quinta-feira, 11 de abril de 2024

Zefa, Chegou o Inverno

Quando os long-plays eram alta novidade, lá em casa a gente tinha uma porção, porque meu pai sempre foi muito a favor do progresso, de maneira que não deixava passar nada e, ao chegar em casa com a novidade, ainda fazia uma conferência erudita sobre ela. Como uma, inesquecível, a respeito do liquidificador — novidade que, aliás, encarei com certa ambivalência, visto detestar banana e minha mãe ter passado a tacar vitamina de banana em toda criança que aparecesse na frente dela. Mas os long-plays não, os long-plays eram apreciadíssimos, notadamente se executados na eletrola de gabinete de meu pai, Standard Electric, último tipo, apresentando diversas características sensacionais, tais como não precisar nem dar corda nem mudar a agulha toda hora — era agulha de safira, tocava mais de cem discos sem trocar, coisa adiantadíssima mesmo. Tínhamos, inclusive, o disco de demonstração que eu executava para as visitas e, depois que elas saíam, minha mãe reclamava comigo por ser o mais exibido da família.
As sessões eram variadas. Meu pai não distingue uma nota de outra, nunca cantou nem assoviou na vida, é absolutamente atonal, mas sempre fez questão de cultura musical na casa, de forma que a gente se reunia muito compostamente à frente da eletrola e ele anunciava, tirando o long-play da capa:
Schubert! Grande compositor. Sinfonia Inacabada. Bote aí que eu não sei mexer nessa estrovenga. Quem der um pio leva um tabefe.
A gente escutava com muita atenção, porque o velho nunca foi de prometer um tabefe sem dar o tabefe, o clima na casa era de grande harmonia. E também tínhamos sessões de música popular, algumas didáticas e com palestras — como o álbum de Noel Rosa gravado por Aracy de Almeida, ou discos franceses dos quais eu era obrigado a “tirar a letra”. Isso me deixava nervoso, porque eu nunca tinha visto um francês na vida, mas meu pai me considerava perfeitamente equipado para morar em Paris, por causa de um livro chamado Francês sem mestre, que trazia a pronúncia transcrita entre parênteses — aceiê-vu, levê-vu, qués-qui-cé? Dava para ler, mas a primeira vez em que eu falei francês com um francês, ele pensou que era russo, até hoje tenho trauma disso. Bem, de qualquer forma, ele me chamava para a sessão de música francesa e o ritual era parecido, com a agravante da tirada da letra.
Música francesa! Jean Sablon, Charles Trenet, Yvette Giraud, Edith Piaf, Patachou. Grandes cantores, grandes artistas. Silêncio aí. Bote Jean Sablon, aquela música que começa com o ditemuá. Você aí, pegue o lápis e tire a letra.
Dites-moi un mot gentil.
Puisque je vous démande pardon.
Oui je sais, je sais, chérie,
Que vous avez toujours raison — cantava Jean Sablon, mas só hoje é que eu sei que é assim, porque, na época, eu entendia tudo, embora com grande sacrifício, mas não pescava o un mot. Nervosíssimo, quase desesperado, inventei uma solução para enrolar o velho. Rezei um Padre-Nosso para Nosso Senhor me ajudar naquele transe, e Ele me ajudou. Expliquei para o velho que, como tinha lido na revista O Cruzeiro, Jean Sablon estivera no Rio de Janeiro e tinha dito que gostava muito do Brasil, que a mulher brasileira era a mais elegante do mundo, que Santos Dumont tinha inventado o avião etc. etc. E, por conseguinte, numa homenagem a alguma carioca, ele havia feito aquela música: “Dites-moi, amor gentil” — com esse “amor” aí em português. O velho desconfiou um pouco, acabou conformado.
É, pode ser — disse. — Esses franceses são muito safados, vai ver que Sablon traçou lá uma carioca daquelas de perna de fora.
Ele fez o quê, pai?
Cale essa boca, não se ouse, vá lá para dentro!
Finalmente, tínhamos também os recitais de poesia com Floriano Faissal, Sadi Cabral e outros, tudo nos long-plays. O mais popular era o de Jorge de Lima, declamado por Sadi Cabral, que tinha “Essa Nega Fulô”, que me dava umas ideias, “O Acendedor de Lampiões”, que deixava meu pai de ânimo filosófico, e o Zefa-chegou-o-inverno, formigas de asas e tanajuras... Era tão lindo esse inverno do poeta que eu ficava chateado por estarmos no verão, queria participar daquelas coisas de tanajuras, cheiro de terra molhada, plantas brotando em toda parte.
Isto, naturalmente, antes de morar em Itaparica. Pois não é que me surpreendi, assim que roncou a primeira trovoada e o céu escureceu no meio da manhã, a recitar o Zefa-chegou-o-inverno?
Zefa, chegou o inverno! — bradei, com os braços estendidos para as primeiras gotas.
Que Zefa é essa aí? — veio perguntar minha mulher, que desconfia da minha veia poética.
Nada, não — respondi. — Eis a chuva, a trovoada, o temporal, o invernão da ilha, que belez...
Na cozinha tem uma goteira com a mesma vazão que Paulo Afonso — disse ela.
Como de fato. Não só na cozinha como na sala, como no corredor, como nos quartos... Na verdade, só se salvou o banheiro, um baluarte da segurança da família, todos flageladinhos ali, coitados, com o seu chefe prometendo solenemente que, na primeira estiada, iria providenciar o conserto do telhado. Pusemos um guarda-chuva em cima da televisão, juntamo-nos no canto seco da sala, fomos esquecer as mágoas ali aconchegados, era uma bela cena de convívio familiar. Até que umas coisas começaram a se mexer debaixo do lençol com que tínhamos coberto as cabeças.
Que é isso, que é isso? Ai!
Formigas de asas e tanajuras — disse minha mulher desdenhosamente. — Como é o resto do poema?
Vejam o que é a natureza. Das cerca de 800 milhões de formigas de asas e tanajuras que a água gera ao tocar em qualquer coisa, 750 milhões resolveram fazer assembleia geral aqui em casa, o bulício de suas asinhas diáfanas a musicar os ares, o colorido de seu elegante esvoaçar enfeitando a paisagem doméstica, tanajuras e formigas de asas suficientes para aterrar o aterro do Flamengo.
Acho que estamos diante de um caso claro de necessidade de evacuar a casa imediatamente — disse minha mulher, que é paulista e costuma reiterar que é a locomotiva que arrasta os três vagões (eu e os dois meninos, desnaturada).
Deixe de ser besta, mulher, onde já se viu, uma chuvinha à-toa dessas! Umas formiguinhas bobas, que é isso?
Tive de repetir o “que é isso”, porque as luzes se apagaram.
Que é isso?
Blecaute — disse ela. — Medida sensata. Estamos sofrendo um ataque aéreo. Você já viu Os Pássaros? Que tal “As Tanajuras”? As tanajuras se rebelam e...
Mulher, procure não baixar o moral da casa! É dever da esposa...
... botar todo mundo para dormir na mesma cama no banheiro — completou ela. — Em frente!
Durante toda a noite, em intranquilo sono receando pela resistência do telhado do banheiro (que, por sinal, se houve galhardamente, é o melhor telhado de banheiro que já vi, faço um preço razoável, propostas aos cuidados desta publicação), mostrei àquela família de pouca fé como eram todos uns insensatos. Arturzinho Pedreiro, que já tinha feito o conserto do telhado quando ele quebrou por causa das pedras que os meninos jogavam na mangueira e garantido o conserto “pela vida toda” (me tomou vinte contos), iria cumprir a garantia, eu conhecia o povo da minha terra — um povo que já expulsou até os holandeses, um povo destes é graça?
Não, não é. Procurado nos cinco minutos em que não choveu na manhã seguinte, Arturzinho me deu um sorriso de desdém (aqui na ilha existe uma grande escola filosófica, fundada pelo meu primo Walter Ubaldo — a escola do Sorriso de Desdém, coisa de raízes fundas, vai até Diógenes —, e quem nunca enfrentou um dos discípulos do Sorriso de Desdém não sabe o que é a dureza da vida) e explicou que todas as casas da ilha estavam assim, é o inverno brabo.
Como “inverno brabo”? Eu fui criado naquela casa e nunca vi essa goteirada toda. No meu tempo...
Isto foi no seu tempo — respondeu ele, me aplicando outro Sorriso de Desdém e me olhando como se eu tivesse nascido nos albores da Era Cenozóica. — Hoje em dia, porém...
Voltei para casa meio chateado com Arturzinho, procurando a solidariedade da família. Não a obtive, fui alvo de chacotas, chistes, dichotes, epítetos, verrinas, apostrofações e debiques. Decidi reagir. Encolhi-me no canto seco da sala, que por sinal está diminuindo bastante, empreguei a energia requerida pela situação.
Quem der um pio aí leva um tabefe!
Sefa, cegou o inverno — disse meu filho Bento, que ainda não fez três anos. — O que é tabefe?
A harmonia familiar — o tempora, o mores! — já não é como a de antigamente.
Será que ninguém pode passar aí o guarda-chuva um instantinho? — disse eu.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

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