O
disco Construção é um clássico não apenas na discografia
de Chico Buarque de Hollanda, mas na história da música popular
brasileira. Lançado em 1971, período em que a caça às bruxas
promovida pela ditadura militar se tornava ainda mais sombria e
truculenta, o álbum reúne, além da brilhante canção-título,
pérolas como “Desalento”, “Valsinha” (parcerias com Vinicius
de Moraes), “Samba de Orly” (com Vinicius e Toquinho), “Minha
história” e “Cotidiano”. Surgido logo após o exílio de Chico
em Roma, o LP inaugurava um novo estágio na obra do compositor, que,
grande já nos primeiros trabalhos, não cessaria de exceder-se ao
longo de sua trajetória. Fato é que Construção, ao
registrar de forma definitiva o olhar sensível e atento do artista
sobre o Brasil submetido e amordaçado dos anos de chumbo, despontava
como um grito contra a opressão.
Um
álbum de tamanho peso simbólico abre-se com uma faixa não menos
emblemática: serve-lhe de pórtico “Deus lhe pague”,
canção-síntese daquele momento histórico. Denunciando e
desafiando o jugo imposto pelo regime de exceção que sujeitava o
país no início da década de 1970, a canção atravessa o tempo
como documento e testemunho, mas também como artefato estético. O
preciso trabalho com a linguagem, embalado em provocativa composição
musical, faz “Deus lhe pague” se esquivar das raias da canção
de protesto e permanecer chamando atenção.
1.
HOJE VOCÊ É QUEM MANDA
À
primeira vista, a canção, como sugere o título, é uma
manifestação de agradecimento. O texto articula uma série de
aspectos essenciais ou circunstanciais da vida do sujeito lírico
que, uma vez concedidos, permitidos ou tolerados, ensejariam
gratidão. Esse o esquema que organiza toda a letra, estruturada em
seis quadras que obedecem à mesma arquitetura: três versos que
citam elementos cotidianos e, concluindo a estrofe, a popular
sentença “Deus lhe pague”.
De
saída convém nos determos nas pessoas implicadas no discurso
poético. Numa primeira leitura, o sujeito lírico aparece como
aquele que agradece, de vez que é ele quem recebe as mercês
aludidas no texto. Importa saber a quem se devem os agradecimentos. A
primeira estrofe coloca instigante questão a respeito:
Por
esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A
certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por
me deixar respirar, por me deixar existir
Deus
lhe pague
Na
quadra de abertura o sujeito agradece favores que lhe tornam possível
a existência. Se no primeiro verso as graças têm por objeto o pão
e o chão, tomados, por extensão de sentido, como alimento e morada,
no segundo elas se vinculam a algo ainda mais fundamental: o ato de
nascer. A terceira linha, por seu turno, acentua a generosidade que
permite ao sujeito respirar e existir. A estrofe inicial manifesta,
assim, uma tutela benevolente, merecedora de todo agradecimento por,
em última análise, conceber e conceder a vida. Presumivelmente, tal
reconhecimento seria consagrado ao Criador – o onipotente, regente
supremo de todos os seres e todas as coisas, a quem o senso comum
chama Deus. Segundo crença corrente, ele, Deus, seria o sumo senhor
da vida e da morte, e a ele se deveriam as graças pela existência e
pelo que a propicia e viabiliza. Entretanto, o remate da estrofe
frustra essa expectativa. Ao valer-se da expressão “Deus lhe
pague”, o sujeito lírico deixa claro que seu agradecimento se
dirige não a Deus – como ocorreria se empregasse, por exemplo, a
expressão “graças a Deus” –, mas a uma outra pessoa
(gramaticalmente representada pelo pronome “lhe”) cujos atos
magnânimos deveriam ser recompensados pelo Todo-Poderoso.
Surge
assim no discurso poético uma espécie de “ente superior”, uma
Força indefinida e inominada que exerce total ingerência na vida do
sujeito lírico. O traço substantivo de tal figura é a condição
de mando, a qual, estendendo-se ao arbítrio sobre a vida e a morte,
equipara-se ao poder divino. E como quem pode mais pode menos, a
intervenção dessa Força também se faz sentir em prosaicas
situações do dia a dia. As segunda e terceira estrofes enumeram
lances cotidianos que, proporcionados ou consentidos pelo “ente
superior”, motivam as graças que lhe são rendidas:
Pelo
prazer de chorar e pelo “estamos aí”
Pela
piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um
crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus
lhe pague
Por
essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O
amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo
domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus
lhe pague
A
piada no bar, o crime pra comentar, o futebol, o samba, a praia, a
saia, as mulheres, o domingo, a novela, a missa, o gibi, igualmente
dignos de agradecimento, atestam o domínio absoluto da Força, cuja
autoridade se espraia desde o “deixar existir” até os prazeres
triviais. Não espanta que tais benesses, ligadas ao deleite e ao
contentamento, suscitem gratidão.
Nas
estrofes seguintes, contudo, os “obséquios” agradecidos causam
estranhamento, de vez que não representam qualquer oferta benfazeja.
A propósito, a terceira quadra antecipa uma satisfação esvaziada:
o prazer deficitário do “amor malfeito depressa”, em que o
enlace amoroso se reduz a simples etapa de um processo maquinal, à
qual se seguem as tarefas de “fazer a barba e partir”, prenuncia
um mal-estar que se potencializará adiante. Aparentemente destoantes
das três primeiras quadras, nas quais o movimento de gratidão se
legitimaria, em geral, a partir de “bons favores”, as três
últimas estâncias delineiam um quadro aflitivo, agônico, composto
por imposições e nocividades que, em vez de atrair graças,
propendem a despertar indignação:
Pela
cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela
fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos
andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus
lhe pague
Por
mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo
rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E
pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus
lhe pague
Pela
mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E
pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E
pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus
lhe pague
Nessa
segunda metade, a letra parece enveredar por outro caminho, em que o
suposto discurso laudatório das quadras iniciais perde a razão de
ser. Afinal, não seria razoável agradecer a “fumaça, desgraça,
que a gente tem que tossir”, os “andaimes, pingentes, que a gente
tem que cair”, “um dia, agonia, pra suportar e assistir” ou as
“moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir”. Todavia, a estrutura
textual não se altera: o verso “Deus lhe pague” permanece a
concluir as estrofes, que agora deixam de referir-se apenas à pessoa
do sujeito lírico e assumem um tom coletivo (as marcas de primeira
pessoa do singular – “Por me deixar respirar, por me
deixar existir” – dão lugar a expressões e pronomes
pluralizados, como “a gente” e “nos”).
2.
O MEU CANTO, PUNHALADA
No
uso popular, a frase feita “Deus lhe pague” tem, de fato,
intenção de agradecimento, manifesto por alguém que, não tendo
meios de retribuir um favor recebido, atribui a Deus a tarefa de
recompensar o benfeitor: “Deus lhe pague, porque eu não tenho como
pagá-lo pelo bem que me fez”. Contudo, na canção de Chico
Buarque, outros sentidos parecem somar-se ao significado habitual da
expressão.
As
três últimas quadras, bem vimos, aludem a elementos que normalmente
provocariam revolta, não gratidão. O verso “Deus lhe pague” a
finalizar as estrofes assumiria, pois, outra acepção, muito mais
próxima de um apelo à justiça divina do que de uma manifestação
de agradecimento. Não se perca de vista que o texto se constrói em
torno de uma Força que intervém em todas as instâncias da vida do
sujeito lírico. Esse “ente superior” é causa de sua desventura,
expressa de forma mais explícita na segunda metade do texto. Nesse
sentido, ao imprecar a Deus que pague ao “ente superior” a
“fumaça, desgraça”, o “dia, agonia”, o “rangido de
dentes”, a “cidade a zunir”, o sujeito manifesta seu desejo de
justiça – ou vingança – contra a tirania que o domina e ofende,
formulando seu anseio de desforra nos seguintes moldes: “Deus lhe
pague na mesma moeda (o castigue por) todo o sofrimento que me faz
passar”.
Desdobrado
o potencial significativo da expressão que a intitula e lhe dá
sentido, a letra de “Deus lhe pague” adquire outra densidade e se
abre a nova perspectiva de leitura. Com engenhosa sutileza, o texto
arma uma espécie de ardil poético, no qual um simulacro de gratidão
servil camufla o brado velado e eloquente contra a injustiça e o
poder espúrio. Sob a aparente subserviência resignada, o que impele
a voz do sujeito lírico é a lucidez combativa, e o que à primeira
vista pareceria adulação irrefletida e infundada é, na realidade,
denúncia contra o desmando e sede de justiça.
Voltemos
à primeira metade do texto, agora à luz das virtualidades
significativas da expressão “Deus lhe pague”, e os “favores”
concedidos ao sujeito lírico já não parecem tão favoráveis. O
verso inicial, por exemplo, considerados o “pão” e o “chão”
em sentido literal, pode provocar, em vez de agradecimento, a revolta
do sujeito contra a Força que lhe impinge severas privações,
concedendo-lhe (ou proporcionando-lhe) apenas o pão como alimento e
o chão como cama. Da mesma forma, também pode resultar em
indignação o jugo que exige permissão para ações fundamentais,
como nascer, sorrir, respirar, existir. Ao fim da estrofe, o pedido –
ou a esperança – do desafortunado: “Deus lhe pague na mesma
moeda a penúria e a indignidade que a submissão me inflige”.
Nas
segunda e terceira quadras as potencialidades semânticas do verso
final também se alternam. Os prazeres cotidianos bem poderiam, como
aventamos, dar causa à gratidão do sujeito lírico. Entretanto, é
também legítimo supô-los engrenagens de um mecanismo de alienação
a serviço de um sistema de controle, à semelhança do panis et
circenses romano. Pão e circo ao povo (lembre-se o “pão pra
comer” do verso de abertura), de modo a mantê-lo minimamente de
barriga cheia e sob a embriaguez de alguma alegria consentida
(lembre-se a “cachaça, de graça, que a gente tem que engolir”),
alheio, portanto, a questões políticas e assuntos do poder. Marcas
de certo estereótipo de brasilidade, o futebol, o samba (a “ofegante
epidemia” do carnaval, por extensão) e a novela são esteios sobre
os quais se assenta a lona do apaziguamento que encobre as mazelas e
faz do Brasil uma arena simbólica animada por jogos e espetáculos
que fascinam na mesma medida em que vincam fundo o imaginário
popular. Outros elementos textuais se articulam em torno desse
“mecanismo de alienação”: a “piada no bar”, o “crime pra
comentar” e o “gibi” são também mera distração – a
um só tempo entretenimento e desatenção. A “missa” sugere, a
partir do microcosmo da liturgia religiosa, um discurso fundado na
ordem e na indulgência, proferido por uma voz de tutela (o sacerdote
a conduzir o rebanho) em conveniente harmonia com o poder de mando
que se infiltra por todo o texto. A real intenção de todo esse
aparato, no entanto, não escapa à consciência aguda do sujeito
lírico: “Deus lhe pague na mesma moeda a tentativa perversa de
embotar-me o senso crítico”.
Se
as virtualidades de sentido da expressão “Deus lhe pague” se
intercambiam de modo mais explícito nas três primeiras quadras, nas
três últimas elas também se validam, não obstante um presumível,
mas não absoluto, descabimento de o verso manifestar gratidão.
Pode-se postular boa dose de complacência no sujeito lírico, o que
justificaria o agradecimento mesmo diante das vicissitudes promovidas
pelo “ente superior”. Tal atitude o aproximaria do bíblico Jó,
que, após suportar terríveis adversidades com inabalável
tolerância, em vez de blasfemar, louvou o seu Deus: “Bendito seja
o nome do Senhor”. A gratidão sincera do sujeito lírico, quando
às voltas com os infortúnios das três estrofes finais, poderia
legitimar-se, talvez, pela crença cristã no benefício do
sofrimento, idealizado como forma de purificação ou salvação.
Seja como for, mais um sentido – improvável, embora possível –
se credencia entre as possibilidades de significado do verso “Deus
lhe pague”.
A
comutação de sentidos que permeia todo o texto tem seu grand
finale na última estrofe, na qual, depois de tanta desdita, a
existência do sujeito chega ao fim. Atente-se nas ações em torno
do sujeito lírico – ou da coletividade que ele representa,
convocada pelo pronome “nos”: ele é louvado, beijado, coberto,
cuspido. O ultraje de ser alvejado por cuspe injeta na expressão
“Deus lhe pague” o desejo de desforra, mas a deferência de ser
louvado despertaria sincera gratidão, tal como os afagos de ser
beijado e coberto, atos que chegam a lembrar o zelo materno diante do
filho adormecido. Todavia, a suposta benignidade de tais ações cai
por terra quando se revelam os agentes: é a simulada e mercenária
carpideira quem o louva, e quem o beija e cobre são asquerosas
“moscas-bicheiras”. Adiante, a síntese lapidar da ambivalência
de sentidos: o golpe capital que tira a vida do sujeito é, ao mesmo
tempo, sua forma de escapar à tormentosa existência. Conciliando
tragédia e redenção, a morte (a “paz derradeira”) aciona, mais
uma vez, as várias significações do verso “Deus lhe pague”. O
livre trânsito do adverso e do favorável promove a multiplicidade
de sentidos por toda a última quadra, como de resto por todo o
texto.
Ademais,
a letra da canção é pontuada pela ironia, patente, por exemplo, na
terceira estrofe, quando o adjetivo “lindo” destoa, em jocoso
contraste, do substantivo que qualifica – um “domingo” sem
viço, escoado na sensaboria da trinca “novela, missa, gibi”. O
matiz irônico confere ao sentido costumeiro da expressão “Deus
lhe pague” uma nova nuança, também admissível no fecho de todas
as quadras. Sob o prisma da ironia, o real propósito do sujeito
lírico não seria agradecer as graças, mas desagradecer (e
denunciar) as desgraças que lhe são impostas. Algo do tipo
“obrigado pelo mal que me causou”, enunciação cuja flagrante
incongruência não deixa dúvida quanto ao desagrado de quem a
profere.
Estratégia
similar está na base de outras canções da época, do próprio
Chico e de outros compositores. Gonzaguinha escreveu “Comportamento
geral” e “Um sorriso nos lábios”,81 que seguem a mesma trilha
de “Deus lhe pague”. Elaboradas com alto teor de ironia, disparam
versos como “Você deve lutar pela xepa da feira / E dizer que está
recompensado”, “Você deve rezar pelo bem do patrão / E esquecer
que está desempregado”, “Você deve aprender a baixar a cabeça
/ E dizer sempre ‘muito obrigado’” (“Comportamento geral”);
“Vidro moído ou areia / No café da manhã / E um sorriso nos
lábios”, “O cerco, a vida, o circo / Silêncio, um medo anormal
/ E um sorriso nos lábios”, “Mas sonha que passa / Ou toma
cachaça / Aguenta firme, irmão, / Na oração / Deus tudo vê e
Deus dará / Ou então acha graça / É tão pouca a desgraça”
(“Um sorriso nos lábios”). O verdadeiro sentido desses versos é
diametralmente oposto ao que se oferece à superfície das frases.
Tal como na canção buarqueana, a aparente brandura da lírica de
Gonzaguinha mascara (ou finge que tenta mascarar) a virulência
inoculada em seu discurso.
A
letra de “Deus lhe pague” se urde, assim, em tramas de sentido
superpostas. O verso-título agencia, em todas as ocorrências,
significados plurais que, atuando em conjunto, cunham o caráter
multívoco da letra. Agradecimento sincero, (des)gratidão irônica,
desejo de revanche: significados latentes no verso “Deus lhe pague”
que acionam diferentes possibilidades de leitura. Convocada ao
território poético, a expressão adquire inusitados sentidos e se
converte em senha de leitura, de vez que os arranjos semânticos por
ela estabelecidos interferem de forma decisiva no(s) sentido(s) do
discurso. E é justo na confluência dessas virtualidades que o texto
poético se amplifica e se realiza em plenitude.
3.
O QUE SERÁ?
Uma
questão ainda permanece: a quem se dirige a expressão “Deus lhe
pague”, isto é, quem se oculta por trás do que aqui chamamos a
Força ou “ente superior”? Considerado o momento histórico em
que foi composta, a canção estabelece franco diálogo com a
situação política brasileira do início da década de 1970. A
ditadura militar, naqueles tempos ainda mais recrudescida, encarna
com perfeição a Força que subjuga o sujeito lírico. A
identificação entre ambas se estabelece não apenas pela condição
de mando, mas também pela natureza do poder que lhes assegura a
autoridade. Na alegoria da canção, o domínio da Força equivale à
supremacia de Deus: é ela, a Força, que intervém desde a origem da
vida (a certidão para nascer, a permissão para respirar e existir,
na primeira estrofe) até o aniquilamento do sujeito, simbolizado na
última quadra pelo indigno funeral em que tomam parte a mulher
carpideira e as moscas-bicheiras. Senhora da vida e da morte, a Força
exerce, já o salientamos, um poder que originariamente, segundo a
crença cristã, pertenceria ao Criador, ou seja: seu domínio se
funda num poder usurpado, tomado a outrem. Do mesmo modo a ditadura
militar, que se assenhoreou do comando político depois de um golpe
de Estado perpetrado, em 1964, contra um governo democraticamente
eleito. Defrontados numa relação especular em que se refletem
alegoria e realidade, a Força e o regime de exceção instaurado no
Brasil partilham um traço essencial que os irmana: o exercício de
um poder espúrio.
Sob
a perspectiva histórica, é de fato imediata a correlação entre a
Força nefasta que paira sobre a letra de “Deus lhe pague” e o
governo autoritário que sujeitava o país. Não obstante, o apelo da
canção não se restringe a tal circunstância, tampouco nela se
esgota. A existência de quaisquer formas de opressão, seja
política, econômica, ideológica, moral, cultural, religiosa,
garante-lhe permanência e desoladora atemporalidade. Enquanto houver
quem na calada da noite se dane e diga “Ninguém vai me sujeitar”,
o grito nada demente de “Deus lhe pague” soará claro e legítimo.
4.
A VOZ DO DONO
Para
além da hábil elaboração poética, a canção vale-se também de
elementos próprios da linguagem musical – melodia, harmonia,
ritmo, arranjo, interpretação. Cremos que algumas observações
sobre esse entorno extratextual podem, em vez de desviar o foco,
ampliar o alcance da análise poética.
“Deus
lhe pague” foi gravada por intérpretes de variadas vertentes, como
Elis Regina (em Transversal do tempo, de 1978), Edson Cordeiro
(no Songbook Chico Buarque, vol. 7, de 1999) e os
grupos Quarteto em Cy (em Chico em Cy, de 1991), O Rappa (no
álbum O silêncio que precede o esporro, de 2003) e Os
Paralamas do Sucesso (no CD Hoje, de 2005). As regravações
afirmam a continuidade da canção ao longo desses quarenta anos e
realçam diferentes matizes a partir da interpretação singular de
cada artista. Aqui, porém, as breves considerações acerca da
configuração musical que embala os versos de “Deus lhe pague”
se limitarão ao registro “original”, isto é, a gravação do
próprio Chico em Construção.
Nas
quatro primeiras estrofes, a voz do cantor soa baixa, à maneira de
quem, subserviente, se dirige a um superior. Se o tom de surdina pode
sublinhar a aparente submissão do sujeito lírico, também pode, ao
mesmo tempo, soar como execração desferida entre dentes contra
aquele que o oprime. Vazado num ambivalente quase sussurro, o canto
reproduz na realização musical as virtualidades de sentido do
discurso poético. Mais à frente a voz do intérprete se eleva, e a
mansidão vocal cede passo à inflexão incisiva com que se entoam as
duas últimas quadras. Agora, parecem insinuar-se no canto a aflição
e a angústia que impregnam aqueles versos, que falam de “um dia,
agonia, pra suportar e assistir”, do “rangido de dentes”, da
“cidade a zunir”, da morte em grotesca figuração. A voz
desabrida nessas estrofes ecoa como “grito que ajuda a fugir” ou,
mais que isso, como clamor, em alto e bom som, contra a tirania.
Duas
únicas linhas melódicas se revezam na canção: uma, composta com
pouquíssima variação de notas, serve aos três primeiros versos de
cada quadra; a outra, ainda mais minguada, desenha musicalmente o
verso “Deus lhe pague”. O escritor Wagner Homem comenta a gênese
da canção: “Primeiro nasceu o tema musical de um som chateando o
tempo todo”.82 Na gravação de Chico Buarque, a ideia de “um som
chateando o tempo todo” traduz-se na melodia monocórdia, a qual,
apoiada numa pulsação rítmica inalterável e numa harmonia também
muito pouco variante, imprime ao canto uma feição de fala. Mais: a
deliberada monotonia musical produz, em especial nas estrofes
cantadas em voz baixa, uma atmosfera próxima a de uma ladainha –
uma litania profana, pontuada pelo estribilho “Deus lhe pague”,
que se repete como um “ora pro nobis”.
Contraposta
à circularidade da melodia, a letra é cantada sem retornos ou
repetições – apenas o verso “Deus lhe pague” ressurge ao fim
de cada estrofe. Isso confere ao discurso poético certa
progressividade que, se não instaura um fluxo cronológico
rigidamente demarcado, assinala uma sequência temporal. Entre “a
certidão pra nascer” e “a paz derradeira”, passa em desfile a
existência opressa do sujeito lírico, apresentada num mosaico de
fragmentos amalgamados em torno da expressão “Deus lhe pague”.
Postos em movimento, esses estilhaços de vida são tangidos não
pelo sujeito, mas por uma roda-viva que forçosamente o arrebata, já
que lhe é negada voz ativa para no seu destino mandar.
5.
TIJOLO COM TIJOLO NUM DESENHO MÁGICO
Além
de abrir o disco, “Deus lhe pague” retorna, no mesmo álbum,
acoplada à canção que dá título ao LP – ao fim de
“Construção”, são entoadas três quadras de “Deus lhe
pague”. A mescla das canções deixa patente a relação umbilical
que as aproxima desde a origem. Referindo-se ao processo criativo de
Chico Buarque, o jornalista Humberto Werneck afirma que “na esteira
de ‘Deus lhe pague’ veio ‘Construção’”.84 Elaborada sobre
caleidoscópica permutação poética, “Construção” narra o
último dia da vida ordinária de um operário, morto ao despencar do
edifício em que trabalha.
O
eixo temático de “Construção” estabelece imediata
correspondência com os “andaimes, pingentes, que a gente tem que
cair” aludidos na terceira estrofe de “Deus lhe pague”. A
história do joão-ninguém que “se acabou no chão feito um pacote
flácido” parece desdobrar-se desse verso, como se a atenção do
poeta se fixasse no trágico acontecimento mencionado de passagem em
“Deus lhe pague” e puxasse dali o fio com que urdiria a nova
canção. Findo o registro dos instantes finais do pobre-diabo,
reaparecem a primeira, a terceira e a última quadras de “Deus lhe
pague”, como um adendo a contextualizar a existência reles do
sujeito que morreu atrapalhando o tráfego, o público, o sábado.
Mais que sinalizar vínculo estético ou afinidade temática entre as
canções, a estratégia de infiltrar “Deus lhe pague” em
“Construção” insinua que o poder daninho e o que ele traz a
reboque – a miséria, a desigualdade, a opressão, o aniquilamento
do indivíduo – não se restringem à faixa de abertura:
espraiando-se para outros domínios, como é próprio da autoridade
espúria, igualmente afetam e definem a vida desvalida do
protagonista de “Construção”.
6.
ALÔ, LIBERDADE
Desde
o surgimento de “Deus lhe pague”, muita coisa mudou no Brasil e
no mundo. Por aqui, extinto o regime autoritário, o horror daqueles
tempos permanece como uma nódoa em nosso passado recente.
Reconquistamos o direito ao voto e tivemos no mais alto posto do
comando político do país, por dois mandatos consecutivos, um líder
operário perseguido pela repressão. A sucedê-lo, a primeira mulher
na presidência da República combatera frontalmente a ditadura
militar. A História tem seus caprichos. Em tom premonitório e
alvissareiro, Chico já anunciava, bem no meio daquela noite
tenebrosa, que amanhã haveria de ser outro dia.
Luciano Rosa, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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