sexta-feira, 17 de maio de 2024

Ka ou a inutilidade virtuosa


A entrada do senhor Ka no canto de muro foi realmente triunfal. Apenas superior contar-se-á de Dondon, carijó heroica que iniciou as façanhas devorando uma centopeia de dezesseis centímetros, dando uma carreira olímpica em Gô e obrigando Titius e Licosa a uma quarentena rigorosa nos aposentos particulares, assombrados com a belicosidade do galináceo invicto. A cobrinha-de-coral também teve o seu minuto de celebridade mas noutra acepção.
O senhor Ka impôs-se pela originalidade de sua presença e naturalidade dos gestos que decidiram sua aceitação na comunidade.
Passou num voo baixo e zumbidor, chamando atenção e despertando curiosidades. Os élitros estendidos, imóveis, protegiam a vibração das asas membranosas, propulsoras, varando o espaço. Parecia um helicóptero. Passou raseiro, numa reta que não teria fim deduzível. Enfiou-se por uma teia de aranha no tinhorão e atravessou-a, deixando o rasgão poligonal que sobremaneira indignou a proprietária e construtora. Perdendo o equilíbrio, precipitou-se numa descida de cabeça, capotando espetacularmente nos arredores do sapotizeiro. Ficou de pernas para o ar, agitando-se como se fizesse ginástica muscular, procurando alcançar o chão com uma das patas posteriores. Conseguindo-o, empurrou o corpanzil teimosamente, ajudando-se com uma pata dianteira e voltou-se, retomando a posição comum a todos os coleópteros deste mundo e unanimidade zoológica, exceto um peixe Synodontis, do Nilo, que se dá ao excentrismo de nadar com a barriga para cima.
Meio enleado nos restos da teia que destroçara, o senhor Ka continuou a marcha pedestre, firme e decidida na pista da brecha do muro e por ela se meteu, resoluto, desaparecendo.
No campo vizinho, logo à esquerda da fenda no muro, segue-se uma linha de montes de esterco. Foram deixados pelas vacas, bezerros e cavalos que vêm aproveitar o capim novo no terreno abandonado. Não podem ser motivos de atenção pública e sim acidental interesse individual porque, três ou quatro vezes por ano, são removidos para a vendagem como adubos de jardins. Cada monte de estrume é um mundo com seus habitantes, meios de vida, uma fauna e uma flora próprias, desenvolvendo-se na dependência do lixo orgânico. Ali reside, há muito tempo, o senhor Ka. Escolheu inteligentemente o montão mais antigo, mais amarelecido embora merecendo renovação aprovisionadora. As porções mais próximas da estrada é que são exploradas comumente porque dão menos trabalho ao carreto. O velho montão do muro é um sinal na deriva, uma montureira que daria rendimento bem inferior às coletas do resto do campo. Por isso é mais rico nas vidas residenciais e sua tranquilidade garante a multiplicação pacata de uma população que nunca foi recenseada.
O senhor Ka é um escaravelho de quatro centímetros, negro-ébano com reflexos metálicos, lampejos do bronze rico e do cobre ornamental, seis patas sólidas, recurvadas como de campeão de luta romana, as dianteiras dentadas e temíveis. Os élitros cobrem-no inteiramente como uma couraça, ocultando a transparência resistente das asas de pergaminho, finas e vibrantes. Na testa maciça, baixa, obstinada, chapeada de ferro, ergue-se um acúleo, rostro de agressão e utilidade, ponta córnea que lembra os espigões decorativos dos antigos capacetes da imperial Alemanha. Anda devagar, pesado, pisando com segurança, como encouraçado vencendo onda solta. Dá uma impressão imediata de força, solidez, resistência, tenacidade.
Nenhuma força existente no mundo relativa ao peso pode comparar-se com a do senhor Ka. Se ele fosse do tamanho de um gato carregaria um elefante. Mal consigo imobilizá-lo nas polpas do indicador e polegar. Quando tenta abrir caminho com as serrilhadas dianteiras sente-se o poder impressionante do pequeno escarabeu poderoso.
Nunca lhe dei importância pela facilidade com que o via na chácara onde me criei, habitual e familiar ao redor do estábulo. Quotidana vilescunt... As coisas vistas diariamente perdem insensivelmente o valor. A surpresa foi depará-lo nas coleções egípcias dos museus europeus como símbolo sagrado, o khopirron do deus Phtah. O espanto de ver o humilde copeiro sendo ministro de Estado ou o chauffer comandando uma brigada. Pude vê-lo em argila, vidro, esmalte, marfim, ouro, cornalina, sardônica, ônix, joia de respeito divino no Egito, Fenícia, Chipre, Sicília, Sardenha, nas necrópoles púnicas, nos túmulos dos reis, protetor e indiscutível, representando um deus. Não havia dúvida. Era o escaravelho tão meu conhecido. Com esta preparação psicológica tratei de olhar o senhor Ka noutras perspectivas venerandas.
Era dedicado ao deus Phtah, associado aos mais antigos deuses de Mênfis, Tanen, deus da terra, Sokari, deus da vegetação. Estava ligado aos mistérios da fecundação, sabendo os segredos impenetráveis da germinação das plantas, explicações a vida humana. Vivia no seio da terra, nas trevas, num trabalho obscuro e silencioso. Não podia ser morto. Secando, guardavam-no nos hipogeus como uma relíquia. E eu, que nenhuma atenção dava ao senhor Ka!... Ignorância, sacrilégio, atrevimento!
Um pouco a culpa cabia ao senhor Ka pelos nomes que usava: rola-bosta, fofa-bosta não são títulos que imprimam respeito às crianças. Sua utilidade era arrastar carrinhos de papel ou de caixa de fósforos ou, amarrando-se ao corno um fósforo aceso, vê-lo deslocar-se naquela lamapadaforia trágica. Quando o vi imóvel nas mostras de cristal, apresentado com discursos preliminares de professores famosos, alemães barbudos e graves, norte-americanos escanhoados e sorridentes, tomei-me de pavor sagrado. Quando voltei a encontrá-lo, ocupadíssimo nos estercos do quintal, tratei de acompanhar-lhe vida e atos como quem registra as originalidades excêntricas de um sábio amalucado ou dum rei meio demente.
O senhor Ka vive nos estercos e dos estercos. É natural que use um dispensável perfume de matérias fecais. O cheiro nos animais mereceria investigação que teria o mérito de divertir e ocupar quem se encarregasse desta maravilha. Há odores pouco explicáveis como a saúva trazer uns leves de laranja e os micos um tanto de canela, que eles nunca viram. Adianto que as raças humanas possuem perfumes próprios, que os africanos e asiáticos, quando começaram a receber a civilização branca com metralhadoras e mortes, diziam sentir. Os grandes felinos conservam no faro estas distinções. Como as onças no Brasil e os leões na África preferem a carne dos negros à dos brancos, seguem com mais paciência os rastros daqueles do que destes. Os indígenas brasileiros de fala tupi afirmavam que o branco cheirava a peixe, opitu; o negro fede, ocatinga, e eles, osakena, cheiram bem. Na velha China Imperial identificava-se a moeda de ouro intacta cheirando-a. Todas as coisas têm aromas intransferíveis. Há quem possa precisá-los, individualizando centenas deles. Um perfume é uma entidade perfeita. Não há sinônimo. But that is another story…
No seu monturo a que os excrementos dão consistência e volume, o senhor Ka é, como dizem os bem-falantes, um inseto estercorário. Faz belas bolas de excretos, abre um túnel e leva a preciosidade para saboreá-la sozinho, longe de invejosos e concorrentes.
Vê-lo construir sua bola excrementícia é uma admiração. A cabeça sólida e as patinhas dentadas servem de garfos juntadores e quando a primeira porção atinge volume apreciável, o senhor Ka arredonda-a com as patas, empurrões de cabeça ajeitadora, arrumando-a com a pressão eficaz dos membros na massa ainda fofa que também sofre a revisão das patas anteriores, legítimo compasso esférico. As patas traseiras funcionam como réguas, pondo as saliências na justa medida e o volume se adensa, lento e seguro, na forma desejada. Nunca o senhor Ka está satisfeito da obra e a aperfeiçoa e completa com requintes de acabamento cuidadoso. Não roda a obra para obter a esfera. Trabalha empoleirado no alto, sem descer e sem ir verificando se a massa toma a forma arredondada. J. H. Fabre, que o estudou longamente, crê que o escaravelho possua o dom da esfera como a abelha o dom do prisma hexagonal. Chegam à mesma perfeição e exatitude geométrica independentes de aparelhagem conformadora.
Pronta, rola-a destramente, trepado e firme nos dois pares de patas, a cabeça para baixo e as patas anteriores servindo de motores para a impulsão. A bola se desloca incessantemente mas o senhor Ka é motor traseiro, impelindo-a pela parte de trás. Assim não vê o caminho seguido pela sua bola, dez vezes maior que o próprio artífice, movimentando-a tão somente com as duas patinhas primeiras, as duas mãos hábeis, cabeça no nível do chão, segurando o bolo com as quatro patas firmes, fincadas na massa.
Dispenso-me de meditar duas horas sobre esta habilidade do senhor Ka e as excelências do seu instinto. O alimento será absorvido numa câmara subterrânea e não ao ar livre. Tem de ser transportado para o local da consumação. Este nunca é próximo da fonte de produção. A forma esferoidal impunha-se como simplificadora para a viagem, podendo suster-se, com base de apoio em qualquer ponto, nas paradas necessárias ao correr do percurso. Criado sem escola, sem o modelo da obra que terá de fazer a vida inteira, nasce sabendo, já doutor formado. Nunca vi uma bola excrementícia do senhor Ka desfazer-se, desmanchar-se durante a jornada e nem mesmo ceder à pressão do terreno, fazendo reentrância, dificultando a deslocação. Fica intacta seja qual for o percurso e só se deforma quando saboreada pelo seu construtor.
Repetindo experiência de J.-H. Fabre, fiz o bolo, empurrado pelo senhor Ka, mergulhar parcialmente numa pequenina escavação. Queria verificar se era verdade que os escaravelhos pediam auxílio aos companheiros e vinha uma turma ajudá-lo a repor sua carga no justo rumo. Fabre tinha razão. Depois de tentativas teimosas, o escaravelho abandonou o bolo. A que ficou encravada secou, ressecou, tornou-se escura, negra, pétrea mas indeformável. O senhor Ka sabe escolher e dispor os materiais de sua obra essencial.
Nunca tive ocasião de presenciar o que J.-H. Fabre registrou deliciosamente: – a bola assaltada por outro escaravelho, a luta como proprietário, vitória ou derrota deste. Fabre constatou o banditismo entre os escaravelhos, numa abundância lastimável e quase humana.
Atingido um determinado local começa o trabalho de um túnel que será a via de acesso ao salão de jantar do senhor Ka, residência simples, confortável, de temperatura igual, mesmo quando o inseto, previdentemente, cerra, obstruindo com areia ou barro o orifício da entrada do seu manoir.
O instinto é impecável nas dimensões da bola e o pórtico do túnel e sua extensão. Nunca um escarabeu errou nestas proporções. As bolas são roladas conscientemente e desaparecem no túnel, levadas até o interior sem tropeços e dificuldades materiais. Jamais o senhor Ka, seduzido pela abundância excrementosa ao alcance de suas patas, deixou-se levar pela ambição de uma esfera maior, diminuindo o trabalho futuro, garantindo subsistência para mais alguns dias. Os globos têm diâmetro inferior ao túnel. O gabarito é inalterável e obedecido. Não há exemplo de haver encalhado na porta e obrigar o escaravelho a minguar sua carga para fazê-la deslizar.
Aqui cabe um confronto com os macacos, que se dizem inteligentes e cheios de manhas próximas das do homem. Todos sabem que o macaco metendo a mão na cumbuca onde puseram fruta do seu agrado agarra-a e não mais pode retirar o membro que aumentou na extremidade pela preensão. Por mais que veja aproximar-se o caçador e saiba que sua liberdade vai desaparecer, guincha e rosna como um desesperado, mas a ambição famélica não lhe permite o gesto lógico de abrir a mão e fugir. O senhor Ka, cercado pelo monte fácil do seu alimento predileto e único, retira unicamente o necessário para certos dias, constituindo o bolo de tantos centímetros inapeláveis. Sempre um escaravelho aproveita seu trabalho. Não podemos dizer semelhantemente do macaco que meteu a mão na cumbuca.
O senhor Ka alimenta-se exclusivamente de fezes. Gosto não se discute. Mas é uma anotação entomoloica mais ou menos caduca e apenas teimosa em repetir-se. Examinando-se o estômago de um escaravelho encontrar-se-á a massa de resíduos vegetais, fragmentos de fibras que deviam ter contido sumos e muito pouco excremento envolto com restos das plantas que o senhor Ka extraiu da matéria excretada. O que ele procura na excreção é o que resta dos vegetais consumidos pelos animais. O senhor Ka possui no estômago fermentos capazes de transformar o vegetal em produto assimilável. Não tem fórmula de retirar a celulose que envolve as células dos vegetais. Precisa que alguém realize esta transformação anterior. Nos produtos que são a derradeira fase digestiva de bois, vacas, cavalos, carneiros, os vestígios, os restos, os resíduos alimentares deparados são bastantes para o sustento substancial do escaravelho. O excremento é apenas o conduto, o veículo. Vamos confessar que o veículo é nauseante mas para o senhor Ka não se trata de escolhas. Há milhares de anos que se habituou com esta nutrição. Para encontrar o necessário há que deglutir quantidades proporcionais. Daí a surpresa de J.-H. Fabre vendo um escaravelho alimentar-se doze horas seguidas, produzindo uma fita dejetória de três metros de extensão. Os alimentos do senhor Ka são caçados na massa estercorária como agulha em palheiro.
As formigas brancas, cupins, térmitas padecem da mesma deficiência. Devoram madeira com notável voracidade mas não a podem libertar da celulose envolvente e torná-la substância digerível. Hospedam no intestino um parasita flagelado e este toma a si o cuidado da transformação indispensável. Se o flagelado não estiver no intestino do cupim, formiga branca, térmita, este roerá uma floresta inteira e sucumbirá de fome. O alimento continuará intacto, indigerível, no estômago. O trabalho do parasita flagelado para o amigo cupim é idêntico ao que realizam, previamente, os ruminantes para o senhor Ka.
Curioso é que os ruminantes têm o mesmo processo para a retirada da celulose. Não têm fermentos intestinais com força diluidora contra a celulose e sim o micróbio, Bacillus amylobacter, que é o único responsável químico pela operação. Nós mesmos, os sapiens, oferecemos no intestino generosa e permanente guarida ao Bacillus amylobacter para que gentilmente desfaça a celulose que ingerimos e assim possamos desfrutar intrinsecamente os alimentos que deglutimos com ela, feijão, ervilha, espinafre, couve, repolho, alface, maçã, pera, uvas, laranjas…
O senhor Ka, não se sabe por que, não quis receber um micróbio prestante para vencer o envelope da celulose e permitir-lhe assimilação do conteúdo. Come justamente o que não mais contém celulose e pode imediatamente incorporar à sua economia interna.
O senhor Ka arranjou para ele e seus distantes ascendentes a fama de coprófagos e dificilmente o renome se afastará da espécie. Não há livro divulgativo e conversa fácil em que não venha a citação do escaravelho com seu repulsivo cardápio de um só prato. Realmente, e de certo modo indireto, trata-se de um vegetariano exclusivo na ortodoxia plena do regime.
Tendo doze anéis nas mandíbulas pode mastigar e daí o aproveitamento integral do que escapa, fragmentado, dos intestinos preparadores.
É monógamo vitalício. A senhora Ka não usa o apêndice de quitina no alto da testa, atributo ameaçador mas estranho para o seu sexo. As larvas são compridas, moles, esbranquiçadas, cegas e de cabeça dura. A senhora Ka constrói uma morada de maravilhosas proporções para cada filho em estado larvar. Uma pequenina pera de meio centímetro guarda no interior do colo a larva de dez milímetros. A casa piriforme é feita de camadas alimentícias, sabiamente selecionadas, atendendo ao desenvolvimento proporcional da larva à ninfa, com a nutrição adequada às possibilidades funcionais da mastigação no interior da cápsula que o sol se encarrega de fecundar com o calor generoso. Três meses depois, o jovem escaravelho rompe a casa cujas paredes se foram adelgaçando com a consumição alimentar e, quando necessário, reforçadas com as próprias dejeções da larva, e ganha liberdade e luz, ocupando o posto na série da família de gastrônomos e engenheiros natos.
A senhora Ka preparou-lhe a casa para a fase do crescimento mas nunca o verá. O jovem Ka nasceu sozinho e sua vida dentro da pera foi um rude aprendizado funcional e solitário, recebendo as lições de ação e prudência pela telestesia do instinto miraculoso. Nunca viu um outro escaravelho nas tarefas milenárias. Bêbado de sol, hesitante, bambo, encaminha-se para a esterqueira guiado pelo aroma familiar dos excretos. Jamais se enganará confiando no seu odorat sans intermittence dans son activité, como anotou Fabre. Modela sua primeira bola com a perfeição tradicional, as patas posteriores dando os graus da curva indispensável à esfera que as patas dianteira e a cabeça maciça avolumam com precisão e segurança. Depois empurra-a, impecável, com o primeiro par de patas, roule sa pipule à reculons, escolhendo estrada, evitando ou afastando obstáculos, abrindo o túnel e, mergulhado na areia tépida, instala sua sala de refeições. Para lá leva o bolo, desce-o com precaução, acomoda-o, cerra a porta, e tranquilo, inicia a festa solitária cujas alegrias, oh Café Society, não percebereis!
Uma boa aventura do senhor Ka foi o seu encontro com o mandarim Fu que ia visitar os amigos na vigília derredor do foco da lâmpada da estrada morta. O caminho passa justamente pela cidade do senhor Ka e este, vindo de um dos seus voos de reconhecimento, denunciados pelo rouco zumbido do motor potente, desceu a poucos palmos do mandarim. Fu adiantou-se lentamente e, sem observação prévia, colheu o senhor Ka na grande bocarra acolhedora. O senhor Ka não perdeu tempo e fez render toda técnica alusiva. Deduzo, embora não tenha muitos correligionários para esta conclusão, que o camarada escaravelho possui, pelo menos neste momento, uma memória raciocinada que o permitiu rearticular uma série de movimentos imediatos e eficazes, perfeitamente dentro do conceito americano do elaborate behaviour aplicado aos coleópteros, escarabídeos, lamelicórneos. Entraram em ação as patas serrilhadas e o pontão agudo da testa, ambos em coerente função local, rasgando e furando a mucosa bucal do mandarim Fu, surpreendido pela reação em parte sensível e desacostumada. Durou apenas uns dois segundos e Fu abrindo a boca e estirando a língua grossa, mole e visguenta, cuspiu o senhor Ka para longe. Cada um dos personagens retomou seu destino. O senhor Ka perdeu algum tempo enxugando-se da baba do mandarim.
Cavando túneis e enchendo-os de excrementos o senhor Ka e sua família, parentes e aderentes, contribuem visivelmente para a adubação das terras, defendendo a criminosa dispersão do azoto e fósforo.
Não tenho a menor intenção oposicionista em vetar semelhante programa, sábia e classicamente exposto com a única benemerência da família Ka desde que aderiram ao regime vegetariano depois da esperada digestão dos bois, cavalos e cabras. São pontos em que o esterco melhorará o teor orgânico no plano edafológico mas não são em número e extensão concorrentes para uma melhoria real. Muito mais eficientes são as tristes e perseguidas minhocas cuja expansão é muitíssimo maior, incessantemente revolvendo o subsolo numa obstinação terebrante a que nenhum arado de discos ou de garfos concorrerá.
O senhor Ka para mim, com sua respeitável antiguidade clássica de amigo dos deuses Phath, Tanen e Sokari, vivo nos camafeus bonitos, amuleto de fecundidade, é a inutilidade virtuosa.
É um lindo título para juntar-se ao de khopirron sagrado.

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

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