sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Morte à tarde


Para Penélope, tudo ia bem.
Os anos chegavam e partiam.
Já fazia tempo que ela saíra do acampamento, e na época morava sozinha em um apartamento térreo na rua Pepper. Pimenta. Ela adorava aquele nome.
Além disso, trabalhava com outras mulheres: uma Stella, uma Marion, uma Lynn.
Elas formavam duplas alternadas e faziam faxinas por toda a cidade. É claro que Penélope já economizava para comprar um piano usado, aguardando o momento da aquisição com paciência. Em seu apartamento pequenino na rua Pepper, ela guardava o dinheiro em uma caixa de sapatos embaixo da cama.
Também continuava travando sua batalha para domar a língua inglesa e sentia que a cada noite chegava mais perto do objetivo. Suas ambições de ler, de cabo a rabo, tanto a Ilíada quanto a Odisseia começavam a ganhar contornos reais. Ela varava noites e noites sentada na cozinha, com o dicionário ao lado. Não raro, era assim que caía no sono, com a cara amassada e marcada pelas páginas; era seu Everest diário, os ossos do ofício de imigrante.
Não poderia ser mais típico, ou mais perfeito.
Afinal de contas, estamos falando de Penélope.
Quando enfim o evento se abateu sobre ela, o mundo inteiro desmoronou aos seus pés.

***

Era como nos dois livros.
Sempre que uma guerra estava prestes a ser vencida, um deus se punha no caminho. Naquele caso, foi a obliteração:
Uma carta chegou.
Informava que ele tinha morrido; ao ar livre.
Seu corpo foi encontrado ao lado de um banco de parque velho. Aparentemente, estava perto dos balanços, o rosto coberto por um pouco de neve, o punho cerrado enterrado no peito. Não era um gesto patriótico.
A data do enterro precedia à da carta.
Tudo muito discreto.
Ele havia morrido.

***

Naquela tarde, o sol iluminava a cozinha, e, quando ela largou a correspondência, a carta flutuou no ar, como um pêndulo de papel, e foi parar sob a geladeira. Ela passou vários minutos de quatro, enfiando a mão no vão, tentando recuperá-la.
Meu Deus, Penny.
Lá estava você.
Lá estava você, arranhando e esticando os joelhos no chão, com a mesa abarrotada de livros logo atrás. Lá estava você, com os olhos turvos e o peito pesaroso, o rosto colado no chão — a bochecha e a orelha —, as costas magras voltadas para cima.
Graças a Deus você fez o que fez em seguida.
Nós amamos o que você fez em seguida.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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