sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Parte Um | Trêmulo e casto


[…]

PRECISO DA EXPLICAÇÃO brilhante da clareza de cristal de todos os Mundos para mostrar que ficaremos todos bem – A medida de máquinas robôs dessa vez é um tanto irrelevante, talvez todas as vezes – O fato de Cruz cozinhar em um fogão de querosene fumarento grandes caçarolas cheias de carne, carne-geral de um novilho inteiro, pedaços de vitela, pedaços de tripa de vitela e miolos de novilho e ossos de testa de novilho... isso jamais mandaria Cruz para o inferno porque ninguém disse a ela para parar a chacina, e mesmo se alguém tivesse feito isso, Cristo ou Buda ou Ó Santificado Maomé, ela ainda estaria segura contra qualquer mal – apesar de, para Deus, o novilho, não –
O gatinho mia apressado por carne – ele mesmo um pedaço de carne agitado – espírito devora espírito no vazio geral.

PARA DE RECLAMAR!” grito para o gato quando ele corre pelo chão e, finalmente, pula e se junta a nós na cama – A galinha está esfregando seu corpo longo e emplumado gentilmente, de maneira imperceptível, contra a ponta de meu sapato e eu mal posso sentir e olhar a tempo de reconhecer, que toque gentil de Mão Maia – Ela é a Galinha Poedeira mágica sem origem, a galinha sem limites com a cabeça cortada – O gato mia com tamanha violência que eu começo a me preocupar pela galinha, mas não, o gato está apenas meditando agora em silêncio sobre um pedaço de cheiro no chão, e faço o coitadinho vibrar, um ronronar nos ombros magros e grudentos com a ponta de meu dedo – Hora de ir embora, já afaguei o gato, me despedi de Deus a Pomba, e quero deixar a cozinha hedionda em meio a um sonho dourado perverso – Tudo está acontecendo em uma mente vasta, nós na cozinha, não acredito em uma palavra disso ou em qualquer pedaço substancial de carne vazia de átomos, vejo através disso, através das formas carnais (galinhas e tudo mais) para a brancura do futuro de ametista reluzente da realidade – Estou preocupado mas não satisfeito – “fuu”, digo, e o galo olha para mim, “o que ele quer dizer com fuu?” e o galo prossegue: “Có Coró Có” uma manhã de domingo de verdade (que já é, agora, às duas da manhã) Protesto com veemência e vejo os cantos marrons da casa de sonho e me lembro da cozinha escura de minha mãe há muito tempo em ruas frias na outra parte do mesmo sonho como essa cozinha fria atual com suas panelas embaixo de goteiras e horrores da Cidade do México Indígena – Cruz tenta debilmente me dar boa–noite quando me preparo para ir, eu a afaguei várias vezes, um afago no ombro achando que era isso o que ela queria em certos momentos e a tranquilizei dizendo que a amava e estava de seu lado “mas não tinha um lado próprio”, minto para mim mesmo – Eu me perguntava o que Tristessa achava dos meus afagos por um tempo quase achei que ela era sua mãe, em um momento louco eu adivinhei isso: “Tristessa e El Indio são irmão e irmã e eles a estão deixando louca com suas conversas na noite sobre veneno e morfina – Então eu me dou conta: “Cruz também é uma viciada, usa três gramas por mês, estará no mesmo tempo e na mesma antena de seu sonho problemático, gemendo e rugindo os três vão passar o resto de suas vidas doentes. Vício e sofrimento. Como doenças de loucos, encefalites insanas por dentro do cérebro onde você destrói sua saúde de propósito para agarrar uma sensação de débil satisfação química que não tem qualquer base em coisa alguma além da mente-pensante – Gnose, eles sem dúvida vão mudar para mim no dia em que tentarem me impor a morfina. E a você”.

Apesar de o pico ter me feito algum bem e eu desde então não ter tocado a garrafa, uma espécie de exausta satisfação abateu–se sobre mim colorida com uma força selvagem – a morfina amainou minhas preocupações mas eu prefiro não toma-la devido à fraqueza que traz a minhas costelas – Elas vão acabar esmagadas – “Depois disso não vou mais querer morfina”, prometo, e tenho um desejo ardente de me afastar de todo o papo sobre morfina que, depois de escutá-lo esporadicamente, acabou por me enfastiar.

Levanto-me para partir, El Indio vai comigo, me conduz até a esquina, apesar de no início ele discutir com elas como se quisesse ficar ou se quisesse algo mais – Saímos depressa, Tristessa fecha a porta às nossas costas, nem mesmo dou para ela um olhar íntimo, apenas uma olhadela quando ela fecha para indicar que irei vê-la depois – El Indio e eu andamos vigorosamente pelas veredas chuvosas e cheias de limo, entramos à direita, e cortamos para a rua do mercado, já comentei sobre o chapéu preto dele, e agora aqui estou eu na rua com o famoso Bastardo Negro – Já ri e disse “Você é igualzinho ao Dave” (o ex-marido de Tristessa) “você até usa o chapéu preto” como eu tinha visto Dave uma vez, em Redondas – na confusão e na turbulência de uma noite quente de sexta-feira com os ônibus em desfile lento e multidões na calçada; Dave entrega o pacote para seu garoto, um vendedor chama o tira, o tira vem correndo, o garoto o devolve para Dave, Dave diz “Está bem, pega y core” e o joga de volta e o garoto acerta a lateral de um ônibus que voava e pendura-se no meio da multidão com suas tripas e seu corpo pendurados acima da rua e seus braços segurando rigidamente a barra da porta do ônibus, os tiras não alcançam, nesse meio tempo Dave desapareceu em um bar, removeu seu lendário chapéu preto e sentou ao balcão com outros homens, olhando para a frente – os tiras não encontram – eu admirei Dave por sua coragem, agora admiro El Indio pela dele – Quando saímos do cortiço de Tristessa ele assobia e grita para um grupo de homens na esquina, nós andamos e eles se espalham e chegamos na esquina e continuamos andando conversando, não prestei atenção para o que ele fez, tudo o que quero fazer é ir direto para casa – Começou a chuviscar –

YA VOY DORMIENDO, vou dormir agora” diz El Indio juntando as palmas das mãos em torno da boca digo “Está bem” então ele faz mais uma declaração elaborada eu acho que repetindo em palavras o que eu tinha dito antes por sinais, não consigo demonstrar uma compreensão completa de sua nova afirmação, ele desapontado diz “Yo no untiende” (você não entende) mas eu compreendo que ele quer ir para casa e para a cama – “Está bem” digo – Apertamos as mãos – Então passamos por uma rotina masculina elaborada de sorrisos nas ruas, na verdade sobre as pedras quebradas do calçamento de Redondas –

Para tranquilizá-lo dou um sorriso de despedida e começo a andar mas ele continua olhando com atenção cada movimento do meu sorriso e de minhas pestanas, não consigo me virar com um olhar malicioso arbitrário, quero sorrir para ele quando estiver a caminho, ele responde com os próprios sorrisos igualmente elaborados e psicologicamente corroborativos, trocamos muita informação entre nós com sorrisos loucos de despedida, e então, no limite de sua tensão, El Indio tropeça em uma pedra, e lança ainda um outro sorriso de despedida tranquilizador que encobriu o meu, parecia não haver mais final à vista, mas cambaleamos em nossas direções opostas como se relutássemos – uma relutância que dura um segundo breve, o ar fresco da noite atinge sua solidão recém-nascida e você e seu Indio partem em um novo homem e o sorriso, parte do antigo, é removido, não necessita mais – Ele vai para sua casa, eu para a minha, por que sorrir disso a noite inteira a menos que tenha companhia – A tristeza do mundo com educação – 

DESÇO A RUA TURBULENTA de Redondas, embaixo de chuva, ainda não está forte, eu abro caminho e sigo me esquivando por entre a confusão de atividade com putas às centenas enfileiradas ao longo dos muros da Panamá Street em frente a seus bordéis onde a grande Mamacita está sentada perto da panela de porco da cocina, quando você vai embora ela pede um dinheirinho pelo porco que também representa a cozinha, o rango, cocina – Os táxis vão passando, conspiradores buscam sua escuridão, as putas escondidas na noite com seus dedos curvados de Venha, homens jovens passam e as examinam com um olhar, de braços dados em multidões os jovens mexicanos da Casbah descem juntos sua rua principal de garotas, cabelo jogado sobre os olhos, bêbados, borrachos, morenas de pernas longas em vestidos amarelos apertados os agarram e provocam suas pélvis, e puxam suas lapelas, e imploram – o bambolear dos garotos – os tiras passam pela rua preguiçosos, como bonequinhos em carrinhos pequenos que seguem invisíveis embaixo da calçada – Uma olhada pelo bar onde as crianças bocejam e uma pelo bar de garotos de programa de bichas onde heróis aracnídeos dançam como putas em seus suéteres de gola rulê para anciãos críticos reunidos de 22 – olhe pelos dois buracos e veja o olho do criminoso, criminoso no paraíso. – Abro caminho, curtindo a cena, balanço a bolsa com a garrafa, viro-me para lançar alguns olhares provocadores para as putas enquanto caminho, elas me enviam ondas sonoras estereotipadas de desprezo e praguejam embaixo de seus umbrais – Estou faminto, começo a comer o sanduíche de El Indio que ele me deu e que no início pensei em recusar para deixar para o gato mas El Indio insistiu que era um presente para mim, então eu exposto de peito aberto em um enlevo delicado enquanto ando pela rua – ao ver o sanduíche começo a comê-lo – termino, enquanto passo correndo, tento comprar tacos, de qualquer tipo, em qualquer barraquinha onde eles gritam “Joven!” – compro fígados fedorentos de salsichas cortadas dentro de cebolas negras brancas fumegando em gordura quente que estala sobre o fogareiro feito de um para-lamas invertido Belisco os calores e os molhos apimentados e acabo devorando bocados inteiros de fogo e sigo correndo – ainda assim eu compro outro, depois, dois, de uma feia carne de vaca picada sobre um bloco de madeira, parece que com cabeça e tudo, pedaços de nervos e cartilagem, tudo misturado junto em uma tortilla esquálida e devorada com sal, cebolas e folhas verdes tudo picado – um sanduíche delicioso quando você encontra uma barraquinha boa. – As barraquinhas são 1, 2, 3 em fila por quase um quilômetro da rua, iluminadas tragicamente por velas e lâmpadas fracas e lanternas estranhas, todo o México uma Aventura Boêmia no grande platô ao ar livre da noite de pedras, velas e neblina – Passo pela Plaza Garibaldi, o lugar mais cheio de polícia, multidões estranhas agrupadas em ruas estreitas em torno de músicos silenciosos que só mais tarde e de longe você escuta corneteando depois da esquina – Marimbas vibram nos bares grandes – Homens ricos, homens pobres, em chapéus de abas largas se misturam – Saem de portas de vaivém cuspindo pedaços de charuto e batendo mãos grandes nos quadris como se estivessem prestes a mergulhar em um riacho gelado – culpados – Subindo as ruas laterais, ônibus mortos gingam por entre poças de lama, manchas de vestidos de puta amarelos e impetuosos no escuro, grupos encostados contra a parede amantes da adorável noite mexicana – Garotas bonitas passam, de todas as idades, e todos os Gordos cômicos e eu viramos as cabeças grandes para vê-las, são bonitas demais para aguentar –

Passo embalado pelo Correio, atravesso a parte baixa da Juarez, o Palácio das Belas-Artes afundando ali perto – arrasto a mim mesmo até San Juan Letran e me ponho a andar quinze quadras dela passando rápido por lugares deliciosos onde eles fazem churros e cortam pra você pedaços salgados açucarados e amanteigados de um sonho fresco e quente tirado da cesta engordurada, que você come logo olhando para a noite peruana dos seus inimigos na calçada adiante – Todos os tipos de gangues loucas estão reunidas, líderes chefes satisfeitos ficando altos com a liderança da gangue usam chapéus de esqui escandinavos alucinados por cima de sua parafernália de malandro e corte de cabelo pachuco2 – Outro dia aqui passei por uma gangue de crianças em uma sarjeta seu líder vestido como um palhaço (uma meia de náilon na cabeça) e círculos grandes pintados em torno dos olhos, as crianças pequenas o haviam imitado e tentavam roupas de palhaço parecidas, aquilo tudo cinzento com os olhos enegrecidos com riscos brancos, como as roupas coloridas de seda dos jóqueis de grandes pistas de corrida a ganguezinha de heróis pinoquianos (e de Genet) com sua parafernália nos meios-fios, um menino mais velho zombando do Herói Palhaço “Que palhaçada é essa, Herói Palhaço? – Não tem Paraíso em lugar nenhum?” “Não existe um Papai Noel dos Heróis Palhaços, menino maluquinho” – Outros grupos meio hipsters se escondem diante dos bares e boates com música e barulho lá dentro, eu passo por ali rapidamente com um olhar fugaz de Walt Whitman e absorvendo toda aquela informação Começa a chover mais forte, tenho uma longa distância para caminhar e me arrastar com essa perna machucada bem no meio da chuva que se acumulava, sem qualquer chance ou intenção de pegar um táxi, o uísque e a morfina me deixaram mais tranquilo pela náusea do veneno em meu coração.
[...]

Jack Kerouac, in Tristessa

Nenhum comentário:

Postar um comentário