[…]
Uma
noite, um temporal que se vinha formando desabou com trovões e uma
chuva furiosa. Quando estiou, o sol reapareceu mais forte, e os
braços e pernas de Isaku assumiram uma tonalidade escura de marrom.
As mulheres trabalhavam recolhendo algas. O calor do verão ficou
mais forte, e muitas vezes a aldeia era afogada pelas chuvas. Os
saury começaram a se afastar para o norte, tornando-se mais escassos
a cada dia, até que no começo de julho desapareceram completamente.
Os polvos tornaram a aparecer, e os homens trabalharam duro para
pegá-los usando pedaços de peixes pequenos como iscas.
As
mulheres da aldeia carregaram nas costas o saury salgado até a
aldeia vizinha. Tinham estocado o suficiente para suas próprias
necessidades e queriam trocar o excedente por grãos. Mas naquele ano
todas as aldeias da costa tinham conseguido uma pesca excepcional, e
mais da metade dos peixes acabaram sendo usados como fertilizante no
campo; assim, elas voltaram com uma pequena quantidade de grãos como
resultado do esforço. Como na casa de Isaku não houvesse sobrado
saury salgado, sua mãe não precisou ir até a aldeia vizinha.
Aquelas
que fizeram a viagem voltaram contando que uma febre havia matado
muita gente na outra aldeia, naquele verão. A maioria dos que haviam
morrido eram crianças pequenas, idosos ou aqueles cuja doença havia
afetado irreversivelmente o cérebro ou os pulmões.
Preocupado
com o risco de a epidemia propagar-se, o chefe da aldeia proibiu que
qualquer pessoa saísse da aldeia. Ordenou que aquelas que tinham ido
à aldeia vizinha se lavassem no mar, sem exceção, todas as manhãs,
por duas semanas.
Chegou
o dia do Festival Bon, e a temporada de pesca foi interrompida.
Grupos formados pelas famílias subiram a trilha da montanha para
limpar os túmulos dos ancestrais antes de voltar para casa para
colocar oferendas de grãos ou peixe seco em seus altares budistas. À
tarde iriam queimar um talo de cânhamo na frente da porta, e tochas
flamejantes seriam levadas até a faixa de areia da praia. Dizia-se
que as almas que tinham partido para um local distante do outro lado
do oceano se orientariam por essas tochas para encontrar na escuridão
o caminho de volta até a praia; a luz dos talos de cânhamo
queimados serviria para guiá-los até seus antigos lares. Os
habitantes da aldeia acreditavam que os espíritos lavariam os pés
antes de entrar em casa, e então preparavam bacias com água fresca
e as colocavam na entrada.
Para
a mãe de Isaku, aquele seria o primeiro Bon desde que Teru havia
morrido em fevereiro daquele ano. Ela amarrou um pedaço de pano
branco em uma vara de bambu fino que ela mesma havia cortado, e o
colocou na porta. A dor de perder a filha pareceu retornar quando ela
se postou ali do lado da vara de bambu durante algum tempo.
Três
dias depois, um pequeno barco feito de casca de árvore e bambu foi
levado até a praia enquanto crianças corriam pela aldeia gritando:
— O
barco já vai sair!
Carregando
as oferendas de comida do altar, Isaku seguiu a mãe, que agarrou a
vara de bambu e seguiu para a praia. O barquinho foi colocado na
água, e Isaku e os outros da vila colocaram nele suas oferendas de
comida. A mãe também colocou sua vara de bambu no barquinho.
Ao
comando do chefe da aldeia, a nau de casca de árvore e bambu foi
rebocada para longe da costa por dois barcos e soltada a cerca de
quarenta metros da praia. Os dois pescadores lançaram suas tochas
acesas no barquinho, que começou a queimar de imediato. Envolto nas
chamas, ele foi lentamente carregado pela correnteza para o mar. Eles
viram a faixa branca queimar e cair. Os espíritos fariam a viagem de
volta através do mar guiados pela luz do barquinho em chamas.
O
mar foi encoberto pela escuridão à medida que o fogo se reduzia
lentamente, até apagar-se por completo. Isaku e sua mãe
permaneceram na praia por um longo tempo.
O
clima ameno continuou por muitos dias, e gigantescas colunas de
nuvens formavam-se no horizonte. Havia ocasiões em que o céu
escurecia de repente e lançava chuvas fortes sobre a aldeia.
A
mãe de Isaku passava os dias colhendo legumes selvagens nas
montanhas com as outras mulheres ou pegando frutos do mar e algas na
linha da água. Isaku percebeu que às vezes ela se sentava imóvel,
o olhar perdido no espaço. Cada vez que via a mãe assim ele se
lembrava do corpo do pai movendo-se em cima dela na escuridão da
noite. O pai ficava em silêncio, mas a mãe emitia sons como se
estivesse sendo torturada. Embora soasse como alguém em agonia,
Isaku sabia que ela estava em êxtase.
Um
ano e meio tinha se passado desde que o pai de Isaku partira. Sua mãe
passara todo esse tempo sem experimentar nenhum prazer; sem dúvida
ela estava recordando a última vez em que estivera nos braços do
marido. Tecendo fios para fazer uma peça de roupa para o pai dele,
ela parou o tear e em silêncio acariciou o pano.
O
calor do verão diminuiu e as noites ficaram mais frescas. Era típico
do começo do outono que chovesse de forma persistente, e aquele ano
não foi exceção.
Depois
de cerca de um mês o céu assumiu uma cor clara, luminosa, e uma
abóbada azul sem nuvens se abriu. O mar estava calmo e as lulas
começavam a aparecer.
Dois
homens foram para a aldeia vizinha com lulas secas para trocar por
equipamentos de pesca, como anzóis e pontas de espetos. Cinco dias
depois voltaram com notícias sobre aqueles que estavam cumprindo
contrato de servidão. Não havia nada sobre o pai de Isaku, mas a
irmã mais velha de Tami tinha morrido. Acontecera seis semanas
antes, e diziam que havia sido cremada no povoado onde trabalhava.
No
dia seguinte ninguém saiu para pescar, e Isaku juntou-se aos outros
na casa de Tami. No lugar do corpo, a cuia e os hashis que a irmã de
Tami usava foram colocados dentro do caixão enquanto as mulheres
mais velhas entoavam os sutras.
O
cortejo se formou e começou a avançar lentamente. Isaku foi atrás,
com uma carga de lenha nas costas. A família de Tami seguia
diretamente atrás do caixão. Seguiram pela trilha montanha acima,
atravessando a floresta, e chegaram à clareira. Ali o caixão foi
colocado no crematório.
O
fogo foi aceso e as chamas consumiram o caixão. A alma estava dentro
do caixão, mesmo que não houvesse corpo, e partiria com a fumaça
para um local muito distante no oceano. Os sutras foram entoados com
mais ênfase, e Isaku uniu as palmas das mãos em prece. De súbito
Tami começou a chorar. Os cabelos dela estavam amarrados para trás,
e alguns cachos soltos balançavam ao vento. Isaku a observou por
trás; os ombros dela tremiam com os soluços. A aldeia passou três
dias em luto.
Chegou
o período em que as mulheres iam para as estreitas faixas de
plantação para colher milho miúdo e outros grãos, que trariam em
sacolas para suas casas, mas o solo era pedregoso e improdutivo,
produzindo apenas safras muito fracas, A mãe de Isaku foi até a
plantação deles e voltou com uma quantidade insignificante de grãos
para estocar.
Lá
embaixo, na praia, os homens começaram a pescar os polvos de outono.
Era hábito eles aparecerem na época em que a grama eulália
começava a produzir espigas, mas naquele ano estavam vindo para a
praia bem mais cedo. Isaku levou o barco para o mar e entre as pedras
ocupou-se pegando polvos. Ele parou de remar e deslizou na água o
espeto com gancho com o paninho vermelho na ponta, movendo-o nos
buracos entre as pedras ou tufos de algas. Quando um polvo confundia
o paninho vermelho com comida e aparecia, Isaku o fisgava com o
gancho do espeto. Não muito depois, podia-se ver em todas as casas
da aldeia polvos pendurados para secar ao sol.
Os
ventos de outono começaram a soprar, e quando as espigas da grama
eulália amadureceram, a quantidade de polvos diminuiu muito. Não
havia quase mais nenhum sinal deles, por mais que Isaku movesse o
paninho vermelho na água. Mesmo assim, nas raras ocasiões em que
via um polvo sendo atraído pelo paninho, ele o fisgava com precisão.
Isaku calculou que sua habilidade tinha aumentado desde o outono
anterior.
Quando
moveu o espeto dentro da água, ele se lembrou da pesca de saury.
Fora ele quem menos pescara entre todos os pescadores, mas, como era
apenas sua segunda temporada, estava feliz por ter chegado ao estágio
em que conseguia pegar alguns peixes. Sentia-se confiante de que, à
medida que os anos passassem e ele adquirisse mais experiência,
acabaria se tornando um ótimo pescador.
Os
homens ficaram intrigados com a pequena quantidade de polvos naquele
ano. Normalmente, os polvos seriam secos e trocados por grãos com os
mercadores da aldeia vizinha ou com os moradores das aldeias da
montanha até o Ano-Novo. O polvo era essencial para conseguirem
provisões que lhes permitissem passar o inverno, e uma pesca pobre
significava um efeito muito sério nos estoques de comida da aldeia.
Uma atmosfera de calamidade abateu-se sobre os pescadores.
A
mãe de Isaku levou o irmão e irmã mais novos em repetidas viagens
à floresta para pegar galhos secos. Em preparação para o inverno
que se aproximava, Isaku ajudou a mãe a cortar esses galhos e a
empilhar a lenha junto à lateral da casa.
Ele
parava sempre o que estava fazendo na água para olhar para as
montanhas distantes. A chance de serem abençoados pela sorte era
mínima, mas, se acontecesse, os habitantes da aldeia seriam salvos e
a atmosfera carregada que pairava sobre o lugar devido à escassez de
polvos desapareceria em um instante.
Numa
manhã, enquanto estava sentado em seu barco na água, Isaku notou
uma pequena mudança no pico da montanha mais distante. As montanhas
ou eram cobertas de verde ou tinham a cor de pedra natural, mas o tom
de verde naquela encosta estava um tanto diferente do das outras. Só
podia ser um sinal de que as cores do outono estavam a caminho.
Naquela
tarde, quando voltou para casa, ele disse para a mãe:
— Parece
que as montanhas estão mudando de cor.
Ela
continuou a cortar lenha, não disse nada, nem mesmo olhou
diretamente para ele. Talvez já tivesse notado a mudança de cor na
montanha, ou talvez já tivesse perdido a esperança de que
O-fune-sama visitasse a costa onde moravam naquele inverno.
Isaku não sabia o que lhe ia pela cabeça.
Cerca
de duas semanas depois o topo da montanha começou a ficar vermelho,
e à medida que os dias passavam a cor foi ficando mais profunda até
que se espalhou pelas outras encostas. Nuvens velozes surgiram no
céu, e a água ficou mais fria.
As
cores do outono se espalharam como fogo na mata, tingindo as encostas
antes de envolver a própria aldeia. Nesse meio-tempo os pequenos
polvos deixaram a costa para não ser mais vistos.
Kura,
a esposa de Takichi, foi a mulher grávida escolhida para realizar o
ritual de O-fune-sama. Sua barriga já estava bem visível e,
sendo uma mulher de constituição alta e robusta, o chefe da aldeia
não hesitou em escolhê-la para a tarefa.
Naquele
dia, todos da aldeia se reuniram na praia. Com os cabelos penteados e
presos na nuca, Kura exibia uma expressão solene ao entrar no barco
de Takichi. Ela parecia ainda maior, em contraste com o marido
franzino.
Takichi
pegou o remo e levou o barco para dentro do mar. Evitando os locais
onde a água produzia espuma acima das pedras escondidas, ele remou o
barco até um pouco além dos recifes e parou. Kura se levantou e
lançou no mar a guirlanda sagrada que carregava. Isaku e os outros
juntaram as palmas em oração enquanto o barco se virava e voltava
para a praia.
Todos
seguiram Kura até a casa do chefe da aldeia.
O
chefe estava sentado na posição ortodoxa, as pernas dobradas sob o
corpo, ao recebê-la em casa. Kura se ajoelhou diante dele e espalmou
as mãos no chão ao se curvar profundamente. Levantando-se, ela
chutou a pequena mesinha quadrada colocada diante do chefe. Por pouco
a mesinha não se chocou contra a parede e a comida da cuia
espalhou-se pelo chão. Kura era muito mais poderosa do que a mulher
que Isaku havia visto no ano anterior; ela até mesmo conseguiu
arrancar murmúrios de admiração dos homens reunidos na entrada.
Depois
de ajustar o quimono, ela curvou-se novamente para o chefe da aldeia
e saiu com Takichi, em direção a sua casa.
Naquela
noite Isaku foi convidado para representar sua família na casa de
Takichi. A escolha de Kura para o ritual de O-fune-sama era
uma ocasião de bom auspício, e a tradição dizia que o bebê dela
cresceria forte e saudável. O pai de Kura também estava lá. Foi
trazido vinho de milho miúdo, e serviram a todos sopa de milho. A
mãe de Takichi estava lá, encurvada junto do fogão.
— Depois
que a sua esposa chutou a mesa através da sala daquele jeito, as
pessoas estão dizendo que é bem possível que O-fune-sama
esteja a caminho — disse Isaku, tomando um gole do vinho em sua
cuia. Bem que um barco podia virar do mesmo modo que a mesinha foi
virada, pensou ele.
— Isso
seria muito bom — murmurou Takichi. O pai de Kura ficou apenas ali
sentado, tomando o vinho enquanto a filha servia água quente na cuia
da mãe de Takichi. — Vamos ter problemas se O-fune-sama não
vier. O bebê significa outra boca para alimentar. Talvez eu tenha de
fazer o mesmo que seu pai fez e me vender para evitar que morram de
fome — disse ele, olhando placidamente para Isaku.
Isaku
teve uma contração involuntária, mas aquilo não era exatamente
inesperado. Takichi tinha de assumir a tarefa de sustentar não só
sua velha mãe mas também a esposa e o bebê que não ia demorar
para nascer. Sem terem conseguido vender o saury e, depois com
a parca pesca de polvos, a família de Takichi não tinha conseguido
reunir grãos suficientes na aldeia vizinha, o que os deixava numa
situação difícil.
Essa
situação era exatamente a mesma vivida no passado pela família de
Isaku. Embora seu pai fosse um ótimo pescador, uma temporada de
pesca fraca o deixara sem escolha a não ser vender-se como servo.
Havia um limite para a quantidade de comida que podia ser tirada do
mar, e a cada ano a pesca era mais escassa. Se O-fune-sama não
aparecesse na costa naquele ano, haveria uma enxurrada de pessoas se
encaminhando para a servidão.
— Eu
tive de bater em Kura uma vez para fazer com que pensasse direito.
Ela disse que iria assim que o bebê deixasse de mamar. Ela é grande
e provavelmente conseguiria um bom preço, mas eu não concordo com
isso. Minha mulher não vai vender-se. Eu é que tenho de ir.
Os
olhos de Takichi brilhavam enquanto ele falava. O pai de Kura não
disse nada, continuou olhando para as chamas em silêncio.
Isaku
tomou um gole da sopa de legumes que Kura havia servido para ele,
depois foi embora. O vinho o fez cambalear. Lágrimas surgiram em
seus olhos enquanto caminhava até sua casa. Ele compreendia como seu
pai devia ter se sentido quando deixara a família para trás. Suas
últimas palavras tinham sido “não deixe as crianças morrer de
fome”, mas Teru tinha morrido. Quando o pai partira, confiando o
bem-estar da família a alguém totalmente despreparado como Isaku,
devia estar consciente de que a morte entre eles seria algo muito
possível. A mãe tentava dar aos filhos tanto alimento quanto
possível, colocando os pedaços sólidos de legumes nas cuias das
crianças, deixando para si mesma apenas o líquido. Ela sabia o que
o pai deles pensava e estava fazendo o que podia para manter as
crianças vivas.
Isaku
sentiu que balançava diante do mar sem vento, imerso no barulho das
ondas.
Isaku
tinha apenas uma vaga memória da última vez que O-fune-sama
havia visitado aquele litoral, mas, quando se lembrou da atmosfera
estranhamente festiva, imaginou que devia ser realmente um verdadeiro
tesouro para deixar o povo tão alegre.
Ele
caminhou pela trilha na direção dos vagos contornos de sua casa
contra o céu noturno.
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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