sábado, 18 de maio de 2024

1. Sobre a experiência da confusão moral


Dívida – substantivo 1. quantia que se deve em dinheiro. 2. estado em que se encontra quem deve dinheiro (em dívida). 3. sentimento de gratidão por um favor ou um bem recebido.
Oxford English Dictionary

Se você deve ao banco 100 mil dólares, o banco controla você. Se você deve ao banco 100 milhões de dólares, você controla o banco.
Provérbio norte-americano

Há alguns anos, em razão de uma série de coincidências estranhas, fui a uma festa ao ar livre na Abadia de Westminster. Ao chegar ali, eu me senti um pouco constrangido. Não por causa dos convidados. Eles eram agradáveis e cordiais, e a festa fora organizada por um homem generoso e encantador, o padre Graeme. O problema é que me senti um peixe fora d’água. Em dado momento, padre Graeme se aproximou de mim e disse que havia uma pessoa, junto a um chafariz ali perto, que eu certamente gostaria de conhecer. Então me apresentou a uma mulher esbelta e elegante que, segundo ele, era advogada, “mas do tipo ativista; ela trabalha para uma fundação que dá suporte jurídico a grupos que lutam contra a pobreza em Londres. Provavelmente vocês terão muita coisa para conversar”.
Nós conversamos. Ela me falou de seu trabalho. Eu contei que estive envolvido durante muitos anos com o movimento de justiça global — “movimento antiglobalização”, como costumava ser chamado pelos meios de comunicação. Ela ficou curiosa: é claro que já havia lido sobre Seattle, Gênova, gás lacrimogêneo e conflitos nas ruas, mas… bem, tínhamos de fato conseguido alguma coisa com tudo aquilo?
Na verdade — disse eu —, fico bastante impressionado com o tanto que conseguimos realizar nesses primeiros dois anos.
Por exemplo?
Bem, por exemplo, nós conseguimos destruir quase completamente o FMI.
Por ironia do destino, ela disse que não sabia bem o que era o FMI. Então expliquei que o Fundo Monetário Internacional agia basicamente como fiscal das dívidas do mundo — diríamos que é “o equivalente, nas altas finanças, dos caras que vêm quebrar as suas pernas”. Comecei a falar sobre os aspectos históricos, explicando que, durante a crise do petróleo na década de 1970, os países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) injetaram tanto do dinheiro obtido com suas riquezas recém-descobertas nos bancos do Ocidente que estes ficaram sem saber onde investir; falei que o Citibank e o Chase, com isso, começaram a espalhar agentes pelo planeta para tentar convencer os políticos e os ditadores do Terceiro Mundo a tomar empréstimos (na época, isso era chamado de “go-go banking”); falei de como eles começaram fazendo os empréstimos a taxas de juros extremamente baixas que quase imediatamente dispararam para 20% ou coisa assim, devido à rígida política financeira dos Estados Unidos no início da década de 1980; de como, nas décadas de 1980 e 1990, isso levou à crise da dívida externa dos países do Terceiro Mundo; de como o fmi interveio e insistiu que, para obterem refinanciamento, os países pobres deveriam abandonar o subsídio de preços dos produtos alimentícios básicos, ou mesmo políticas para a manutenção de reservas estratégicas de alimentos, e abandonar a assistência médica e a educação públicas; falei de como tudo isso levou ao colapso dos principais apoios com que contavam alguns dos povos mais pobres e vulneráveis do mundo. Falei da pobreza, do saque de recursos públicos, do colapso das sociedades, da violência endêmica, da subnutrição, da falta de esperança e de vidas destruídas.
Mas sobre isso o que você defende? — perguntou a advogada.
Sobre o FMI? Queremos aboli-lo.
Não, sobre a dívida do Terceiro Mundo.— Ah, queremos aboli-la também. Nossa primeira reivindicação foi que o FMI parasse de impor políticas de ajuste estrutural, que estavam provocando todos os danos mais imediatos, mas isso, para a nossa surpresa, nós conseguimos realizar rapidamente. O objetivo de mais longo prazo era a anistia da dívida. Algo como o Jubileu bíblico. Na nossa opinião — eu disse —, trinta anos de transferência de dinheiro dos países mais pobres para os países mais ricos já bastam.— Mas — contestou ela, como se fosse uma coisa óbvia — eles pegaram o dinheiro emprestado! É preciso pagar as próprias dívidas.
Então percebi que aquela seria uma conversa muito diferente da que eu tinha imaginado no início.
Por onde começar? Eu poderia ter explicado que esses empréstimos foram originalmente tomados por ditadores não eleitos, que depositaram a maior parte do dinheiro diretamente em suas contas particulares na Suíça, e poderia ter dito para ela pensar se era justo insistir que os emprestadores fossem reembolsados, não pelo ditador ou seus camaradas, mas com o dinheiro da comida que literalmente se tirava da boca de crianças famintas. Ou pensar que muitos desses países pobres na verdade já tinham pagado três ou quatro vezes a quantia que tomaram emprestada, mas que, graças ao milagre dos juros compostos, ainda não haviam reduzido de maneira significativa o principal da dívida. Eu também poderia observar que existe uma diferença entre tomar empréstimos e refinanciar empréstimos, e que para obter refinanciamentos os países precisam seguir uma política econômica ortodoxa de livre mercado criada em Washington ou Zurique, com a qual seus cidadãos nunca concordaram nem jamais concordariam. E poderia observar ainda que era um pouco desonesto insistir que os Estados adotassem constituições democráticas e depois ressalvar que, independentemente de quem fosse eleito, os países não teriam controle nenhum sobre a política. Eu poderia ter dito ainda a ela que as políticas econômicas impostas pelo FMI nem sequer funcionavam. Entretanto, o problema ali era mais básico: a suposição de que dívidas têm de ser quitadas.
Na verdade, o que mais me chamou a atenção na frase “é preciso pagar as próprias dívidas” foi que, mesmo de acordo com a teoria econômica padrão, isso não é verdade. O emprestador deve aceitar determinado grau de risco. Se todos os empréstimos, mesmo que insignificantes, fossem recuperáveis — se não existissem as leis de falência, por exemplo —, os resultados seriam desastrosos. Que razões teriam os emprestadores para conceder empréstimos absurdos?
Eu sei que isso pode parecer senso comum — disse eu —, mas o engraçado é que, em termos econômicos, não é assim que os empréstimos devem funcionar. As instituições financeiras são veículos de direcionar recursos para investimentos lucrativos. Se o banco tivesse a garantia de receber o seu dinheiro de volta, mais os juros, não importando o que ele fizesse, o sistema como um todo não funcionaria. Imagine se eu entrasse na agência mais próxima do Royal Bank of Scotland e dissesse: “Vejam só, acabo de apostar uma fortuna em cavalos. Será que vocês podem me emprestar alguns milhões de libras?”. É claro que eles ririam na minha cara. Mas fariam isso só porque sabem que, se o meu cavalo não chegar em primeiro lugar, não haverá chance de receberem o dinheiro de volta. Mas imagine se houvesse um tipo de lei que garantisse ao banco receber o dinheiro de volta, não importando o que acontecesse, mesmo que isso significasse, por exemplo, eu vender a minha filha como escrava, retirar os meus órgãos para comercializar ou algo desse tipo. Nesse caso, por que não? Por que perder tempo esperando que alguém entre no banco com um plano viável de montar uma lavanderia ou alguma coisa assim? Essa é basicamente a situação que o FMI criou em escala global — por isso vimos todos aqueles bancos dispostos a desembolsar bilhões de dólares para um bando de vigaristas.
A conversa não foi tão longe porque, em determinado momento, apareceu um especialista em finanças, bêbado, que nos viu conversando sobre dinheiro e começou a nos contar histórias engraçadas sobre risco moral — que logo derivou para uma explicação longa e enfadonha de suas conquistas sexuais. Fui me esquivando e escapuli.
Eu nunca soube ao certo como interpretar essa conversa. Seria possível que uma advogada ativista nunca tivesse ouvido falar do FMI ou ela estava só brincando comigo? Concluí que, de um jeito ou de outro, não fazia diferença. Durante vários dias, aquela frase continuou ressoando na minha cabeça: “É preciso pagar as próprias dívidas”.
A razão de a frase soar tão poderosa se deve ao fato de ela não ser um enunciado econômico: é uma afirmação moral. Afinal de contas, a moralidade em si não diz respeito a pagar as próprias dívidas? Dar às pessoas o que lhes é devido? Aceitar as próprias responsabilidades? Cumprir as obrigações para com os outros, assim como esperamos que os outros cumpram as suas para conosco? Quebrar uma promessa ou se recusar a pagar uma dívida não são os exemplos mais óbvios de como fugir da própria responsabilidade?
Percebi que era essa aparente obviedade que justamente tornara a declaração tão capciosa. Esse é o tipo de discurso capaz de fazer coisas terríveis parecerem totalmente banais e desinteressantes. Talvez eu pareça estar exagerando, mas é impossível não ser contundente com questões desse tipo depois de testemunharmos seus efeitos. Eu os testemunhei. Durante quase dois anos morei nas montanhas de Madagascar. Pouco tempo depois da minha chegada houve um surto de malária. Foi um surto particularmente mortal porque a doença tinha sido erradicada daquela região havia muitos anos, de modo que, depois de algumas gerações, a maioria das pessoas já tinha perdido a imunidade. O problema era obter o dinheiro para manter o programa de erradicação do mosquito: realizar testes periódicos para garantir que os transmissores não procriassem, e também para as campanhas de pulverização, caso se descobrisse que eles haviam procriado. Não era tanto dinheiro assim, mas, devido aos planos de austeridade impostos pelo FMI, o governo teve de cortar o programa de monitoramento. Dez mil pessoas morreram. Conheci jovens mães chorando a morte de seus filhos. É difícil defender o argumento de que a perda de 10 mil vidas humanas se justifique pelo fato de que o Citibank não poderia ter prejuízos acarretados por um empréstimo irresponsável que, de todo modo, não faria grande diferença no balanço patrimonial do banco. Mas a advogada na festa era uma pessoa inteiramente correta — alguém que, além disso, trabalhava para uma instituição beneficente — e considerava a questão ao pé da letra, em toda a sua obviedade. Como ela mesma disse, os países, afinal de contas, deviam dinheiro, e certamente “é preciso pagar as próprias dívidas”.
[...]

David Graeber, in Dívida – Os primeiros 5 mil anos

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