sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Os espólios da liberdade


Penélope sobreviveu ao verão.
Seu grande teste foi escolher apreciá-lo.
Na primeira vez em que tentou ir à praia, foi recebida por duas circunstâncias contraditórias e inevitáveis — sol escaldante e ventania. Nunca vira tantas pessoas se movimentando tão rápido, sendo varridas com tanta areia. O lado bom é que poderia ter sido muito pior: assim que avistou as águas-vivas flutuando no mar, elas lhe pareceram tão serenas, puras e etéreas... Mas só quando as crianças saíram correndo da água em variados níveis de desespero Penélope percebeu que elas estavam com queimaduras na pele. Biedne dzieci, pensou ela, pobres crianças, enquanto os pequeninos corriam para os pais. Enquanto a maioria se estrebuchava debaixo dos chuveiros, chorando e gritando sem pudor, ela observou uma mãe impedindo a filha de se esfregar. A menina, alucinada, agarrava um punhado de areia e passava na pele.
Penélope se sentiu impotente diante da cena.
A mãe cuidou de tudo.
Abraçou e acalmou a menina, e quando conseguiu controlar a situação e constatou que estava tudo sob controle, ergueu o olhar, deparando-se com a imigrante mais próxima. Não houve palavras — ela apenas se agachou para acariciar o cabelo embolado da filha. Seu olhar encontrou o de Penélope, e ela assentiu e levou a menina embora. Penélope ainda levaria anos para descobrir que encontros com águas-vivas raramente eram graves.
Outro fato que a surpreendeu foi ver que a maioria das crianças acabou voltando para a água, o que também não durou muito, por conta dos ventos uivantes; vindos aparentemente do nada, trouxeram junto nacos cinzentos de céu.
Para completar, ela passou aquela noite em claro, sentindo o corpo quente latejando das queimaduras de sol e ouvindo o tamborilar das patas dos insetos.
Mas as coisas estavam melhorando.

***

O primeiro acontecimento considerável de sua vida no novo país foi arrumar um emprego.
Ela se tornou membro oficial da mão de obra não qualificada.
O acampamento era filiado à central de empregos do governo, e, ao comparecer ao escritório deles, deu sorte. Ou, pelo menos, sua “sorte” de praxe. Após uma longa entrevista e um mar de burocracia, foi liberada para fazer o trabalho sujo.
Resumindo: serviços públicos de limpeza.
Você sabe quais.
Como era possível que tantos homens mijassem com tanta imprecisão? Por que as pessoas faziam tanta sujeira e inventavam de cagar em todos os lugares menos dentro do vaso? Será que aqueles eram os espólios da liberdade?
Ela ficava lendo as pichações nos reservados.
Com o esfregão em mãos, ela se lembrava das aulas mais recentes de inglês e recitava a matéria para o chão. Aquele era um jeito e tanto de demonstrar seu respeito pelo novo país: colocando a mão na massa, esfregando e limpando os cantinhos mais imundos. Havia, também, certo orgulho por saber que tinha disposição. Em vez de ficar sentada em um almoxarifado frio e frugal apontando lápis, ela vivia agachada no chão, inalando ares de alvejante.

***

Passados seis meses, seu objetivo estava quase palpável.
Seu plano estava se delineando.
É claro que as lágrimas teimavam em surgir todas as noites, e às vezes durante o dia também, mas seu progresso era indiscutível. Por pura necessidade, seu inglês ia ganhando corpo, embora ainda fosse uma mistura calamitosa de erros de sintaxe e frases com inícios hesitantes e finais imprecisos.
Décadas depois, mesmo quando já dava aulas de inglês em uma escola do outro lado da cidade, em casa ela às vezes incorporava um sotaque mais forte, e nós adorávamos, vibrávamos e pedíamos mais. Ela nunca conseguiu nos ensinar sua língua materna — as lições de piano já eram árduas o bastante —, mas amávamos quando “ambulância” virava “omboláncea” e quando ela arrastava os erres. Quando “o suco” virava “a suco”. Ou então: “Ficam quietas! Nom consego pensar com tanta barulha!” Mas nosso momento preferido com certeza era quando ela se embolava com as palavras grandes. As palavras ficavam muito melhores quando ela fazia as sílabas se atropelarem.

***

Sim, no início, tudo na vida dela se resumia a uma dedicação religiosa a duas coisas:
As palavras, o trabalho.
Ela já havia escrito algumas vezes para Waldek e até ligava para ele quando tinha condições de arcar com o custo, compreendendo, enfim, que o pai estava em segurança. Ele lhe confessou tudo que tivera que fazer para tirá-la do país e que, por mais difícil que tivesse sido, aquele dia na plataforma fora o ponto alto de sua vida. Um dia ela chegou a ler para ele, com seu inglês imperfeito, um pouco de Homero, e sentiu, com certeza, que ele começava a ceder, que sorria.
O que ela não esperava era que os anos fossem transcorrer tão rápido, quase rápido demais. Esfregava alguns milhares de privadas, limpava quilômetros e quilômetros de azulejos rachados. Suportava todas aquelas contravenções sanitárias, mas também ia encontrando novos trabalhos, fazendo faxina em várias casas e apartamentos.
Acontece que ela também não esperava que:
Em breve, seu futuro seria determinado por três coisas relacionadas.
Uma era um vendedor de instrumentos musicais com uma audição sofrível.
Outra era um trio de entregadores imprestáveis.
Contudo, primeiro viria a morte.
A morte da estátua de Stálin.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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