terça-feira, 9 de janeiro de 2024

A geleia viva como placenta

Este sonho foi de uma assombração triste. Começa como pelo meio. Havia uma geleia que estava viva. Quais eram os sentimentos da geleia. O silêncio. Viva e silenciosa, a geleia arrastava-se com dificuldade pela mesa, descendo, subindo, vagarosa, sem se esparramar. Quem pegava nela? Ninguém tinha coragem. Quando a olhei, nela vi espelhado meu próprio rosto mexendo-se lento na sua vida. Minha deformação essencial. Deformada sem me derramar. Também eu apenas viva. Lançada no horror, quis fugir da minha semelhante – da geleia primária – e fui ao terraço, pronta a me lançar daquele meu último andar. Era noite fechada, e isso eu via do terraço, e eu estava tão perdida de medo que o fim se aproximava: tudo o que é forte demais parece estar perto de um fim. Mas antes de saltar do terraço, eu resolvia pintar os lábios. Pareceu-me que o batom estava curiosamente mole. Percebi então: o batom também era de geleia viva. E ali estava eu no terraço escuro com a boca úmida da coisa viva.
Quando já estava com as pernas para fora do balcão, foi que vi os olhos do escuro. Não “olhos no escuro”: mas os olhos do escuro. O escuro me espiava com dois olhos grandes, separados. A escuridão, pois, também era viva. Aonde encontraria eu a morte? A morte era geleia viva, eu sabia. Vivo estava tudo. Tudo é vivo, primário, lento, tudo é primariamente imortal.
Com uma dificuldade quase insuperável consegui acordar-me a mim mesma, como se eu me puxasse pelos cabelos para sair daquele atolado vivo.
Abri os olhos. O quarto estava escuro, mas era um escuro reconhecível, não o profundo escuro do qual eu me arrancara. Senti-me mais tranquila. Tudo não passara de um sonho. Mas percebi que um dos meus braços estava para fora do lençol. Como um sobressalto, recolhi-o: nada meu deveria estar exposto, se é que eu ainda queria me salvar. Eu queria me salvar? Acho que sim: pois acendi a luz da cabeceira para me acordar inteiramente. E vi o quarto de contornos firmes. Havíamos – continuava eu em atmosfera de sonho – havíamos endurecido a geleia viva em parede, havíamos endurecido a geleia viva em teto; havíamos matado tudo o que se podia matar, tentando restaurar a paz da morte em torno de nós, fugindo ao que era pior que a morte: a vida pura, a geleia viva. Fechei a luz. De repente um galo cantou. Num edifício de apartamentos, um galo? Um galo rouco. No edifício caiado de branco, um galo vivo. Por fora a casa limpa, e por dentro o grito? assim falava o Livro. Por fora a morte conseguida, limpa, definitiva – mas por dentro a geleia elementarmente viva. Disso eu soube, no primário da noite.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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