terça-feira, 22 de agosto de 2023

1514 – Rio Sinú | O requerimento

Navegaram muito mar e tempo e estão fartos de calores, selvas e mosquitos. Cumprem, mesmo assim, as instruções do rei: não se pode atacar os índios sem requerer, antes, sua submissão. Santo Agostinho autoriza a guerra contra os que abusam de sua liberdade, porque em sua liberdade perigariam não sendo domados; mas bem diz São Isidoro que nenhuma guerra é justa sem prévia declaração.
Antes de lançar-se sobre o ouro, os grãos de ouro talvez grandes como ovos, o advogado Martin Fernández de Enciso lê com pontos e vírgulas o ultimato que o intérprete, aos tropeços, demorando-se na entregas vai traduzindo.
Enciso fala em nome do rei don Fernando e da rainha dona Juana sua filha, domadores das gentes bárbaras. Faz saber aos índios do Sinú que Deus veio ao mundo e deixou em seu lugar São Pedro, que São Pedro tem por sucessor o Santo Padre e que o Santo Padre, Senhor do Universo, fez mercê ao rei de Castilha de toda a terra das Índias e desta península.
Os soldados se assam nas armaduras. Enciso, letra miúda e sílaba lenta, requer dos índios que deixem estas terras, pois não lhes pertencem, e adverte que se quiserem ficar para viver aqui, que paguem a Suas Altezas tributo de ouro em sinal de obediência. O intérprete faz o que pode.
Os dois caciques escutam em silêncio, sem pestanejar, o estranho personagem que lhes anuncia que em caso de negativa ou demora lhes fará a guerra, e que os converterá em escravos e também suas mulheres e seus filhos e como tais os venderá e disporá deles, e que as mortes e danos desta guerra justa não serão culpa dos espanhóis.
Respondem os caciques, sem olhar para Enciso, que muito generoso com o alheio foi o Santo Padre, que bêbado devia estar quando dispôs do que não era seu, e que o rei de Castilha é um atrevido, porque vem ameaçar a quem não conhece.
Então, corre o sangue.
De agora em diante, o longo discurso será lido em plena noite, sem intérprete e a meia légua das aldeias que serão arrasadas de surpresa. Os indígenas, adormecidos, não escutarão as palavras que os declaram culpados pelos crimes cometidos contra eles.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

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