[…]
PRECISO
DA EXPLICAÇÃO brilhante da clareza de cristal de todos os Mundos
para mostrar que ficaremos todos bem – A medida de máquinas robôs
dessa vez é um tanto irrelevante, talvez todas as vezes – O fato
de Cruz cozinhar em um fogão de querosene fumarento grandes
caçarolas cheias de carne, carne-geral de um novilho inteiro,
pedaços de vitela, pedaços de tripa de vitela e miolos de novilho e
ossos de testa de novilho... isso jamais mandaria Cruz para o inferno
porque ninguém disse a ela para parar a chacina, e mesmo se alguém
tivesse feito isso, Cristo ou Buda ou Ó Santificado Maomé, ela
ainda estaria segura contra qualquer mal – apesar de, para Deus, o
novilho, não –
O
gatinho mia apressado por carne – ele mesmo um pedaço de carne
agitado – espírito devora espírito no vazio geral.
“PARA
DE RECLAMAR!” grito para o gato quando ele corre pelo chão e,
finalmente, pula e se junta a nós na cama – A galinha está
esfregando seu corpo longo e emplumado gentilmente, de maneira
imperceptível, contra a ponta de meu sapato e eu mal posso sentir e
olhar a tempo de reconhecer, que toque gentil de Mão Maia – Ela é
a Galinha Poedeira mágica sem origem, a galinha sem limites com a
cabeça cortada – O gato mia com tamanha violência que eu começo
a me preocupar pela galinha, mas não, o gato está apenas meditando
agora em silêncio sobre um pedaço de cheiro no chão, e faço o
coitadinho vibrar, um ronronar nos ombros magros e grudentos com a
ponta de meu dedo – Hora de ir embora, já afaguei o gato, me
despedi de Deus a Pomba, e quero deixar a cozinha hedionda em meio a
um sonho dourado perverso – Tudo está acontecendo em uma mente
vasta, nós na cozinha, não acredito em uma palavra disso ou em
qualquer pedaço substancial de carne vazia de átomos, vejo através
disso, através das formas carnais (galinhas e tudo mais) para a
brancura do futuro de ametista reluzente da realidade – Estou
preocupado mas não satisfeito – “fuu”, digo, e o galo olha
para mim, “o que ele quer dizer com fuu?” e o galo prossegue: “Có
Coró Có” uma manhã de domingo de verdade (que já é, agora, às
duas da manhã) Protesto com veemência e vejo os cantos marrons da
casa de sonho e me lembro da cozinha escura de minha mãe há muito
tempo em ruas frias na outra parte do mesmo sonho como essa cozinha
fria atual com suas panelas embaixo de goteiras e horrores da Cidade
do México Indígena – Cruz tenta debilmente me dar boa–noite
quando me preparo para ir, eu a afaguei várias vezes, um afago no
ombro achando que era isso o que ela queria em certos momentos e a
tranquilizei dizendo que a amava e estava de seu lado “mas não
tinha um lado próprio”, minto para mim mesmo – Eu me perguntava
o que Tristessa achava dos meus afagos por um tempo quase achei que
ela era sua mãe, em um momento louco eu adivinhei isso: “Tristessa
e El Indio são irmão e irmã e eles a estão deixando louca com
suas conversas na noite sobre veneno e morfina – Então eu me dou
conta: “Cruz também é uma viciada, usa três gramas por mês,
estará no mesmo tempo e na mesma antena de seu sonho problemático,
gemendo e rugindo os três vão passar o resto de suas vidas doentes.
Vício e sofrimento. Como doenças de loucos, encefalites insanas por
dentro do cérebro onde você destrói sua saúde de propósito para
agarrar uma sensação de débil satisfação química que não tem
qualquer base em coisa alguma além da mente-pensante – Gnose, eles
sem dúvida vão mudar para mim no dia em que tentarem me impor a
morfina. E a você”.
Apesar
de o pico ter me feito algum bem e eu desde então não ter tocado a
garrafa, uma espécie de exausta satisfação abateu–se sobre mim
colorida com uma força selvagem – a morfina amainou minhas
preocupações mas eu prefiro não toma-la devido à fraqueza que
traz a minhas costelas – Elas vão acabar esmagadas – “Depois
disso não vou mais querer morfina”, prometo, e tenho um desejo
ardente de me afastar de todo o papo sobre morfina que, depois de
escutá-lo esporadicamente, acabou por me enfastiar.
Levanto-me
para partir, El Indio vai comigo, me conduz até a esquina, apesar de
no início ele discutir com elas como se quisesse ficar ou se
quisesse algo mais – Saímos depressa, Tristessa fecha a porta às
nossas costas, nem mesmo dou para ela um olhar íntimo, apenas uma
olhadela quando ela fecha para indicar que irei vê-la depois – El
Indio e eu andamos vigorosamente pelas veredas chuvosas e cheias de
limo, entramos à direita, e cortamos para a rua do mercado, já
comentei sobre o chapéu preto dele, e agora aqui estou eu na rua com
o famoso Bastardo Negro – Já ri e disse “Você é igualzinho ao
Dave” (o ex-marido de Tristessa) “você até usa o chapéu preto”
como eu tinha visto Dave uma vez, em Redondas – na confusão e na
turbulência de uma noite quente de sexta-feira com os ônibus em
desfile lento e multidões na calçada; Dave entrega o pacote para
seu garoto, um vendedor chama o tira, o tira vem correndo, o garoto o
devolve para Dave, Dave diz “Está bem, pega y core” e o joga de
volta e o garoto acerta a lateral de um ônibus que voava e
pendura-se no meio da multidão com suas tripas e seu corpo
pendurados acima da rua e seus braços segurando rigidamente a barra
da porta do ônibus, os tiras não alcançam, nesse meio tempo Dave
desapareceu em um bar, removeu seu lendário chapéu preto e sentou
ao balcão com outros homens, olhando para a frente – os tiras não
encontram – eu admirei Dave por sua coragem, agora admiro El Indio
pela dele – Quando saímos do cortiço de Tristessa ele assobia e
grita para um grupo de homens na esquina, nós andamos e eles se
espalham e chegamos na esquina e continuamos andando conversando, não
prestei atenção para o que ele fez, tudo o que quero fazer é ir
direto para casa – Começou a chuviscar –
“YA
VOY DORMIENDO, vou dormir agora” diz El Indio juntando as palmas
das mãos em torno da boca digo “Está bem” então ele faz mais
uma declaração elaborada eu acho que repetindo em palavras o que eu
tinha dito antes por sinais, não consigo demonstrar uma compreensão
completa de sua nova afirmação, ele desapontado diz “Yo no
untiende” (você não entende) mas eu compreendo que ele quer ir
para casa e para a cama – “Está bem” digo – Apertamos as
mãos – Então passamos por uma rotina masculina elaborada de
sorrisos nas ruas, na verdade sobre as pedras quebradas do calçamento
de Redondas –
Para
tranquilizá-lo dou um sorriso de despedida e começo a andar mas ele
continua olhando com atenção cada movimento do meu sorriso e de
minhas pestanas, não consigo me virar com um olhar malicioso
arbitrário, quero sorrir para ele quando estiver a caminho, ele
responde com os próprios sorrisos igualmente elaborados e
psicologicamente corroborativos, trocamos muita informação entre
nós com sorrisos loucos de despedida, e então, no limite de sua
tensão, El Indio tropeça em uma pedra, e lança ainda um outro
sorriso de despedida tranquilizador que encobriu o meu, parecia não
haver mais final à vista, mas cambaleamos em nossas direções
opostas como se relutássemos – uma relutância que dura um segundo
breve, o ar fresco da noite atinge sua solidão recém-nascida e você
e seu Indio partem em um novo homem e o sorriso, parte do antigo, é
removido, não necessita mais – Ele vai para sua casa, eu para a
minha, por que sorrir disso a noite inteira a menos que tenha
companhia – A tristeza do mundo com educação –
DESÇO
A RUA TURBULENTA de Redondas, embaixo de chuva, ainda não está
forte, eu abro caminho e sigo me esquivando por entre a confusão de
atividade com putas às centenas enfileiradas ao longo dos muros da
Panamá Street em frente a seus bordéis onde a grande Mamacita está
sentada perto da panela de porco da cocina, quando você vai embora
ela pede um dinheirinho pelo porco que também representa a cozinha,
o rango, cocina – Os táxis vão passando, conspiradores buscam sua
escuridão, as putas escondidas na noite com seus dedos curvados de
Venha, homens jovens passam e as examinam com um olhar, de braços
dados em multidões os jovens mexicanos da Casbah descem juntos sua
rua principal de garotas, cabelo jogado sobre os olhos, bêbados,
borrachos, morenas de pernas longas em vestidos amarelos apertados os
agarram e provocam suas pélvis, e puxam suas lapelas, e imploram –
o bambolear dos garotos – os tiras passam pela rua preguiçosos,
como bonequinhos em carrinhos pequenos que seguem invisíveis embaixo
da calçada – Uma olhada pelo bar onde as crianças bocejam e uma
pelo bar de garotos de programa de bichas onde heróis aracnídeos
dançam como putas em seus suéteres de gola rulê para anciãos
críticos reunidos de 22 – olhe pelos dois buracos e veja o olho do
criminoso, criminoso no paraíso. – Abro caminho, curtindo a cena,
balanço a bolsa com a garrafa, viro-me para lançar alguns olhares
provocadores para as putas enquanto caminho, elas me enviam ondas
sonoras estereotipadas de desprezo e praguejam embaixo de seus
umbrais – Estou faminto, começo a comer o sanduíche de El Indio
que ele me deu e que no início pensei em recusar para deixar para o
gato mas El Indio insistiu que era um presente para mim, então eu
exposto de peito aberto em um enlevo delicado enquanto ando pela rua
– ao ver o sanduíche começo a comê-lo – termino, enquanto
passo correndo, tento comprar tacos, de qualquer tipo, em qualquer
barraquinha onde eles gritam “Joven!” – compro fígados
fedorentos de salsichas cortadas dentro de cebolas negras brancas
fumegando em gordura quente que estala sobre o fogareiro feito de um
para-lamas invertido Belisco os calores e os molhos apimentados e
acabo devorando bocados inteiros de fogo e sigo correndo – ainda
assim eu compro outro, depois, dois, de uma feia carne de vaca picada
sobre um bloco de madeira, parece que com cabeça e tudo, pedaços de
nervos e cartilagem, tudo misturado junto em uma tortilla esquálida
e devorada com sal, cebolas e folhas verdes tudo picado – um
sanduíche delicioso quando você encontra uma barraquinha boa. –
As barraquinhas são 1, 2, 3 em fila por quase um quilômetro da rua,
iluminadas tragicamente por velas e lâmpadas fracas e lanternas
estranhas, todo o México uma Aventura Boêmia no grande platô ao ar
livre da noite de pedras, velas e neblina – Passo pela Plaza
Garibaldi, o lugar mais cheio de polícia, multidões estranhas
agrupadas em ruas estreitas em torno de músicos silenciosos que só
mais tarde e de longe você escuta corneteando depois da esquina –
Marimbas vibram nos bares grandes – Homens ricos, homens pobres, em
chapéus de abas largas se misturam – Saem de portas de vaivém
cuspindo pedaços de charuto e batendo mãos grandes nos quadris como
se estivessem prestes a mergulhar em um riacho gelado – culpados –
Subindo as ruas laterais, ônibus mortos gingam por entre poças de
lama, manchas de vestidos de puta amarelos e impetuosos no escuro,
grupos encostados contra a parede amantes da adorável noite mexicana
– Garotas bonitas passam, de todas as idades, e todos os Gordos
cômicos e eu viramos as cabeças grandes para vê-las, são bonitas
demais para aguentar –
Passo
embalado pelo Correio, atravesso a parte baixa da Juarez, o Palácio
das Belas-Artes afundando ali perto – arrasto a mim mesmo até San
Juan Letran e me ponho a andar quinze quadras dela passando rápido
por lugares deliciosos onde eles fazem churros e cortam pra você
pedaços salgados açucarados e amanteigados de um sonho fresco e
quente tirado da cesta engordurada, que você come logo olhando para
a noite peruana dos seus inimigos na calçada adiante – Todos os
tipos de gangues loucas estão reunidas, líderes chefes satisfeitos
ficando altos com a liderança da gangue usam chapéus de esqui
escandinavos alucinados por cima de sua parafernália de malandro e
corte de cabelo pachuco2 – Outro dia aqui passei por uma gangue de
crianças em uma sarjeta seu líder vestido como um palhaço (uma
meia de náilon na cabeça) e círculos grandes pintados em torno dos
olhos, as crianças pequenas o haviam imitado e tentavam roupas de
palhaço parecidas, aquilo tudo cinzento com os olhos enegrecidos com
riscos brancos, como as roupas coloridas de seda dos jóqueis de
grandes pistas de corrida a ganguezinha de heróis pinoquianos (e de
Genet) com sua parafernália nos meios-fios, um menino mais velho
zombando do Herói Palhaço “Que palhaçada é essa, Herói
Palhaço? – Não tem Paraíso em lugar nenhum?” “Não existe um
Papai Noel dos Heróis Palhaços, menino maluquinho” – Outros
grupos meio hipsters se escondem diante dos bares e boates com música
e barulho lá dentro, eu passo por ali rapidamente com um olhar fugaz
de Walt Whitman e absorvendo toda aquela informação Começa a
chover mais forte, tenho uma longa distância para caminhar e me
arrastar com essa perna machucada bem no meio da chuva que se
acumulava, sem qualquer chance ou intenção de pegar um táxi, o
uísque e a morfina me deixaram mais tranquilo pela náusea do veneno
em meu coração.
[...]
Jack Kerouac, in Tristessa
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