domingo, 14 de abril de 2024

Senhas, sussurros, ardis: cogitações em torno de "Deus lhe pague"


O disco Construção é um clássico não apenas na discografia de Chico Buarque de Hollanda, mas na história da música popular brasileira. Lançado em 1971, período em que a caça às bruxas promovida pela ditadura militar se tornava ainda mais sombria e truculenta, o álbum reúne, além da brilhante canção-título, pérolas como “Desalento”, “Valsinha” (parcerias com Vinicius de Moraes), “Samba de Orly” (com Vinicius e Toquinho), “Minha história” e “Cotidiano”. Surgido logo após o exílio de Chico em Roma, o LP inaugurava um novo estágio na obra do compositor, que, grande já nos primeiros trabalhos, não cessaria de exceder-se ao longo de sua trajetória. Fato é que Construção, ao registrar de forma definitiva o olhar sensível e atento do artista sobre o Brasil submetido e amordaçado dos anos de chumbo, despontava como um grito contra a opressão.
Um álbum de tamanho peso simbólico abre-se com uma faixa não menos emblemática: serve-lhe de pórtico “Deus lhe pague”, canção-síntese daquele momento histórico. Denunciando e desafiando o jugo imposto pelo regime de exceção que sujeitava o país no início da década de 1970, a canção atravessa o tempo como documento e testemunho, mas também como artefato estético. O preciso trabalho com a linguagem, embalado em provocativa composição musical, faz “Deus lhe pague” se esquivar das raias da canção de protesto e permanecer chamando atenção.

1. HOJE VOCÊ É QUEM MANDA

À primeira vista, a canção, como sugere o título, é uma manifestação de agradecimento. O texto articula uma série de aspectos essenciais ou circunstanciais da vida do sujeito lírico que, uma vez concedidos, permitidos ou tolerados, ensejariam gratidão. Esse o esquema que organiza toda a letra, estruturada em seis quadras que obedecem à mesma arquitetura: três versos que citam elementos cotidianos e, concluindo a estrofe, a popular sentença “Deus lhe pague”.
De saída convém nos determos nas pessoas implicadas no discurso poético. Numa primeira leitura, o sujeito lírico aparece como aquele que agradece, de vez que é ele quem recebe as mercês aludidas no texto. Importa saber a quem se devem os agradecimentos. A primeira estrofe coloca instigante questão a respeito:

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Na quadra de abertura o sujeito agradece favores que lhe tornam possível a existência. Se no primeiro verso as graças têm por objeto o pão e o chão, tomados, por extensão de sentido, como alimento e morada, no segundo elas se vinculam a algo ainda mais fundamental: o ato de nascer. A terceira linha, por seu turno, acentua a generosidade que permite ao sujeito respirar e existir. A estrofe inicial manifesta, assim, uma tutela benevolente, merecedora de todo agradecimento por, em última análise, conceber e conceder a vida. Presumivelmente, tal reconhecimento seria consagrado ao Criador – o onipotente, regente supremo de todos os seres e todas as coisas, a quem o senso comum chama Deus. Segundo crença corrente, ele, Deus, seria o sumo senhor da vida e da morte, e a ele se deveriam as graças pela existência e pelo que a propicia e viabiliza. Entretanto, o remate da estrofe frustra essa expectativa. Ao valer-se da expressão “Deus lhe pague”, o sujeito lírico deixa claro que seu agradecimento se dirige não a Deus – como ocorreria se empregasse, por exemplo, a expressão “graças a Deus” –, mas a uma outra pessoa (gramaticalmente representada pelo pronome “lhe”) cujos atos magnânimos deveriam ser recompensados pelo Todo-Poderoso.
Surge assim no discurso poético uma espécie de “ente superior”, uma Força indefinida e inominada que exerce total ingerência na vida do sujeito lírico. O traço substantivo de tal figura é a condição de mando, a qual, estendendo-se ao arbítrio sobre a vida e a morte, equipara-se ao poder divino. E como quem pode mais pode menos, a intervenção dessa Força também se faz sentir em prosaicas situações do dia a dia. As segunda e terceira estrofes enumeram lances cotidianos que, proporcionados ou consentidos pelo “ente superior”, motivam as graças que lhe são rendidas:

Pelo prazer de chorar e pelo “estamos aí”
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague

Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague

A piada no bar, o crime pra comentar, o futebol, o samba, a praia, a saia, as mulheres, o domingo, a novela, a missa, o gibi, igualmente dignos de agradecimento, atestam o domínio absoluto da Força, cuja autoridade se espraia desde o “deixar existir” até os prazeres triviais. Não espanta que tais benesses, ligadas ao deleite e ao contentamento, suscitem gratidão.
Nas estrofes seguintes, contudo, os “obséquios” agradecidos causam estranhamento, de vez que não representam qualquer oferta benfazeja. A propósito, a terceira quadra antecipa uma satisfação esvaziada: o prazer deficitário do “amor malfeito depressa”, em que o enlace amoroso se reduz a simples etapa de um processo maquinal, à qual se seguem as tarefas de “fazer a barba e partir”, prenuncia um mal-estar que se potencializará adiante. Aparentemente destoantes das três primeiras quadras, nas quais o movimento de gratidão se legitimaria, em geral, a partir de “bons favores”, as três últimas estâncias delineiam um quadro aflitivo, agônico, composto por imposições e nocividades que, em vez de atrair graças, propendem a despertar indignação:

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Nessa segunda metade, a letra parece enveredar por outro caminho, em que o suposto discurso laudatório das quadras iniciais perde a razão de ser. Afinal, não seria razoável agradecer a “fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir”, os “andaimes, pingentes, que a gente tem que cair”, “um dia, agonia, pra suportar e assistir” ou as “moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir”. Todavia, a estrutura textual não se altera: o verso “Deus lhe pague” permanece a concluir as estrofes, que agora deixam de referir-se apenas à pessoa do sujeito lírico e assumem um tom coletivo (as marcas de primeira pessoa do singular – “Por me deixar respirar, por me deixar existir” – dão lugar a expressões e pronomes pluralizados, como “a gente” e “nos”).

2. O MEU CANTO, PUNHALADA

No uso popular, a frase feita “Deus lhe pague” tem, de fato, intenção de agradecimento, manifesto por alguém que, não tendo meios de retribuir um favor recebido, atribui a Deus a tarefa de recompensar o benfeitor: “Deus lhe pague, porque eu não tenho como pagá-lo pelo bem que me fez”. Contudo, na canção de Chico Buarque, outros sentidos parecem somar-se ao significado habitual da expressão.
As três últimas quadras, bem vimos, aludem a elementos que normalmente provocariam revolta, não gratidão. O verso “Deus lhe pague” a finalizar as estrofes assumiria, pois, outra acepção, muito mais próxima de um apelo à justiça divina do que de uma manifestação de agradecimento. Não se perca de vista que o texto se constrói em torno de uma Força que intervém em todas as instâncias da vida do sujeito lírico. Esse “ente superior” é causa de sua desventura, expressa de forma mais explícita na segunda metade do texto. Nesse sentido, ao imprecar a Deus que pague ao “ente superior” a “fumaça, desgraça”, o “dia, agonia”, o “rangido de dentes”, a “cidade a zunir”, o sujeito manifesta seu desejo de justiça – ou vingança – contra a tirania que o domina e ofende, formulando seu anseio de desforra nos seguintes moldes: “Deus lhe pague na mesma moeda (o castigue por) todo o sofrimento que me faz passar”.
Desdobrado o potencial significativo da expressão que a intitula e lhe dá sentido, a letra de “Deus lhe pague” adquire outra densidade e se abre a nova perspectiva de leitura. Com engenhosa sutileza, o texto arma uma espécie de ardil poético, no qual um simulacro de gratidão servil camufla o brado velado e eloquente contra a injustiça e o poder espúrio. Sob a aparente subserviência resignada, o que impele a voz do sujeito lírico é a lucidez combativa, e o que à primeira vista pareceria adulação irrefletida e infundada é, na realidade, denúncia contra o desmando e sede de justiça.
Voltemos à primeira metade do texto, agora à luz das virtualidades significativas da expressão “Deus lhe pague”, e os “favores” concedidos ao sujeito lírico já não parecem tão favoráveis. O verso inicial, por exemplo, considerados o “pão” e o “chão” em sentido literal, pode provocar, em vez de agradecimento, a revolta do sujeito contra a Força que lhe impinge severas privações, concedendo-lhe (ou proporcionando-lhe) apenas o pão como alimento e o chão como cama. Da mesma forma, também pode resultar em indignação o jugo que exige permissão para ações fundamentais, como nascer, sorrir, respirar, existir. Ao fim da estrofe, o pedido – ou a esperança – do desafortunado: “Deus lhe pague na mesma moeda a penúria e a indignidade que a submissão me inflige”.
Nas segunda e terceira quadras as potencialidades semânticas do verso final também se alternam. Os prazeres cotidianos bem poderiam, como aventamos, dar causa à gratidão do sujeito lírico. Entretanto, é também legítimo supô-los engrenagens de um mecanismo de alienação a serviço de um sistema de controle, à semelhança do panis et circenses romano. Pão e circo ao povo (lembre-se o “pão pra comer” do verso de abertura), de modo a mantê-lo minimamente de barriga cheia e sob a embriaguez de alguma alegria consentida (lembre-se a “cachaça, de graça, que a gente tem que engolir”), alheio, portanto, a questões políticas e assuntos do poder. Marcas de certo estereótipo de brasilidade, o futebol, o samba (a “ofegante epidemia” do carnaval, por extensão) e a novela são esteios sobre os quais se assenta a lona do apaziguamento que encobre as mazelas e faz do Brasil uma arena simbólica animada por jogos e espetáculos que fascinam na mesma medida em que vincam fundo o imaginário popular. Outros elementos textuais se articulam em torno desse “mecanismo de alienação”: a “piada no bar”, o “crime pra comentar” e o “gibi” são também mera distração – a um só tempo entretenimento e desatenção. A “missa” sugere, a partir do microcosmo da liturgia religiosa, um discurso fundado na ordem e na indulgência, proferido por uma voz de tutela (o sacerdote a conduzir o rebanho) em conveniente harmonia com o poder de mando que se infiltra por todo o texto. A real intenção de todo esse aparato, no entanto, não escapa à consciência aguda do sujeito lírico: “Deus lhe pague na mesma moeda a tentativa perversa de embotar-me o senso crítico”.
Se as virtualidades de sentido da expressão “Deus lhe pague” se intercambiam de modo mais explícito nas três primeiras quadras, nas três últimas elas também se validam, não obstante um presumível, mas não absoluto, descabimento de o verso manifestar gratidão. Pode-se postular boa dose de complacência no sujeito lírico, o que justificaria o agradecimento mesmo diante das vicissitudes promovidas pelo “ente superior”. Tal atitude o aproximaria do bíblico Jó, que, após suportar terríveis adversidades com inabalável tolerância, em vez de blasfemar, louvou o seu Deus: “Bendito seja o nome do Senhor”. A gratidão sincera do sujeito lírico, quando às voltas com os infortúnios das três estrofes finais, poderia legitimar-se, talvez, pela crença cristã no benefício do sofrimento, idealizado como forma de purificação ou salvação. Seja como for, mais um sentido – improvável, embora possível – se credencia entre as possibilidades de significado do verso “Deus lhe pague”.
A comutação de sentidos que permeia todo o texto tem seu grand finale na última estrofe, na qual, depois de tanta desdita, a existência do sujeito chega ao fim. Atente-se nas ações em torno do sujeito lírico – ou da coletividade que ele representa, convocada pelo pronome “nos”: ele é louvado, beijado, coberto, cuspido. O ultraje de ser alvejado por cuspe injeta na expressão “Deus lhe pague” o desejo de desforra, mas a deferência de ser louvado despertaria sincera gratidão, tal como os afagos de ser beijado e coberto, atos que chegam a lembrar o zelo materno diante do filho adormecido. Todavia, a suposta benignidade de tais ações cai por terra quando se revelam os agentes: é a simulada e mercenária carpideira quem o louva, e quem o beija e cobre são asquerosas “moscas-bicheiras”. Adiante, a síntese lapidar da ambivalência de sentidos: o golpe capital que tira a vida do sujeito é, ao mesmo tempo, sua forma de escapar à tormentosa existência. Conciliando tragédia e redenção, a morte (a “paz derradeira”) aciona, mais uma vez, as várias significações do verso “Deus lhe pague”. O livre trânsito do adverso e do favorável promove a multiplicidade de sentidos por toda a última quadra, como de resto por todo o texto.
Ademais, a letra da canção é pontuada pela ironia, patente, por exemplo, na terceira estrofe, quando o adjetivo “lindo” destoa, em jocoso contraste, do substantivo que qualifica – um “domingo” sem viço, escoado na sensaboria da trinca “novela, missa, gibi”. O matiz irônico confere ao sentido costumeiro da expressão “Deus lhe pague” uma nova nuança, também admissível no fecho de todas as quadras. Sob o prisma da ironia, o real propósito do sujeito lírico não seria agradecer as graças, mas desagradecer (e denunciar) as desgraças que lhe são impostas. Algo do tipo “obrigado pelo mal que me causou”, enunciação cuja flagrante incongruência não deixa dúvida quanto ao desagrado de quem a profere.
Estratégia similar está na base de outras canções da época, do próprio Chico e de outros compositores. Gonzaguinha escreveu “Comportamento geral” e “Um sorriso nos lábios”,81 que seguem a mesma trilha de “Deus lhe pague”. Elaboradas com alto teor de ironia, disparam versos como “Você deve lutar pela xepa da feira / E dizer que está recompensado”, “Você deve rezar pelo bem do patrão / E esquecer que está desempregado”, “Você deve aprender a baixar a cabeça / E dizer sempre ‘muito obrigado’” (“Comportamento geral”); “Vidro moído ou areia / No café da manhã / E um sorriso nos lábios”, “O cerco, a vida, o circo / Silêncio, um medo anormal / E um sorriso nos lábios”, “Mas sonha que passa / Ou toma cachaça / Aguenta firme, irmão, / Na oração / Deus tudo vê e Deus dará / Ou então acha graça / É tão pouca a desgraça” (“Um sorriso nos lábios”). O verdadeiro sentido desses versos é diametralmente oposto ao que se oferece à superfície das frases. Tal como na canção buarqueana, a aparente brandura da lírica de Gonzaguinha mascara (ou finge que tenta mascarar) a virulência inoculada em seu discurso.
A letra de “Deus lhe pague” se urde, assim, em tramas de sentido superpostas. O verso-título agencia, em todas as ocorrências, significados plurais que, atuando em conjunto, cunham o caráter multívoco da letra. Agradecimento sincero, (des)gratidão irônica, desejo de revanche: significados latentes no verso “Deus lhe pague” que acionam diferentes possibilidades de leitura. Convocada ao território poético, a expressão adquire inusitados sentidos e se converte em senha de leitura, de vez que os arranjos semânticos por ela estabelecidos interferem de forma decisiva no(s) sentido(s) do discurso. E é justo na confluência dessas virtualidades que o texto poético se amplifica e se realiza em plenitude.

3. O QUE SERÁ?

Uma questão ainda permanece: a quem se dirige a expressão “Deus lhe pague”, isto é, quem se oculta por trás do que aqui chamamos a Força ou “ente superior”? Considerado o momento histórico em que foi composta, a canção estabelece franco diálogo com a situação política brasileira do início da década de 1970. A ditadura militar, naqueles tempos ainda mais recrudescida, encarna com perfeição a Força que subjuga o sujeito lírico. A identificação entre ambas se estabelece não apenas pela condição de mando, mas também pela natureza do poder que lhes assegura a autoridade. Na alegoria da canção, o domínio da Força equivale à supremacia de Deus: é ela, a Força, que intervém desde a origem da vida (a certidão para nascer, a permissão para respirar e existir, na primeira estrofe) até o aniquilamento do sujeito, simbolizado na última quadra pelo indigno funeral em que tomam parte a mulher carpideira e as moscas-bicheiras. Senhora da vida e da morte, a Força exerce, já o salientamos, um poder que originariamente, segundo a crença cristã, pertenceria ao Criador, ou seja: seu domínio se funda num poder usurpado, tomado a outrem. Do mesmo modo a ditadura militar, que se assenhoreou do comando político depois de um golpe de Estado perpetrado, em 1964, contra um governo democraticamente eleito. Defrontados numa relação especular em que se refletem alegoria e realidade, a Força e o regime de exceção instaurado no Brasil partilham um traço essencial que os irmana: o exercício de um poder espúrio.
Sob a perspectiva histórica, é de fato imediata a correlação entre a Força nefasta que paira sobre a letra de “Deus lhe pague” e o governo autoritário que sujeitava o país. Não obstante, o apelo da canção não se restringe a tal circunstância, tampouco nela se esgota. A existência de quaisquer formas de opressão, seja política, econômica, ideológica, moral, cultural, religiosa, garante-lhe permanência e desoladora atemporalidade. Enquanto houver quem na calada da noite se dane e diga “Ninguém vai me sujeitar”, o grito nada demente de “Deus lhe pague” soará claro e legítimo.

4. A VOZ DO DONO

Para além da hábil elaboração poética, a canção vale-se também de elementos próprios da linguagem musical – melodia, harmonia, ritmo, arranjo, interpretação. Cremos que algumas observações sobre esse entorno extratextual podem, em vez de desviar o foco, ampliar o alcance da análise poética.
Deus lhe pague” foi gravada por intérpretes de variadas vertentes, como Elis Regina (em Transversal do tempo, de 1978), Edson Cordeiro (no Songbook Chico Buarque, vol. 7, de 1999) e os grupos Quarteto em Cy (em Chico em Cy, de 1991), O Rappa (no álbum O silêncio que precede o esporro, de 2003) e Os Paralamas do Sucesso (no CD Hoje, de 2005). As regravações afirmam a continuidade da canção ao longo desses quarenta anos e realçam diferentes matizes a partir da interpretação singular de cada artista. Aqui, porém, as breves considerações acerca da configuração musical que embala os versos de “Deus lhe pague” se limitarão ao registro “original”, isto é, a gravação do próprio Chico em Construção.
Nas quatro primeiras estrofes, a voz do cantor soa baixa, à maneira de quem, subserviente, se dirige a um superior. Se o tom de surdina pode sublinhar a aparente submissão do sujeito lírico, também pode, ao mesmo tempo, soar como execração desferida entre dentes contra aquele que o oprime. Vazado num ambivalente quase sussurro, o canto reproduz na realização musical as virtualidades de sentido do discurso poético. Mais à frente a voz do intérprete se eleva, e a mansidão vocal cede passo à inflexão incisiva com que se entoam as duas últimas quadras. Agora, parecem insinuar-se no canto a aflição e a angústia que impregnam aqueles versos, que falam de “um dia, agonia, pra suportar e assistir”, do “rangido de dentes”, da “cidade a zunir”, da morte em grotesca figuração. A voz desabrida nessas estrofes ecoa como “grito que ajuda a fugir” ou, mais que isso, como clamor, em alto e bom som, contra a tirania.
Duas únicas linhas melódicas se revezam na canção: uma, composta com pouquíssima variação de notas, serve aos três primeiros versos de cada quadra; a outra, ainda mais minguada, desenha musicalmente o verso “Deus lhe pague”. O escritor Wagner Homem comenta a gênese da canção: “Primeiro nasceu o tema musical de um som chateando o tempo todo”.82 Na gravação de Chico Buarque, a ideia de “um som chateando o tempo todo” traduz-se na melodia monocórdia, a qual, apoiada numa pulsação rítmica inalterável e numa harmonia também muito pouco variante, imprime ao canto uma feição de fala. Mais: a deliberada monotonia musical produz, em especial nas estrofes cantadas em voz baixa, uma atmosfera próxima a de uma ladainha – uma litania profana, pontuada pelo estribilho “Deus lhe pague”, que se repete como um “ora pro nobis”.
Contraposta à circularidade da melodia, a letra é cantada sem retornos ou repetições – apenas o verso “Deus lhe pague” ressurge ao fim de cada estrofe. Isso confere ao discurso poético certa progressividade que, se não instaura um fluxo cronológico rigidamente demarcado, assinala uma sequência temporal. Entre “a certidão pra nascer” e “a paz derradeira”, passa em desfile a existência opressa do sujeito lírico, apresentada num mosaico de fragmentos amalgamados em torno da expressão “Deus lhe pague”. Postos em movimento, esses estilhaços de vida são tangidos não pelo sujeito, mas por uma roda-viva que forçosamente o arrebata, já que lhe é negada voz ativa para no seu destino mandar.

5. TIJOLO COM TIJOLO NUM DESENHO MÁGICO

Além de abrir o disco, “Deus lhe pague” retorna, no mesmo álbum, acoplada à canção que dá título ao LP – ao fim de “Construção”, são entoadas três quadras de “Deus lhe pague”. A mescla das canções deixa patente a relação umbilical que as aproxima desde a origem. Referindo-se ao processo criativo de Chico Buarque, o jornalista Humberto Werneck afirma que “na esteira de ‘Deus lhe pague’ veio ‘Construção’”.84 Elaborada sobre caleidoscópica permutação poética, “Construção” narra o último dia da vida ordinária de um operário, morto ao despencar do edifício em que trabalha.
O eixo temático de “Construção” estabelece imediata correspondência com os “andaimes, pingentes, que a gente tem que cair” aludidos na terceira estrofe de “Deus lhe pague”. A história do joão-ninguém que “se acabou no chão feito um pacote flácido” parece desdobrar-se desse verso, como se a atenção do poeta se fixasse no trágico acontecimento mencionado de passagem em “Deus lhe pague” e puxasse dali o fio com que urdiria a nova canção. Findo o registro dos instantes finais do pobre-diabo, reaparecem a primeira, a terceira e a última quadras de “Deus lhe pague”, como um adendo a contextualizar a existência reles do sujeito que morreu atrapalhando o tráfego, o público, o sábado. Mais que sinalizar vínculo estético ou afinidade temática entre as canções, a estratégia de infiltrar “Deus lhe pague” em “Construção” insinua que o poder daninho e o que ele traz a reboque – a miséria, a desigualdade, a opressão, o aniquilamento do indivíduo – não se restringem à faixa de abertura: espraiando-se para outros domínios, como é próprio da autoridade espúria, igualmente afetam e definem a vida desvalida do protagonista de “Construção”.

6. ALÔ, LIBERDADE

Desde o surgimento de “Deus lhe pague”, muita coisa mudou no Brasil e no mundo. Por aqui, extinto o regime autoritário, o horror daqueles tempos permanece como uma nódoa em nosso passado recente. Reconquistamos o direito ao voto e tivemos no mais alto posto do comando político do país, por dois mandatos consecutivos, um líder operário perseguido pela repressão. A sucedê-lo, a primeira mulher na presidência da República combatera frontalmente a ditadura militar. A História tem seus caprichos. Em tom premonitório e alvissareiro, Chico já anunciava, bem no meio daquela noite tenebrosa, que amanhã haveria de ser outro dia.

Luciano Rosa, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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