Dívida
– substantivo 1. quantia que se deve em dinheiro. 2. estado em que
se encontra quem deve dinheiro (em dívida). 3. sentimento de
gratidão por um favor ou um bem recebido.
Oxford
English Dictionary
Se
você deve ao banco 100 mil dólares, o banco controla você. Se você
deve ao banco 100 milhões de dólares, você controla o banco.
Provérbio
norte-americano
Há
alguns anos, em razão de uma série de coincidências estranhas, fui
a uma festa ao ar livre na Abadia de Westminster. Ao chegar ali, eu
me senti um pouco constrangido. Não por causa dos convidados. Eles
eram agradáveis e cordiais, e a festa fora organizada por um homem
generoso e encantador, o padre Graeme. O problema é que me senti um
peixe fora d’água. Em dado momento, padre Graeme se aproximou de
mim e disse que havia uma pessoa, junto a um chafariz ali perto, que
eu certamente gostaria de conhecer. Então me apresentou a uma mulher
esbelta e elegante que, segundo ele, era advogada, “mas do tipo
ativista; ela trabalha para uma fundação que dá suporte jurídico
a grupos que lutam contra a pobreza em Londres. Provavelmente vocês
terão muita coisa para conversar”.
Nós
conversamos. Ela me falou de seu trabalho. Eu contei que estive
envolvido durante muitos anos com o movimento de justiça global —
“movimento antiglobalização”, como costumava ser chamado pelos
meios de comunicação. Ela ficou curiosa: é claro que já havia
lido sobre Seattle, Gênova, gás lacrimogêneo e conflitos nas ruas,
mas… bem, tínhamos de fato conseguido alguma coisa com tudo
aquilo?
— Na
verdade — disse eu —, fico bastante impressionado com o tanto que
conseguimos realizar nesses primeiros dois anos.
— Por
exemplo?
— Bem,
por exemplo, nós conseguimos destruir quase completamente o FMI.
Por
ironia do destino, ela disse que não sabia bem o que era o FMI.
Então expliquei que o Fundo Monetário Internacional agia
basicamente como fiscal das dívidas do mundo — diríamos que é “o
equivalente, nas altas finanças, dos caras que vêm quebrar as suas
pernas”. Comecei a falar sobre os aspectos históricos, explicando
que, durante a crise do petróleo na década de 1970, os países da
Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) injetaram
tanto do dinheiro obtido com suas riquezas recém-descobertas nos
bancos do Ocidente que estes ficaram sem saber onde investir; falei
que o Citibank e o Chase, com isso, começaram a espalhar agentes
pelo planeta para tentar convencer os políticos e os ditadores do
Terceiro Mundo a tomar empréstimos (na época, isso era chamado de
“go-go banking”); falei de como eles começaram fazendo os
empréstimos a taxas de juros extremamente baixas que quase
imediatamente dispararam para 20% ou coisa assim, devido à rígida
política financeira dos Estados Unidos no início da década de
1980; de como, nas décadas de 1980 e 1990, isso levou à crise da
dívida externa dos países do Terceiro Mundo; de como o fmi
interveio e insistiu que, para obterem refinanciamento, os países
pobres deveriam abandonar o subsídio de preços dos produtos
alimentícios básicos, ou mesmo políticas para a manutenção de
reservas estratégicas de alimentos, e abandonar a assistência
médica e a educação públicas; falei de como tudo isso levou ao
colapso dos principais apoios com que contavam alguns dos povos mais
pobres e vulneráveis do mundo. Falei da pobreza, do saque de
recursos públicos, do colapso das sociedades, da violência
endêmica, da subnutrição, da falta de esperança e de vidas
destruídas.
— Mas
sobre isso o que você defende? — perguntou a advogada.
— Sobre
o FMI? Queremos aboli-lo.
— Não,
sobre a dívida do Terceiro Mundo.— Ah, queremos aboli-la também.
Nossa primeira reivindicação foi que o FMI parasse de impor
políticas de ajuste estrutural, que estavam provocando todos os
danos mais imediatos, mas isso, para a nossa surpresa, nós
conseguimos realizar rapidamente. O objetivo de mais longo prazo era
a anistia da dívida. Algo como o Jubileu bíblico. Na nossa opinião
— eu disse —, trinta anos de transferência de dinheiro dos
países mais pobres para os países mais ricos já bastam.— Mas —
contestou ela, como se fosse uma coisa óbvia — eles pegaram o
dinheiro emprestado! É preciso pagar as próprias dívidas.
Então
percebi que aquela seria uma conversa muito diferente da que eu tinha
imaginado no início.
Por
onde começar? Eu poderia ter explicado que esses empréstimos foram
originalmente tomados por ditadores não eleitos, que depositaram a
maior parte do dinheiro diretamente em suas contas particulares na
Suíça, e poderia ter dito para ela pensar se era justo insistir que
os emprestadores fossem reembolsados, não pelo ditador ou seus
camaradas, mas com o dinheiro da comida que literalmente se tirava da
boca de crianças famintas. Ou pensar que muitos desses países
pobres na verdade já tinham pagado três ou quatro vezes a quantia
que tomaram emprestada, mas que, graças ao milagre dos juros
compostos, ainda não haviam reduzido de maneira significativa o
principal da dívida. Eu também poderia observar que existe uma
diferença entre tomar empréstimos e refinanciar empréstimos, e que
para obter refinanciamentos os países precisam seguir uma política
econômica ortodoxa de livre mercado criada em Washington ou Zurique,
com a qual seus cidadãos nunca concordaram nem jamais concordariam.
E poderia observar ainda que era um pouco desonesto insistir que os
Estados adotassem constituições democráticas e depois ressalvar
que, independentemente de quem fosse eleito, os países não teriam
controle nenhum sobre a política. Eu poderia ter dito ainda a ela
que as políticas econômicas impostas pelo FMI nem sequer
funcionavam. Entretanto, o problema ali era mais básico: a suposição
de que dívidas têm de ser quitadas.
Na
verdade, o que mais me chamou a atenção na frase “é preciso
pagar as próprias dívidas” foi que, mesmo de acordo com a teoria
econômica padrão, isso não é verdade. O emprestador deve aceitar
determinado grau de risco. Se todos os empréstimos, mesmo que
insignificantes, fossem recuperáveis — se não existissem as leis
de falência, por exemplo —, os resultados seriam desastrosos. Que
razões teriam os emprestadores para conceder empréstimos absurdos?
— Eu
sei que isso pode parecer senso comum — disse eu —, mas o
engraçado é que, em termos econômicos, não é assim que os
empréstimos devem funcionar. As instituições financeiras são
veículos de direcionar recursos para investimentos lucrativos. Se o
banco tivesse a garantia de receber o seu dinheiro de volta, mais os
juros, não importando o que ele fizesse, o sistema como um todo não
funcionaria. Imagine se eu entrasse na agência mais próxima do
Royal Bank of Scotland e dissesse: “Vejam só, acabo de apostar uma
fortuna em cavalos. Será que vocês podem me emprestar alguns
milhões de libras?”. É claro que eles ririam na minha cara. Mas
fariam isso só porque sabem que, se o meu cavalo não chegar em
primeiro lugar, não haverá chance de receberem o dinheiro de volta.
Mas imagine se houvesse um tipo de lei que garantisse ao banco
receber o dinheiro de volta, não importando o que acontecesse, mesmo
que isso significasse, por exemplo, eu vender a minha filha como
escrava, retirar os meus órgãos para comercializar ou algo desse
tipo. Nesse caso, por que não? Por que perder tempo esperando que
alguém entre no banco com um plano viável de montar uma lavanderia
ou alguma coisa assim? Essa é basicamente a situação que o FMI
criou em escala global — por isso vimos todos aqueles bancos
dispostos a desembolsar bilhões de dólares para um bando de
vigaristas.
A
conversa não foi tão longe porque, em determinado momento, apareceu
um especialista em finanças, bêbado, que nos viu conversando sobre
dinheiro e começou a nos contar histórias engraçadas sobre risco
moral — que logo derivou para uma explicação longa e enfadonha de
suas conquistas sexuais. Fui me esquivando e escapuli.
Eu
nunca soube ao certo como interpretar essa conversa. Seria possível
que uma advogada ativista nunca tivesse ouvido falar do FMI ou ela
estava só brincando comigo? Concluí que, de um jeito ou de outro,
não fazia diferença. Durante vários dias, aquela frase continuou
ressoando na minha cabeça: “É preciso pagar as próprias
dívidas”.
A
razão de a frase soar tão poderosa se deve ao fato de ela não ser
um enunciado econômico: é uma afirmação moral. Afinal de contas,
a moralidade em si não diz respeito a pagar as próprias dívidas?
Dar às pessoas o que lhes é devido? Aceitar as próprias
responsabilidades? Cumprir as obrigações para com os outros, assim
como esperamos que os outros cumpram as suas para conosco? Quebrar
uma promessa ou se recusar a pagar uma dívida não são os exemplos
mais óbvios de como fugir da própria responsabilidade?
Percebi
que era essa aparente obviedade que justamente tornara a declaração
tão capciosa. Esse é o tipo de discurso capaz de fazer coisas
terríveis parecerem totalmente banais e desinteressantes. Talvez eu
pareça estar exagerando, mas é impossível não ser contundente com
questões desse tipo depois de testemunharmos seus efeitos. Eu os
testemunhei. Durante quase dois anos morei nas montanhas de
Madagascar. Pouco tempo depois da minha chegada houve um surto de
malária. Foi um surto particularmente mortal porque a doença tinha
sido erradicada daquela região havia muitos anos, de modo que,
depois de algumas gerações, a maioria das pessoas já tinha perdido
a imunidade. O problema era obter o dinheiro para manter o programa
de erradicação do mosquito: realizar testes periódicos para
garantir que os transmissores não procriassem, e também para as
campanhas de pulverização, caso se descobrisse que eles haviam
procriado. Não era tanto dinheiro assim, mas, devido aos planos de
austeridade impostos pelo FMI, o governo teve de cortar o programa de
monitoramento. Dez mil pessoas morreram. Conheci jovens mães
chorando a morte de seus filhos. É difícil defender o argumento de
que a perda de 10 mil vidas humanas se justifique pelo fato de que o
Citibank não poderia ter prejuízos acarretados por um empréstimo
irresponsável que, de todo modo, não faria grande diferença no
balanço patrimonial do banco. Mas a advogada na festa era uma pessoa
inteiramente correta — alguém que, além disso, trabalhava para
uma instituição beneficente — e considerava a questão ao pé da
letra, em toda a sua obviedade. Como ela mesma disse, os países,
afinal de contas, deviam dinheiro, e certamente “é preciso pagar
as próprias dívidas”.
[...]
David Graeber, in Dívida – Os primeiros 5 mil anos
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