Penélope
sobreviveu ao verão.
Seu
grande teste foi escolher apreciá-lo.
Na
primeira vez em que tentou ir à praia, foi recebida por duas
circunstâncias contraditórias e inevitáveis — sol escaldante e
ventania. Nunca vira tantas pessoas se movimentando tão rápido,
sendo varridas com tanta areia. O lado bom é que poderia ter sido
muito pior: assim que avistou as águas-vivas flutuando no mar, elas
lhe pareceram tão serenas, puras e etéreas... Mas só quando as
crianças saíram correndo da água em variados níveis de desespero
Penélope percebeu que elas estavam com queimaduras na pele. Biedne
dzieci, pensou ela, pobres crianças, enquanto os pequeninos corriam
para os pais. Enquanto a maioria se estrebuchava debaixo dos
chuveiros, chorando e gritando sem pudor, ela observou uma mãe
impedindo a filha de se esfregar. A menina, alucinada, agarrava um
punhado de areia e passava na pele.
Penélope
se sentiu impotente diante da cena.
A
mãe cuidou de tudo.
Abraçou
e acalmou a menina, e quando conseguiu controlar a situação e
constatou que estava tudo sob controle, ergueu o olhar, deparando-se
com a imigrante mais próxima. Não houve palavras — ela apenas se
agachou para acariciar o cabelo embolado da filha. Seu olhar
encontrou o de Penélope, e ela assentiu e levou a menina embora.
Penélope ainda levaria anos para descobrir que encontros com
águas-vivas raramente eram graves.
Outro
fato que a surpreendeu foi ver que a maioria das crianças acabou
voltando para a água, o que também não durou muito, por conta dos
ventos uivantes; vindos aparentemente do nada, trouxeram junto nacos
cinzentos de céu.
Para
completar, ela passou aquela noite em claro, sentindo o corpo quente
latejando das queimaduras de sol e ouvindo o tamborilar das patas dos
insetos.
Mas
as coisas estavam melhorando.
***
O
primeiro acontecimento considerável de sua vida no novo país foi
arrumar um emprego.
Ela
se tornou membro oficial da mão de obra não qualificada.
O
acampamento era filiado à central de empregos do governo, e, ao
comparecer ao escritório deles, deu sorte. Ou, pelo menos, sua
“sorte” de praxe. Após uma longa entrevista e um mar de
burocracia, foi liberada para fazer o trabalho sujo.
Resumindo:
serviços públicos de limpeza.
Você
sabe quais.
Como
era possível que tantos homens mijassem com tanta imprecisão? Por
que as pessoas faziam tanta sujeira e inventavam de cagar em todos os
lugares menos dentro do vaso? Será que aqueles eram os espólios da
liberdade?
Ela
ficava lendo as pichações nos reservados.
Com
o esfregão em mãos, ela se lembrava das aulas mais recentes de
inglês e recitava a matéria para o chão. Aquele era um jeito e
tanto de demonstrar seu respeito pelo novo país: colocando a mão na
massa, esfregando e limpando os cantinhos mais imundos. Havia,
também, certo orgulho por saber que tinha disposição. Em vez de
ficar sentada em um almoxarifado frio e frugal apontando lápis, ela
vivia agachada no chão, inalando ares de alvejante.
***
Passados
seis meses, seu objetivo estava quase palpável.
Seu
plano estava se delineando.
É
claro que as lágrimas teimavam em surgir todas as noites, e às
vezes durante o dia também, mas seu progresso era indiscutível. Por
pura necessidade, seu inglês ia ganhando corpo, embora ainda fosse
uma mistura calamitosa de erros de sintaxe e frases com inícios
hesitantes e finais imprecisos.
Décadas
depois, mesmo quando já dava aulas de inglês em uma escola do outro
lado da cidade, em casa ela às vezes incorporava um sotaque mais
forte, e nós adorávamos, vibrávamos e pedíamos mais. Ela nunca
conseguiu nos ensinar sua língua materna — as lições de piano já
eram árduas o bastante —, mas amávamos quando “ambulância”
virava “omboláncea” e quando ela arrastava os erres. Quando “o
suco” virava “a suco”. Ou então: “Ficam quietas! Nom consego
pensar com tanta barulha!” Mas nosso momento preferido com certeza
era quando ela se embolava com as palavras grandes. As palavras
ficavam muito melhores quando ela fazia as sílabas se atropelarem.
***
Sim,
no início, tudo na vida dela se resumia a uma dedicação religiosa
a duas coisas:
As
palavras, o trabalho.
Ela
já havia escrito algumas vezes para Waldek e até ligava para ele
quando tinha condições de arcar com o custo, compreendendo, enfim,
que o pai estava em segurança. Ele lhe confessou tudo que tivera que
fazer para tirá-la do país e que, por mais difícil que tivesse
sido, aquele dia na plataforma fora o ponto alto de sua vida. Um dia
ela chegou a ler para ele, com seu inglês imperfeito, um pouco de
Homero, e sentiu, com certeza, que ele começava a ceder, que sorria.
O
que ela não esperava era que os anos fossem transcorrer tão rápido,
quase rápido demais. Esfregava alguns milhares de privadas, limpava
quilômetros e quilômetros de azulejos rachados. Suportava todas
aquelas contravenções sanitárias, mas também
ia encontrando novos trabalhos, fazendo faxina em várias
casas e apartamentos.
Acontece
que ela também não esperava que:
Em
breve, seu futuro seria determinado por três coisas relacionadas.
Uma
era um vendedor de instrumentos musicais com uma audição sofrível.
Outra
era um trio de entregadores imprestáveis.
Contudo,
primeiro viria a morte.
A
morte da estátua de Stálin.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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