segunda-feira, 12 de junho de 2023

O homem que escutava as abelhas | 3




[...]
Logo atrás dos prédios, a hora naquele relógio da torre Bab al-Faraj reluzia verde. 23h55. Cinco minutos. Fiquei ali, impotente, observando-a, sua expressão enternecida pela lembrança. Desde que tinha rido e chorado, voltava à vida em fragmentos. Um tanto dela transparecia por uma fresta, e então ela sumia novamente. Agora, ali parada com o rosto tão perto do meu, eu conseguia ver o desejo, a determinação de se agarrar a uma ilusão, uma visão de vida, de Alepo. A antiga Afra ficaria indignada com isso. Tive um medo súbito dela. O celular parou de acender. Agora, estava mais escuro.
À distância, eu podia ver a cidadela em seu monte elíptico, como a ponta de um vulcão.
O vento soprou e trouxe com ele o perfume de rosas.
Está sentindo o cheiro de rosas? – perguntei.
Estou usando o perfume – ela disse.
Remexeu em seu bolso e tirou um frasco de vidro. Segurou-o na palma da mão. Eu o tinha mandado fazer para ela no ano em que nos casamos. Um amigo meu tinha uma destilaria de rosas, e eu mesmo tinha escolhido as flores.
Agora, ela cochichava. Queria voltar na primavera, quando as flores desabrochavam. Usaria o perfume e seu vestido amarelo, e passearíamos juntos. Começaríamos na nossa casa e caminharíamos pela cidade, subindo a colina até o souq. Depois, vagaríamos pelos corredores cobertos do velho mercado, pelas alas de condimentos, sabonetes, chás, bronze, ouro e prata, limões secos, mel e ervas, e eu lhe compraria uma echarpe de seda.
Senti-me subitamente enjoado. Já havia lhe dito que o souq estava vazio, algumas alas bombardeadas e incendiadas, apenas soldados, ratos e gatos vagavam pelos corredores por onde todos aqueles comerciantes e turistas já haviam andado. Todas as barracas tinham sido abandonadas, com exceção de uma, onde um velho vendia café para os soldados. Agora, a cidadela era uma base militar, ocupada por soldados e cercada por tanques.
O al-Madina Souq era um dos mercados mais antigos do mundo, posto-chave da Rota da Seda, aonde comerciantes viajavam do Egito, da Europa e da China. Afra falava de Alepo como se fosse uma terra mágica saída de uma história. Era como se ela tivesse esquecido todo o resto, os anos que levaram à guerra, às rebeliões, as tempestades de areia, as secas, a maneira como tínhamos nos esforçado para nos manter vivos, mesmo então, mesmo antes das bombas.
O celular do morto voltou a se acender. Alguém estava desesperado para falar com ele. Um poupa-pão estava pousado na árvore de narenj, seus olhos escuros brilhando. O pássaro abriu as asas, e listas pretas e brancas captaram a luz do celular. Tive medo da luz. Ajoelhei-me e tirei o celular dos dedos rígidos do homem, enfiando-o na minha mochila.
O relógio deu doze badaladas. À distância, o ronco suave de um motor. Afra endireitou o corpo, o rosto cheio de medo. Um Toyota fez a curva, faróis apagados, rodas revirando as cinzas. O motorista desceu, traços grosseiros, careca, camiseta preta, botas de exército, calça militar, pochete, arma na cintura. Era uma réplica de um combatente do regime: tinha raspado a cabeça, a barba também; um truque, caso fosse pego pela Shabiha de Assad.
Ficou ali parado por um momento, analisando-me. Afra moveu os pés na poeira, mas o homem não olhou para ela.
Pode me chamar de Ali – ele acabou dizendo, e sorriu, um sorriso aberto, tão largo que todo o seu rosto enrugou-se em dobras. Mas algo em seu sorriso deixou-me desconfortável, lembrou-me outro sorriso, um palhaço de corda que a avó de Sami tinha lhe comprado no mercado. O sorriso sumiu repentinamente, e os olhos de Ali passaram a percorrer a escuridão.
O que foi? – perguntei.
Me disseram três pessoas.
Apontei o homem no chão.
Que pena.
A voz de Ali assumiu um tom inesperado de tristeza, e ele ficou parado por um momento junto ao corpo do homem, cabeça baixa, antes de se ajoelhar e tirar uma aliança de ouro da mão do morto, colocando-a com cuidado em seu próprio dedo. Suspirou e olhou para a torre do relógio, depois para o céu. Acompanhei seu olhar.
É uma noite clara. Estamos em uma cúpula de estrelas. Temos quatro horas até o nascer do sol. Temos que chegar em Armanaz às três, se vocês forem cruzar a fronteira às quatro.
Quanto tempo leva a viagem? – Afra perguntou.
Ali olhou para ela, então, como se a estivesse vendo pela primeira vez, mas respondeu com os olhos fixos em mim: – Não chega a duas horas. E vocês não vão se sentar comigo. Entrem atrás.
Tinha uma vaca na carroceria da picape, o chão forrado com suas fezes. Ajudei Afra a entrar, e o motorista nos disse para sentarmos abaixados, assim não seríamos vistos. Se fôssemos pegos, os franco-atiradores matariam a vaca, e não nós. A vaca olhou para nós. O motor entrou em funcionamento e o Toyota movimentou-se no maior silêncio possível por entre as ruas cobertas de cinzas, sacudindo-se sobre os escombros.
Tem um celular tocando – Afra disse.
O que você está dizendo?
Posso senti-lo vibrando na minha perna, dentro da sua mochila. Quem está ligando para nós?
Não é o meu celular – eu disse. – Desliguei o meu.
De quem é então?
Tirei o celular da mochila. Cinquenta ligações perdidas. Tocou de novo.
Zujet Abbas: a Esposa de Abbas.
Quem é? – Afra disse. – Atenda.
Me dê seu hijab – eu disse.
Afra desenrolou o hijab da sua cabeça e passou-o para mim. Cobri minha cabeça com ele e atendi o celular.
Abbas!
Não.
Onde você está agora, Abbas?
Não, sinto muito, não sou o Abbas.
Onde ele está? Posso falar com ele? Ele conseguiu ser apanhado? Eles pegaram ele?
Abbas não está aqui.
Mas eu estava falando com ele. A ligação foi cortada.
Quando?
Não faz muito tempo. Mais ou menos uma hora atrás. Por favor, me deixe falar com ele.
Nesse momento, a picape parou, o motor foi desligado, passos aproximaram-se. O motorista puxou o hijab de mim, jogou-o atrás, e senti um frio metálico entre minhas sobrancelhas.
Você é estúpido? – Ali disse. – Quer morrer? – Empurrou a arma na minha testa, os olhos brilhando. Do celular, a esposa de Abbas dizia: “Abbas, Abbas...”, vezes sem conta.
Me dê isto! – o atravessador disse, e então entreguei a ele o celular e partimos de novo.
Estávamos indo para Urum al-Kubra, cerca de vinte quilômetros a oeste de Alepo. Serpenteamos pelas ruínas da velha cidade; as regiões a oeste estavam sob o domínio das forças governamentais, os rebeldes detinham o leste. O rio podia testemunhar tudo, correndo agora pela terra de ninguém, entre as linhas de frente opostas. Se algo fosse jogado no Queiq, no lado do governo, acabaria chegando aos rebeldes. Ao chegarmos aos limites da cidade, passamos por um cartaz enorme de Bashar al-Assad, com seus olhos azuis brilhantes como joias, até no escuro. O cartaz estava intacto, totalmente intocado.
Chegamos à pista dupla e o mundo abriu-se repentinamente, campos escuros a toda nossa volta, amoreiras e oliveiras azuis sob o luar. Eu sabia que haviam sido travadas batalhas entre rebeldes e tropas sírias entre as Cidades Mortas, as centenas de cidades greco-romanas abandonadas havia muito tempo, espalhadas pela área rural próxima a Alepo. Naquele vazio azul, tentei esquecer o que eu sabia, o que tinha escutado. Tentaria imaginar que tudo estava intocado. Exatamente como os olhos azuis de Bashar al-Assad. O que estava perdido estaria perdido para sempre. Os castelos das Cruzadas, mesquitas e igrejas, mosaicos romanos, antigos mercados, casas, lares, corações, maridos, esposas, filhas, filhos. Filhos. Lembrei-me dos olhos de Sami, no momento em que a luz se extinguiu e eles viraram vidro.
Afra estava calada. Seu cabelo, agora solto, da cor do céu. Olhei-a ali sentada, beliscando a pele, seu rosto branco mais pálido do que o normal. Meus olhos começaram a se fechar, e quando os abri, vi que tínhamos chegado a Urum al-Kubra, e à nossa frente estava a carcaça de um caminhão bombardeado. Nosso motorista andava em círculos. Disse que estava esperando uma mãe com uma criança.
O lugar estava vazio. Irreconhecível. Ali estava agitado. – Temos que chegar antes do nascer do sol – ele disse. – Se não chegarmos antes do sol, nunca chegaremos.
Da escuridão, entre os prédios, surgiu um homem de bicicleta.
Deixe que eu falo – Ali disse. – Ele pode ser qualquer pessoa. Pode ser um espião.
Quando o homem aproximou-se, vi que estava cinza como concreto, não parecia possível que aquele homem fosse um espião, mas Ali não iria correr nenhum risco.
Eu estava me perguntando se você teria um pouco de água – o homem disse.
Tudo bem, meu amigo. Temos um pouco – Ali disse. Pegou uma garrafa no banco do passageiro e deu-a ao homem, que bebeu como se estivesse sedento havia cem anos.
Também temos um pouco de comida. – De uma sacola, Ali tirou um tomate.
O homem estendeu a mão com a palma aberta, como se estivesse recebendo ouro. Depois, ficou ali, imóvel, com o tomate na mão, analisando cada um de nós, um por um.
Para onde vocês vão? – perguntou.
Vamos visitar nossa tia – Ali disse. – Ela está muito doente.
Ele apontou para a rua à frente, indicando o caminho que iríamos tomar. Depois, sem dizer mais nada, o homem colocou o tomate numa cesta na sua bicicleta, montou nela e saiu, mas em vez de ir embora, fez um grande círculo na rua e voltou até nós.
Me desculpem – disse –, me esqueci, preciso lhes dizer uma coisa. – Ele passou a mão pelo rosto, limpando um pouco da poeira, de modo a haver, então, marcas de dedo em suas faces, revelando uma pele branca. – Eu não me sentiria um homem bom se aceitasse sua água e seu tomate, e fosse embora sem lhes dizer. Iria dormir esta noite me perguntando se vocês estariam mortos ou vivos. Se pegarem a rua que você disse, vão encontrar um franco-atirador no alto de uma caixa d’água, a cerca de cinco quilômetros daqui. Ele verá vocês. Eu aconselharia fortemente que pegassem esta rua em vez daquela. – Ele apontou para uma rua de terra que levava a uma estrada rural, e explicou que caminho tomar a partir de lá, de modo a acabarmos de volta no caminho certo.
Ali não esperaria mais a mãe e a criança, e decidimos confiar naquele homem e pegar o desvio, uma virada à direita para a estrada rural que nos levaria entre as cidades de Zardana e Maarat Misrin.
Onde estamos? – Afra perguntou, enquanto chacoalhávamos ao longo das pistas rurais. – O que você vê?
Tem vinhedos e oliveiras em quilômetros à nossa volta. Está escuro, mas muito lindo.
Como costumava ser?
Como se jamais tivesse sido tocado.
Ela acenou com a cabeça e eu imaginei que não havia guerra, que estávamos realmente indo visitar nossa tia doente, e que, quando chegássemos, as casas, as ruas e as pessoas estariam como sempre foram. Era isto que eu queria: estar com Afra num mundo ainda intacto.
Enquanto a picape pulava quase em silêncio ao longo da pista rural, obriguei-me a permanecer acordado, a inalar a noite síria com suas estrelas intocadas e suas videiras intactas. Captei o cheiro do jasmim noturno e, vindo de mais longe, o perfume de rosas. Imaginei um grande campo delas, lampejos de vermelho ao luar nos campos adormecidos, e ao amanhecer os trabalhadores chegariam e as pétalas grossas seriam acondicionadas em caixotes. E então, pude ver meus apiários no campo vizinho, dentro das colmeias fileiras de favos de mel, cada quadro contendo delicados hexágonos dourados. Em cima ficavam os telhados, e dos buracos nas laterais as operárias zumbiam, entrando e saindo, secretando cera de suas glândulas, mascando-a e criando fileira após fileira de polígonos simétricos, com cinco milímetros de diâmetro, como se estivessem depositando cristais. A abelha rainha, na célula da rainha, juntamente com suas poucas servidoras, seu perfume real servindo como imã para o enxame. E o zumbido, aquele zumbido musical discreto que prosseguia eternamente, e como as abelhas voavam à minha volta, pelo meu rosto, prendendo-se em meu cabelo, libertando-se e saindo mais uma vez.
Então, me lembrei de Mustafá, dos dias em que ele chegava aos apiários vindo da universidade, de terno, segurando uma garrafa térmica de café e uma mochila cheia de livros e papéis. Ele se trocava, vestia seu equipamento de proteção e juntava-se a mim, checando os favos de mel, a consistência, o cheiro e o gosto do mel, enfiando o dedo e provando-o. “Nuri!”, chamava. “Nuri! Sabe, acho que nossas abelhas produzem o melhor mel do mundo!” E mais tarde, quando o sol se punha, deixávamos as abelhas e íamos para casa pegando o trânsito da cidade. Sami estaria esperando à janela, com uma expressão no rosto como se tivesse feito alguma coisa errada, e Afra abriria a porta da frente.
Nuri. Nuri. Nuri.
Abri os olhos. – O que foi?
O rosto de Afra estava próximo ao meu. – Você estava chorando – ela disse. – Escutei você chorando. – E enxugou minhas lágrimas com ambas as mãos. Olhou nos meus olhos como se pudesse me ver. Naquele momento, também pude vê-la, a mulher lá dentro, a mulher que eu tinha perdido. Estava ali comigo, de alma aberta, presente e clara como a luz. Naqueles poucos segundos perdi o medo da viagem, do caminho à frente.
Mas no instante seguinte seus olhos escureceram, morreram, e ela se afundou para longe de mim. Eu sabia que não podia forçá-la a ficar comigo, não havia nada que eu pudesse dizer para trazê-la de volta, depois de ter sumido. Tinha que deixá-la ir e esperar que voltasse.
Demos a volta em Maarat Misrin e depois retomamos a pista dupla, atravessamos uma montanha e depois o vale entre Haranbush e Kafar Nabi, e acabamos nos aproximamos de Armanaz, e lá, à frente, estavam os grandes holofotes da fronteira turca, brilhando pela planície como um sol branco.
Entre Armanaz e a fronteira está o Rio Asi. Ele separa a Turquia da Síria, e eu sabia que teríamos que atravessá-lo. O motorista parou a picape num lugar escuro, debaixo de algumas árvores, e nos levou por uma trilha em um bosque. Afra segurava a minha mão com muita força, às vezes tropeçando e caindo, e eu tinha que ficar levantando-a e segurá-la ao redor da cintura. Mas mal conseguia enxergar no escuro e coisas mexiam-se nas folhas e galhos. Dava para ouvir vozes não muito longe, e então, ao sairmos do bosque, vi trinta ou quarenta pessoas paradas como fantasmas à margem do rio. Um homem descia uma menina em uma grande panela, do tipo que usamos normalmente para cozinhar cuscuz. Havia um longo cabo ligado a ela, de modo que os homens do outro lado do rio pudessem puxá-la. Esse homem tentava ajudar a menina a entrar na panela, mas ela chorava e seus braços estavam em volta do pescoço do homem, e não se soltavam.
Por favor, entre – o homem dizia. – Vá até essas boas pessoas e eu encontro você do outro lado.
Mas por que você não vem comigo? – ela perguntava.
Prometo que te encontro do outro lado. Por favor, pare de chorar. Eles vão ouvir a gente.
Mas a menina não escutava. Então, ele a empurrou para dentro e estapeou o seu rosto com força. Ela se sentou, chocada, com a mão no rosto, os homens puxando o cabo enquanto ela flutuava para longe. Quando ela estava completamente fora da vista, o homem sentou-se no chão, como se já não lhe restasse vida, e começou a soluçar. Eu sabia que ele não voltaria a vê-la. E foi então que olhei para trás. Não deveria ter olhado, mas afastei-me do grupo de pessoas e olhei para trás, para a escuridão do país que estava deixando. Vi a abertura entre as árvores, a trilha que poderia me levar de volta por onde eu vim.

Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas

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