[...]
Logo
atrás dos prédios, a hora naquele relógio da torre Bab al-Faraj
reluzia verde. 23h55. Cinco minutos. Fiquei ali, impotente,
observando-a, sua expressão enternecida pela lembrança. Desde que
tinha rido e chorado, voltava à vida em fragmentos. Um tanto dela
transparecia por uma fresta, e então ela sumia novamente. Agora, ali
parada com o rosto tão perto do meu, eu conseguia ver o desejo, a
determinação de se agarrar a uma ilusão, uma visão de vida, de
Alepo. A antiga Afra ficaria indignada com isso. Tive um medo súbito
dela. O celular parou de acender. Agora, estava mais escuro.
À
distância, eu podia ver a cidadela em seu monte elíptico, como a
ponta de um vulcão.
O
vento soprou e trouxe com ele o perfume de rosas.
– Está
sentindo o cheiro de rosas? – perguntei.
– Estou
usando o perfume – ela disse.
Remexeu
em seu bolso e tirou um frasco de vidro. Segurou-o na palma da mão.
Eu o tinha mandado fazer para ela no ano em que nos casamos. Um amigo
meu tinha uma destilaria de rosas, e eu mesmo tinha escolhido as
flores.
Agora,
ela cochichava. Queria voltar na primavera, quando as flores
desabrochavam. Usaria o perfume e seu vestido amarelo, e passearíamos
juntos. Começaríamos na nossa casa e caminharíamos pela cidade,
subindo a colina até o souq. Depois, vagaríamos pelos
corredores cobertos do velho mercado, pelas alas de condimentos,
sabonetes, chás, bronze, ouro e prata, limões secos, mel e ervas, e
eu lhe compraria uma echarpe de seda.
Senti-me
subitamente enjoado. Já havia lhe dito que o souq estava
vazio, algumas alas bombardeadas e incendiadas, apenas soldados,
ratos e gatos vagavam pelos corredores por onde todos aqueles
comerciantes e turistas já haviam andado. Todas as barracas tinham
sido abandonadas, com exceção de uma, onde um velho vendia café
para os soldados. Agora, a cidadela era uma base militar, ocupada por
soldados e cercada por tanques.
O
al-Madina Souq era um dos mercados mais antigos do mundo,
posto-chave da Rota da Seda, aonde comerciantes viajavam do Egito, da
Europa e da China. Afra falava de Alepo como se fosse uma terra
mágica saída de uma história. Era como se ela tivesse esquecido
todo o resto, os anos que levaram à guerra, às rebeliões, as
tempestades de areia, as secas, a maneira como tínhamos nos
esforçado para nos manter vivos, mesmo então, mesmo antes das
bombas.
O
celular do morto voltou a se acender. Alguém estava desesperado para
falar com ele. Um poupa-pão estava pousado na árvore de narenj,
seus olhos escuros brilhando. O pássaro abriu as asas, e listas
pretas e brancas captaram a luz do celular. Tive medo da luz.
Ajoelhei-me e tirei o celular dos dedos rígidos do homem, enfiando-o
na minha mochila.
O
relógio deu doze badaladas. À distância, o ronco suave de um
motor. Afra endireitou o corpo, o rosto cheio de medo. Um Toyota fez
a curva, faróis apagados, rodas revirando as cinzas. O motorista
desceu, traços grosseiros, careca, camiseta preta, botas de
exército, calça militar, pochete, arma na cintura. Era uma réplica
de um combatente do regime: tinha raspado a cabeça, a barba também;
um truque, caso fosse pego pela Shabiha de Assad.
Ficou
ali parado por um momento, analisando-me. Afra moveu os pés na
poeira, mas o homem não olhou para ela.
– Pode
me chamar de Ali – ele acabou dizendo, e sorriu, um sorriso aberto,
tão largo que todo o seu rosto enrugou-se em dobras. Mas algo em seu
sorriso deixou-me desconfortável, lembrou-me outro sorriso, um
palhaço de corda que a avó de Sami tinha lhe comprado no mercado. O
sorriso sumiu repentinamente, e os olhos de Ali passaram a percorrer
a escuridão.
– O
que foi? – perguntei.
– Me
disseram três pessoas.
Apontei
o homem no chão.
– Que
pena.
A
voz de Ali assumiu um tom inesperado de tristeza, e ele ficou parado
por um momento junto ao corpo do homem, cabeça baixa, antes de se
ajoelhar e tirar uma aliança de ouro da mão do morto, colocando-a
com cuidado em seu próprio dedo. Suspirou e olhou para a torre do
relógio, depois para o céu. Acompanhei seu olhar.
– É
uma noite clara. Estamos em uma cúpula de estrelas. Temos quatro
horas até o nascer do sol. Temos que chegar em Armanaz às três, se
vocês forem cruzar a fronteira às quatro.
– Quanto
tempo leva a viagem? – Afra perguntou.
Ali
olhou para ela, então, como se a estivesse vendo pela primeira vez,
mas respondeu com os olhos fixos em mim: – Não chega a duas horas.
E vocês não vão se sentar comigo. Entrem atrás.
Tinha
uma vaca na carroceria da picape, o chão forrado com suas fezes.
Ajudei Afra a entrar, e o motorista nos disse para sentarmos
abaixados, assim não seríamos vistos. Se fôssemos pegos, os
franco-atiradores matariam a vaca, e não nós. A vaca olhou para
nós. O motor entrou em funcionamento e o Toyota movimentou-se no
maior silêncio possível por entre as ruas cobertas de cinzas,
sacudindo-se sobre os escombros.
– Tem
um celular tocando – Afra disse.
– O
que você está dizendo?
– Posso
senti-lo vibrando na minha perna, dentro da sua mochila. Quem está
ligando para nós?
– Não
é o meu celular – eu disse. – Desliguei o meu.
– De
quem é então?
Tirei
o celular da mochila. Cinquenta ligações perdidas. Tocou de novo.
Zujet
Abbas: a Esposa de Abbas.
– Quem
é? – Afra disse. – Atenda.
– Me
dê seu hijab – eu disse.
Afra
desenrolou o hijab da sua cabeça e passou-o para mim. Cobri minha
cabeça com ele e atendi o celular.
– Abbas!
– Não.
– Onde
você está agora, Abbas?
– Não,
sinto muito, não sou o Abbas.
– Onde
ele está? Posso falar com ele? Ele conseguiu ser apanhado? Eles
pegaram ele?
– Abbas
não está aqui.
– Mas
eu estava falando com ele. A ligação foi cortada.
– Quando?
– Não
faz muito tempo. Mais ou menos uma hora atrás. Por favor, me deixe
falar com ele.
Nesse
momento, a picape parou, o motor foi desligado, passos
aproximaram-se. O motorista puxou o hijab de mim, jogou-o atrás, e
senti um frio metálico entre minhas sobrancelhas.
– Você
é estúpido? – Ali disse. – Quer morrer? – Empurrou a arma na
minha testa, os olhos brilhando. Do celular, a esposa de Abbas dizia:
“Abbas, Abbas...”, vezes sem conta.
– Me
dê isto! – o atravessador disse, e então entreguei a ele o
celular e partimos de novo.
Estávamos
indo para Urum al-Kubra, cerca de vinte quilômetros a oeste de
Alepo. Serpenteamos pelas ruínas da velha cidade; as regiões a
oeste estavam sob o domínio das forças governamentais, os rebeldes
detinham o leste. O rio podia testemunhar tudo, correndo agora pela
terra de ninguém, entre as linhas de frente opostas. Se algo fosse
jogado no Queiq, no lado do governo, acabaria chegando aos rebeldes.
Ao chegarmos aos limites da cidade, passamos por um cartaz enorme de
Bashar al-Assad, com seus olhos azuis brilhantes como joias, até no
escuro. O cartaz estava intacto, totalmente intocado.
Chegamos
à pista dupla e o mundo abriu-se repentinamente, campos escuros a
toda nossa volta, amoreiras e oliveiras azuis sob o luar. Eu sabia
que haviam sido travadas batalhas entre rebeldes e tropas sírias
entre as Cidades Mortas, as centenas de cidades greco-romanas
abandonadas havia muito tempo, espalhadas pela área rural próxima a
Alepo. Naquele vazio azul, tentei esquecer o que eu sabia, o que
tinha escutado. Tentaria imaginar que tudo estava intocado.
Exatamente como os olhos azuis de Bashar al-Assad. O que estava
perdido estaria perdido para sempre. Os castelos das Cruzadas,
mesquitas e igrejas, mosaicos romanos, antigos mercados, casas,
lares, corações, maridos, esposas, filhas, filhos. Filhos.
Lembrei-me dos olhos de Sami, no momento em que a luz se extinguiu e
eles viraram vidro.
Afra
estava calada. Seu cabelo, agora solto, da cor do céu. Olhei-a ali
sentada, beliscando a pele, seu rosto branco mais pálido do que o
normal. Meus olhos começaram a se fechar, e quando os abri, vi que
tínhamos chegado a Urum al-Kubra, e à nossa frente estava a carcaça
de um caminhão bombardeado. Nosso motorista andava em círculos.
Disse que estava esperando uma mãe com uma criança.
O
lugar estava vazio. Irreconhecível. Ali estava agitado. – Temos
que chegar antes do nascer do sol – ele disse. – Se não
chegarmos antes do sol, nunca chegaremos.
Da
escuridão, entre os prédios, surgiu um homem de bicicleta.
– Deixe
que eu falo – Ali disse. – Ele pode ser qualquer pessoa. Pode ser
um espião.
Quando
o homem aproximou-se, vi que estava cinza como concreto, não parecia
possível que aquele homem fosse um espião, mas Ali não iria correr
nenhum risco.
– Eu
estava me perguntando se você teria um pouco de água – o homem
disse.
– Tudo
bem, meu amigo. Temos um pouco – Ali disse. Pegou uma garrafa no
banco do passageiro e deu-a ao homem, que bebeu como se estivesse
sedento havia cem anos.
– Também
temos um pouco de comida. – De uma sacola, Ali tirou um tomate.
O
homem estendeu a mão com a palma aberta, como se estivesse recebendo
ouro. Depois, ficou ali, imóvel, com o tomate na mão, analisando
cada um de nós, um por um.
– Para
onde vocês vão? – perguntou.
– Vamos
visitar nossa tia – Ali disse. – Ela está muito doente.
Ele
apontou para a rua à frente, indicando o caminho que iríamos tomar.
Depois, sem dizer mais nada, o homem colocou o tomate numa cesta na
sua bicicleta, montou nela e saiu, mas em vez de ir embora, fez um
grande círculo na rua e voltou até nós.
– Me
desculpem – disse –, me esqueci, preciso lhes dizer uma coisa. –
Ele passou a mão pelo rosto, limpando um pouco da poeira, de modo a
haver, então, marcas de dedo em suas faces, revelando uma pele
branca. – Eu não me sentiria um homem bom se aceitasse sua água e
seu tomate, e fosse embora sem lhes dizer. Iria dormir esta noite me
perguntando se vocês estariam mortos ou vivos. Se pegarem a rua que
você disse, vão encontrar um franco-atirador no alto de uma caixa
d’água, a cerca de cinco quilômetros daqui. Ele verá vocês. Eu
aconselharia fortemente que pegassem esta rua em vez daquela. – Ele
apontou para uma rua de terra que levava a uma estrada rural, e
explicou que caminho tomar a partir de lá, de modo a acabarmos de
volta no caminho certo.
Ali
não esperaria mais a mãe e a criança, e decidimos confiar naquele
homem e pegar o desvio, uma virada à direita para a estrada rural
que nos levaria entre as cidades de Zardana e Maarat Misrin.
– Onde
estamos? – Afra perguntou, enquanto chacoalhávamos ao longo das
pistas rurais. – O que você vê?
– Tem
vinhedos e oliveiras em quilômetros à nossa volta. Está escuro,
mas muito lindo.
– Como
costumava ser?
– Como
se jamais tivesse sido tocado.
Ela
acenou com a cabeça e eu imaginei que não havia guerra, que
estávamos realmente indo visitar nossa tia doente, e que, quando
chegássemos, as casas, as ruas e as pessoas estariam como sempre
foram. Era isto que eu queria: estar com Afra num mundo ainda
intacto.
Enquanto
a picape pulava quase em silêncio ao longo da pista rural,
obriguei-me a permanecer acordado, a inalar a noite síria com suas
estrelas intocadas e suas videiras intactas. Captei o cheiro do
jasmim noturno e, vindo de mais longe, o perfume de rosas. Imaginei
um grande campo delas, lampejos de vermelho ao luar nos campos
adormecidos, e ao amanhecer os trabalhadores chegariam e as pétalas
grossas seriam acondicionadas em caixotes. E então, pude ver meus
apiários no campo vizinho, dentro das colmeias fileiras de favos de
mel, cada quadro contendo delicados hexágonos dourados. Em cima
ficavam os telhados, e dos buracos nas laterais as operárias
zumbiam, entrando e saindo, secretando cera de suas glândulas,
mascando-a e criando fileira após fileira de polígonos simétricos,
com cinco milímetros de diâmetro, como se estivessem depositando
cristais. A abelha rainha, na célula da rainha, juntamente com suas
poucas servidoras, seu perfume real servindo como imã para o enxame.
E o zumbido, aquele zumbido musical discreto que prosseguia
eternamente, e como as abelhas voavam à minha volta, pelo meu rosto,
prendendo-se em meu cabelo, libertando-se e saindo mais uma vez.
Então,
me lembrei de Mustafá, dos dias em que ele chegava aos apiários
vindo da universidade, de terno, segurando uma garrafa térmica de
café e uma mochila cheia de livros e papéis. Ele se trocava, vestia
seu equipamento de proteção e juntava-se a mim, checando os favos
de mel, a consistência, o cheiro e o gosto do mel, enfiando o dedo e
provando-o. “Nuri!”, chamava. “Nuri! Sabe, acho que nossas
abelhas produzem o melhor mel do mundo!” E mais tarde, quando o sol
se punha, deixávamos as abelhas e íamos para casa pegando o
trânsito da cidade. Sami estaria esperando à janela, com uma
expressão no rosto como se tivesse feito alguma coisa errada, e Afra
abriria a porta da frente.
– Nuri.
Nuri. Nuri.
Abri
os olhos. – O que foi?
O
rosto de Afra estava próximo ao meu. – Você estava chorando –
ela disse. – Escutei você chorando. – E enxugou minhas lágrimas
com ambas as mãos. Olhou nos meus olhos como se pudesse me ver.
Naquele momento, também pude vê-la, a mulher lá dentro, a mulher
que eu tinha perdido. Estava ali comigo, de alma aberta, presente e
clara como a luz. Naqueles poucos segundos perdi o medo da viagem, do
caminho à frente.
Mas
no instante seguinte seus olhos escureceram, morreram, e ela se
afundou para longe de mim. Eu sabia que não podia forçá-la a ficar
comigo, não havia nada que eu pudesse dizer para trazê-la de volta,
depois de ter sumido. Tinha que deixá-la ir e esperar que voltasse.
Demos
a volta em Maarat Misrin e depois retomamos a pista dupla,
atravessamos uma montanha e depois o vale entre Haranbush e Kafar
Nabi, e acabamos nos aproximamos de Armanaz, e lá, à frente,
estavam os grandes holofotes da fronteira turca, brilhando pela
planície como um sol branco.
Entre
Armanaz e a fronteira está o Rio Asi. Ele separa a Turquia da Síria,
e eu sabia que teríamos que atravessá-lo. O motorista parou a
picape num lugar escuro, debaixo de algumas árvores, e nos levou por
uma trilha em um bosque. Afra segurava a minha mão com muita força,
às vezes tropeçando e caindo, e eu tinha que ficar levantando-a e
segurá-la ao redor da cintura. Mas mal conseguia enxergar no escuro
e coisas mexiam-se nas folhas e galhos. Dava para ouvir vozes não
muito longe, e então, ao sairmos do bosque, vi trinta ou quarenta
pessoas paradas como fantasmas à margem do rio. Um homem descia uma
menina em uma grande panela, do tipo que usamos normalmente para
cozinhar cuscuz. Havia um longo cabo ligado a ela, de modo que os
homens do outro lado do rio pudessem puxá-la. Esse homem tentava
ajudar a menina a entrar na panela, mas ela chorava e seus braços
estavam em volta do pescoço do homem, e não se soltavam.
– Por
favor, entre – o homem dizia. – Vá até essas boas pessoas e eu
encontro você do outro lado.
– Mas
por que você não vem comigo? – ela perguntava.
– Prometo
que te encontro do outro lado. Por favor, pare de chorar. Eles vão
ouvir a gente.
Mas
a menina não escutava. Então, ele a empurrou para dentro e estapeou
o seu rosto com força. Ela se sentou, chocada, com a mão no rosto,
os homens puxando o cabo enquanto ela flutuava para longe. Quando ela
estava completamente fora da vista, o homem sentou-se no chão, como
se já não lhe restasse vida, e começou a soluçar. Eu sabia que
ele não voltaria a vê-la. E foi então que olhei para trás. Não
deveria ter olhado, mas afastei-me do grupo de pessoas e olhei para
trás, para a escuridão do país que estava deixando. Vi a abertura
entre as árvores, a trilha que poderia me levar de volta por onde eu
vim.
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
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