhor Ka,
mergulhar parcialmente numa pequenina escavação. Queria verificar
se era verdade que os escaravelhos pediam auxílio aos companheiros e
vinha uma turma ajudá-lo a repor sua carga no justo rumo. Fabre
tinha razão. Depois de tentativas teimosas, o escaravelho abandonou
o bolo. A que ficou encravada secou, ressecou, tornou-se escura,
negra, pétrea mas indeformável. O senhor Ka sabe escolher e dispor
os materiais de sua obra essencial.
Nunca
tive ocasião de presenciar o que J.-H. Fabre registrou
deliciosamente: – a bola assaltada por outro escaravelho, a luta
como proprietário, vitória ou derrota deste. Fabre constatou o
banditismo entre os escaravelhos, numa abundância lastimável e
quase humana.
Atingido
um determinado local começa o trabalho de um túnel que será a via
de acesso ao salão de jantar do senhor Ka, residência simples,
confortável, de temperatura igual, mesmo quando o inseto,
previdentemente, cerra, obstruindo com areia ou barro o orifício da
entrada do seu manoir.
O
instinto é impecável nas dimensões da bola e o pórtico do túnel
e sua extensão. Nunca um escarabeu errou nestas proporções. As
bolas são roladas conscientemente e desaparecem no túnel, levadas
até o interior sem tropeços e dificuldades materiais. Jamais o
senhor Ka, seduzido pela abundância excrementosa ao alcance de suas
patas, deixou-se levar pela ambição de uma esfera maior, diminuindo
o trabalho futuro, garantindo subsistência para mais alguns dias. Os
globos têm diâmetro inferior ao túnel. O gabarito é inalterável
e obedecido. Não há exemplo de haver encalhado na porta e obrigar o
escaravelho a minguar sua carga para fazê-la deslizar.
Aqui
cabe um confronto com os macacos, que se dizem inteligentes e cheios
de manhas próximas das do homem. Todos sabem que o macaco metendo a
mão na cumbuca onde puseram fruta do seu agrado agarra-a e não mais
pode retirar o membro que aumentou na extremidade pela preensão. Por
mais que veja aproximar-se o caçador e saiba que sua liberdade vai
desaparecer, guincha e rosna como um desesperado, mas a ambição
famélica não lhe permite o gesto lógico de abrir a mão e fugir. O
senhor Ka, cercado pelo monte fácil do seu alimento predileto e
único, retira unicamente o necessário para certos dias,
constituindo o bolo de tantos centímetros inapeláveis. Sempre um
escaravelho aproveita seu trabalho. Não podemos dizer
semelhantemente do macaco que meteu a mão na cumbuca.
O
senhor Ka alimenta-se exclusivamente de fezes. Gosto não se discute.
Mas é uma anotação entomoloica mais ou menos caduca e apenas
teimosa em repetir-se. Examinando-se o estômago de um escaravelho
encontrar-se-á a massa de resíduos vegetais, fragmentos de fibras
que deviam ter contido sumos e muito pouco excremento envolto com
restos das plantas que o senhor Ka extraiu da matéria excretada. O
que ele procura na excreção é o que resta dos vegetais consumidos
pelos animais. O senhor Ka possui no estômago fermentos capazes de
transformar o vegetal em produto assimilável. Não tem fórmula de
retirar a celulose que envolve as células dos vegetais. Precisa que
alguém realize esta transformação anterior. Nos produtos que são
a derradeira fase digestiva de bois, vacas, cavalos, carneiros, os
vestígios, os restos, os resíduos alimentares deparados são
bastantes para o sustento substancial do escaravelho. O excremento é
apenas o conduto, o veículo. Vamos confessar que o veículo é
nauseante mas para o senhor Ka não se trata de escolhas. Há
milhares de anos que se habituou com esta nutrição. Para encontrar
o necessário há que deglutir quantidades proporcionais. Daí a
surpresa de J.-H. Fabre vendo um escaravelho alimentar-se doze horas
seguidas, produzindo uma fita dejetória de três metros de extensão.
Os alimentos do senhor Ka são caçados na massa estercorária como
agulha em palheiro.
As
formigas brancas, cupins, térmitas padecem da mesma deficiência.
Devoram madeira com notável voracidade mas não a podem libertar da
celulose envolvente e torná-la substância digerível. Hospedam no
intestino um parasita flagelado e este toma a si o cuidado da
transformação indispensável. Se o flagelado não estiver no
intestino do cupim, formiga branca, térmita, este roerá uma
floresta inteira e sucumbirá de fome. O alimento continuará
intacto, indigerível, no estômago. O trabalho do parasita flagelado
para o amigo cupim é idêntico ao que realizam, previamente, os
ruminantes para o senhor Ka.
Curioso
é que os ruminantes têm o mesmo processo para a retirada da
celulose. Não têm fermentos intestinais com força diluidora contra
a celulose e sim o micróbio, Bacillus amylobacter, que é o único
responsável químico pela operação. Nós mesmos, os sapiens,
oferecemos no intestino generosa e permanente guarida ao Bacillus
amylobacter para que gentilmente desfaça a celulose que ingerimos e
assim possamos desfrutar intrinsecamente os alimentos que deglutimos
com ela, feijão, ervilha, espinafre, couve, repolho, alface, maçã,
pera, uvas, laranjas…
O
senhor Ka, não se sabe por que, não quis receber um micróbio
prestante para vencer o envelope da celulose e permitir-lhe
assimilação do conteúdo. Come justamente o que não mais contém
celulose e pode imediatamente incorporar à sua economia interna.
O
senhor Ka arranjou para ele e seus distantes ascendentes a fama de
coprófagos e dificilmente o renome se afastará da espécie. Não há
livro divulgativo e conversa fácil em que não venha a citação do
escaravelho com seu repulsivo cardápio de um só prato. Realmente, e
de certo modo indireto, trata-se de um vegetariano exclusivo na
ortodoxia plena do regime.
Tendo
doze anéis nas mandíbulas pode mastigar e daí o aproveitamento
integral do que escapa, fragmentado, dos intestinos preparadores.
É
monógamo vitalício. A senhora Ka não usa o apêndice de quitina no
alto da testa, atributo ameaçador mas estranho para o seu sexo. As
larvas são compridas, moles, esbranquiçadas, cegas e de cabeça
dura. A senhora Ka constrói uma morada de maravilhosas proporções
para cada filho em estado larvar. Uma pequenina pera de meio
centímetro guarda no interior do colo a larva de dez milímetros. A
casa piriforme é feita de camadas alimentícias, sabiamente
selecionadas, atendendo ao desenvolvimento proporcional da larva à
ninfa, com a nutrição adequada às possibilidades funcionais da
mastigação no interior da cápsula que o sol se encarrega de
fecundar com o calor generoso. Três meses depois, o jovem
escaravelho rompe a casa cujas paredes se foram adelgaçando com a
consumição alimentar e, quando necessário, reforçadas com as
próprias dejeções da larva, e ganha liberdade e luz, ocupando o
posto na série da família de gastrônomos e engenheiros natos.
A
senhora Ka preparou-lhe a casa para a fase do crescimento mas nunca o
verá. O jovem Ka nasceu sozinho e sua vida dentro da pera foi um
rude aprendizado funcional e solitário, recebendo as lições de
ação e prudência pela telestesia do instinto miraculoso. Nunca viu
um outro escaravelho nas tarefas milenárias. Bêbado de sol,
hesitante, bambo, encaminha-se para a esterqueira guiado pelo aroma
familiar dos excretos. Jamais se enganará confiando no seu odorat
sans intermittence dans son activité, como anotou Fabre. Modela
sua primeira bola com a perfeição tradicional, as patas posteriores
dando os graus da curva indispensável à esfera que as patas
dianteira e a cabeça maciça avolumam com precisão e segurança.
Depois empurra-a, impecável, com o primeiro par de patas, roule
sa pipule à reculons, escolhendo estrada, evitando ou afastando
obstáculos, abrindo o túnel e, mergulhado na areia tépida, instala
sua sala de refeições. Para lá leva o bolo, desce-o com precaução,
acomoda-o, cerra a porta, e tranquilo, inicia a festa solitária
cujas alegrias, oh Café Society, não percebereis!
Uma
boa aventura do senhor Ka foi o seu encontro com o mandarim Fu que ia
visitar os amigos na vigília derredor do foco da lâmpada da estrada
morta. O caminho passa justamente pela cidade do senhor Ka e este,
vindo de um dos seus voos de reconhecimento, denunciados pelo rouco
zumbido do motor potente, desceu a poucos palmos do mandarim. Fu
adiantou-se lentamente e, sem observação prévia, colheu o senhor
Ka na grande bocarra acolhedora. O senhor Ka não perdeu tempo e fez
render toda técnica alusiva. Deduzo, embora não tenha muitos
correligionários para esta conclusão, que o camarada escaravelho
possui, pelo menos neste momento, uma memória raciocinada que o
permitiu rearticular uma série de movimentos imediatos e eficazes,
perfeitamente dentro do conceito americano do elaborate behaviour
aplicado aos coleópteros, escarabídeos, lamelicórneos.
Entraram em ação as patas serrilhadas e o pontão agudo da testa,
ambos em coerente função local, rasgando e furando a mucosa bucal
do mandarim Fu, surpreendido pela reação em parte sensível e
desacostumada. Durou apenas uns dois segundos e Fu abrindo a boca e
estirando a língua grossa, mole e visguenta, cuspiu o senhor Ka para
longe. Cada um dos personagens retomou seu destino. O senhor Ka
perdeu algum tempo enxugando-se da baba do mandarim.
Cavando
túneis e enchendo-os de excrementos o senhor Ka e sua família,
parentes e aderentes, contribuem visivelmente para a adubação das
terras, defendendo a criminosa dispersão do azoto e fósforo.
Não
tenho a menor intenção oposicionista em vetar semelhante programa,
sábia e classicamente exposto com a única benemerência da família
Ka desde que aderiram ao regime vegetariano depois da esperada
digestão dos bois, cavalos e cabras. São pontos em que o esterco
melhorará o teor orgânico no plano edafológico mas não são em
número e extensão concorrentes para uma melhoria real. Muito mais
eficientes são as tristes e perseguidas minhocas cuja expansão é
muitíssimo maior, incessantemente revolvendo o subsolo numa
obstinação terebrante a que nenhum arado de discos ou de garfos
concorrerá.
O
senhor Ka para mim, com sua respeitável antiguidade clássica de
amigo dos deuses Phath, Tanen e Sokari, vivo nos camafeus bonitos,
amuleto de fecundidade, é a inutilidade virtuosa.
É
um lindo título para juntar-se ao de khopirron sagrado.
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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