Este
sonho foi de uma assombração triste. Começa como pelo meio. Havia
uma geleia que estava viva. Quais eram os sentimentos da geleia. O
silêncio. Viva e silenciosa, a geleia arrastava-se com dificuldade
pela mesa, descendo, subindo, vagarosa, sem se esparramar. Quem
pegava nela? Ninguém tinha coragem. Quando a olhei, nela vi
espelhado meu próprio rosto mexendo-se lento na sua vida. Minha
deformação essencial. Deformada sem me derramar. Também eu apenas
viva. Lançada no horror, quis fugir da minha semelhante – da
geleia primária – e fui ao terraço, pronta a me lançar daquele
meu último andar. Era noite fechada, e isso eu via do terraço, e eu
estava tão perdida de medo que o fim se aproximava: tudo o que é
forte demais parece estar perto de um fim. Mas antes de saltar do
terraço, eu resolvia pintar os lábios. Pareceu-me que o batom
estava curiosamente mole. Percebi então: o batom também era de
geleia viva. E ali estava eu no terraço escuro com a boca úmida da
coisa viva.
Quando
já estava com as pernas para fora do balcão, foi que vi os olhos do
escuro. Não “olhos no escuro”: mas os olhos do escuro. O escuro
me espiava com dois olhos grandes, separados. A escuridão, pois,
também era viva. Aonde encontraria eu a morte? A morte era geleia
viva, eu sabia. Vivo estava tudo. Tudo é vivo, primário, lento,
tudo é primariamente imortal.
Com
uma dificuldade quase insuperável consegui acordar-me a mim mesma,
como se eu me puxasse pelos cabelos para sair daquele atolado vivo.
Abri
os olhos. O quarto estava escuro, mas era um escuro reconhecível,
não o profundo escuro do qual eu me arrancara. Senti-me mais
tranquila. Tudo não passara de um sonho. Mas percebi que um dos meus
braços estava para fora do lençol. Como um sobressalto, recolhi-o:
nada meu deveria estar exposto, se é que eu ainda queria me salvar.
Eu queria me salvar? Acho que sim: pois acendi a luz da cabeceira
para me acordar inteiramente. E vi o quarto de contornos firmes.
Havíamos – continuava eu em atmosfera de sonho – havíamos
endurecido a geleia viva em parede, havíamos endurecido a geleia
viva em teto; havíamos matado tudo o que se podia matar, tentando
restaurar a paz da morte em torno de nós, fugindo ao que era pior
que a morte: a vida pura, a geleia viva. Fechei a luz. De repente um
galo cantou. Num edifício de apartamentos, um galo? Um galo rouco.
No edifício caiado de branco, um galo vivo. Por fora a casa limpa, e
por dentro o grito? assim falava o Livro. Por fora a morte
conseguida, limpa, definitiva – mas por dentro a geleia
elementarmente viva. Disso eu soube, no primário da noite.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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