Quando
os long-plays eram alta novidade, lá em casa a gente tinha
uma porção, porque meu pai sempre foi muito a favor do progresso,
de maneira que não deixava passar nada e, ao chegar em casa com a
novidade, ainda fazia uma conferência erudita sobre ela. Como uma,
inesquecível, a respeito do liquidificador — novidade que, aliás,
encarei com certa ambivalência, visto detestar banana e minha mãe
ter passado a tacar vitamina de banana em toda criança que
aparecesse na frente dela. Mas os long-plays não, os
long-plays eram apreciadíssimos, notadamente se executados na
eletrola de gabinete de meu pai, Standard Electric, último tipo,
apresentando diversas características sensacionais, tais como não
precisar nem dar corda nem mudar a agulha toda hora — era agulha de
safira, tocava mais de cem discos sem trocar, coisa adiantadíssima
mesmo. Tínhamos, inclusive, o disco de demonstração que eu
executava para as visitas e, depois que elas saíam, minha mãe
reclamava comigo por ser o mais exibido da família.
As
sessões eram variadas. Meu pai não distingue uma nota de outra,
nunca cantou nem assoviou na vida, é absolutamente atonal, mas
sempre fez questão de cultura musical na casa, de forma que a gente
se reunia muito compostamente à frente da eletrola e ele anunciava,
tirando o long-play da capa:
— Schubert!
Grande compositor. Sinfonia Inacabada. Bote aí que eu não
sei mexer nessa estrovenga. Quem der um pio leva um tabefe.
A
gente escutava com muita atenção, porque o velho nunca foi de
prometer um tabefe sem dar o tabefe, o clima na casa era de grande
harmonia. E também tínhamos sessões de música popular, algumas
didáticas e com palestras — como o álbum de Noel Rosa gravado por
Aracy de Almeida, ou discos franceses dos quais eu era obrigado a
“tirar a letra”. Isso me deixava nervoso, porque eu nunca tinha
visto um francês na vida, mas meu pai me considerava perfeitamente
equipado para morar em Paris, por causa de um livro chamado Francês
sem mestre, que trazia a pronúncia transcrita entre parênteses
— aceiê-vu, levê-vu, qués-qui-cé? Dava para ler, mas a
primeira vez em que eu falei francês com um francês, ele pensou que
era russo, até hoje tenho trauma disso. Bem, de qualquer forma, ele
me chamava para a sessão de música francesa e o ritual era
parecido, com a agravante da tirada da letra.
— Música
francesa! Jean Sablon, Charles Trenet, Yvette Giraud, Edith Piaf,
Patachou. Grandes cantores, grandes artistas. Silêncio aí. Bote
Jean Sablon, aquela música que começa com o ditemuá. Você
aí, pegue o lápis e tire a letra.
— Dites-moi
un mot gentil.
— Puisque
je vous démande pardon.
— Oui
je sais, je sais, chérie,
— Que
vous avez toujours raison — cantava Jean Sablon, mas só hoje é
que eu sei que é assim, porque, na época, eu entendia tudo, embora
com grande sacrifício, mas não pescava o un mot.
Nervosíssimo, quase desesperado, inventei uma solução para enrolar
o velho. Rezei um Padre-Nosso para Nosso Senhor me ajudar naquele
transe, e Ele me ajudou. Expliquei para o velho que, como tinha lido
na revista O Cruzeiro, Jean Sablon estivera no Rio de Janeiro
e tinha dito que gostava muito do Brasil, que a mulher brasileira era
a mais elegante do mundo, que Santos Dumont tinha inventado o avião
etc. etc. E, por conseguinte, numa homenagem a alguma carioca, ele
havia feito aquela música: “Dites-moi, amor gentil” —
com esse “amor” aí em português. O velho desconfiou um pouco,
acabou conformado.
— É,
pode ser — disse. — Esses franceses são muito safados, vai ver
que Sablon traçou lá uma carioca daquelas de perna de fora.
— Ele
fez o quê, pai?
— Cale
essa boca, não se ouse, vá lá para dentro!
Finalmente,
tínhamos também os recitais de poesia com Floriano Faissal, Sadi
Cabral e outros, tudo nos long-plays. O mais popular era o de
Jorge de Lima, declamado por Sadi Cabral, que tinha “Essa Nega
Fulô”, que me dava umas ideias, “O Acendedor de Lampiões”,
que deixava meu pai de ânimo filosófico, e o Zefa-chegou-o-inverno,
formigas de asas e tanajuras... Era tão lindo esse inverno do
poeta que eu ficava chateado por estarmos no verão, queria
participar daquelas coisas de tanajuras, cheiro de terra molhada,
plantas brotando em toda parte.
Isto,
naturalmente, antes de morar em Itaparica. Pois não é que me
surpreendi, assim que roncou a primeira trovoada e o céu escureceu
no meio da manhã, a recitar o Zefa-chegou-o-inverno?
— Zefa,
chegou o inverno! — bradei, com os braços estendidos para as
primeiras gotas.
— Que
Zefa é essa aí? — veio perguntar minha mulher, que desconfia da
minha veia poética.
— Nada,
não — respondi. — Eis a chuva, a trovoada, o temporal, o
invernão da ilha, que belez...
— Na
cozinha tem uma goteira com a mesma vazão que Paulo Afonso — disse
ela.
Como
de fato. Não só na cozinha como na sala, como no corredor, como nos
quartos... Na verdade, só se salvou o banheiro, um baluarte da
segurança da família, todos flageladinhos ali, coitados, com o seu
chefe prometendo solenemente que, na primeira estiada, iria
providenciar o conserto do telhado. Pusemos um guarda-chuva em cima
da televisão, juntamo-nos no canto seco da sala, fomos esquecer as
mágoas ali aconchegados, era uma bela cena de convívio familiar.
Até que umas coisas começaram a se mexer debaixo do lençol com que
tínhamos coberto as cabeças.
— Que
é isso, que é isso? Ai!
— Formigas
de asas e tanajuras — disse minha mulher desdenhosamente. — Como
é o resto do poema?
Vejam
o que é a natureza. Das cerca de 800 milhões de formigas de asas e
tanajuras que a água gera ao tocar em qualquer coisa, 750 milhões
resolveram fazer assembleia geral aqui em casa, o bulício de suas
asinhas diáfanas a musicar os ares, o colorido de seu elegante
esvoaçar enfeitando a paisagem doméstica, tanajuras e formigas de
asas suficientes para aterrar o aterro do Flamengo.
— Acho
que estamos diante de um caso claro de necessidade de evacuar a casa
imediatamente — disse minha mulher, que é paulista e costuma
reiterar que é a locomotiva que arrasta os três vagões (eu e os
dois meninos, desnaturada).
— Deixe
de ser besta, mulher, onde já se viu, uma chuvinha à-toa dessas!
Umas formiguinhas bobas, que é isso?
Tive
de repetir o “que é isso”, porque as luzes se apagaram.
— Que
é isso?
— Blecaute
— disse ela. — Medida sensata. Estamos sofrendo um ataque aéreo.
Você já viu Os Pássaros? Que tal “As Tanajuras”? As
tanajuras se rebelam e...
— Mulher,
procure não baixar o moral da casa! É dever da esposa...
— ...
botar todo mundo para dormir na mesma cama no banheiro — completou
ela. — Em frente!
Durante
toda a noite, em intranquilo sono receando pela resistência do
telhado do banheiro (que, por sinal, se houve galhardamente, é o
melhor telhado de banheiro que já vi, faço um preço razoável,
propostas aos cuidados desta publicação), mostrei àquela família
de pouca fé como eram todos uns insensatos. Arturzinho Pedreiro, que
já tinha feito o conserto do telhado quando ele quebrou por causa
das pedras que os meninos jogavam na mangueira e garantido o conserto
“pela vida toda” (me tomou vinte contos), iria cumprir a
garantia, eu conhecia o povo da minha terra — um povo que já
expulsou até os holandeses, um povo destes é graça?
Não,
não é. Procurado nos cinco minutos em que não choveu na manhã
seguinte, Arturzinho me deu um sorriso de desdém (aqui na ilha
existe uma grande escola filosófica, fundada pelo meu primo Walter
Ubaldo — a escola do Sorriso de Desdém, coisa de raízes fundas,
vai até Diógenes —, e quem nunca enfrentou um dos discípulos do
Sorriso de Desdém não sabe o que é a dureza da vida) e explicou
que todas as casas da ilha estavam assim, é o inverno brabo.
— Como
“inverno brabo”? Eu fui criado naquela casa e nunca vi essa
goteirada toda. No meu tempo...
— Isto
foi no seu tempo — respondeu ele, me aplicando outro Sorriso de
Desdém e me olhando como se eu tivesse nascido nos albores da Era
Cenozóica. — Hoje em dia, porém...
Voltei
para casa meio chateado com Arturzinho, procurando a solidariedade da
família. Não a obtive, fui alvo de chacotas, chistes, dichotes,
epítetos, verrinas, apostrofações e debiques. Decidi reagir.
Encolhi-me no canto seco da sala, que por sinal está diminuindo
bastante, empreguei a energia requerida pela situação.
— Quem
der um pio aí leva um tabefe!
— Sefa,
cegou o inverno — disse meu filho Bento, que ainda não fez três
anos. — O que é tabefe?
A
harmonia familiar — o tempora, o mores! — já não é como
a de antigamente.
— Será
que ninguém pode passar aí o guarda-chuva um instantinho? — disse
eu.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
Nenhum comentário:
Postar um comentário