sexta-feira, 9 de junho de 2023

Naufrágios | Capítulo 4


[…]
Uma noite, um temporal que se vinha formando desabou com trovões e uma chuva furiosa. Quando estiou, o sol reapareceu mais forte, e os braços e pernas de Isaku assumiram uma tonalidade escura de marrom. As mulheres trabalhavam recolhendo algas. O calor do verão ficou mais forte, e muitas vezes a aldeia era afogada pelas chuvas. Os saury começaram a se afastar para o norte, tornando-se mais escassos a cada dia, até que no começo de julho desapareceram completamente. Os polvos tornaram a aparecer, e os homens trabalharam duro para pegá-los usando pedaços de peixes pequenos como iscas.
As mulheres da aldeia carregaram nas costas o saury salgado até a aldeia vizinha. Tinham estocado o suficiente para suas próprias necessidades e queriam trocar o excedente por grãos. Mas naquele ano todas as aldeias da costa tinham conseguido uma pesca excepcional, e mais da metade dos peixes acabaram sendo usados como fertilizante no campo; assim, elas voltaram com uma pequena quantidade de grãos como resultado do esforço. Como na casa de Isaku não houvesse sobrado saury salgado, sua mãe não precisou ir até a aldeia vizinha.
Aquelas que fizeram a viagem voltaram contando que uma febre havia matado muita gente na outra aldeia, naquele verão. A maioria dos que haviam morrido eram crianças pequenas, idosos ou aqueles cuja doença havia afetado irreversivelmente o cérebro ou os pulmões.
Preocupado com o risco de a epidemia propagar-se, o chefe da aldeia proibiu que qualquer pessoa saísse da aldeia. Ordenou que aquelas que tinham ido à aldeia vizinha se lavassem no mar, sem exceção, todas as manhãs, por duas semanas.
Chegou o dia do Festival Bon, e a temporada de pesca foi interrompida. Grupos formados pelas famílias subiram a trilha da montanha para limpar os túmulos dos ancestrais antes de voltar para casa para colocar oferendas de grãos ou peixe seco em seus altares budistas. À tarde iriam queimar um talo de cânhamo na frente da porta, e tochas flamejantes seriam levadas até a faixa de areia da praia. Dizia-se que as almas que tinham partido para um local distante do outro lado do oceano se orientariam por essas tochas para encontrar na escuridão o caminho de volta até a praia; a luz dos talos de cânhamo queimados serviria para guiá-los até seus antigos lares. Os habitantes da aldeia acreditavam que os espíritos lavariam os pés antes de entrar em casa, e então preparavam bacias com água fresca e as colocavam na entrada.
Para a mãe de Isaku, aquele seria o primeiro Bon desde que Teru havia morrido em fevereiro daquele ano. Ela amarrou um pedaço de pano branco em uma vara de bambu fino que ela mesma havia cortado, e o colocou na porta. A dor de perder a filha pareceu retornar quando ela se postou ali do lado da vara de bambu durante algum tempo.
Três dias depois, um pequeno barco feito de casca de árvore e bambu foi levado até a praia enquanto crianças corriam pela aldeia gritando:
O barco já vai sair!
Carregando as oferendas de comida do altar, Isaku seguiu a mãe, que agarrou a vara de bambu e seguiu para a praia. O barquinho foi colocado na água, e Isaku e os outros da vila colocaram nele suas oferendas de comida. A mãe também colocou sua vara de bambu no barquinho.
Ao comando do chefe da aldeia, a nau de casca de árvore e bambu foi rebocada para longe da costa por dois barcos e soltada a cerca de quarenta metros da praia. Os dois pescadores lançaram suas tochas acesas no barquinho, que começou a queimar de imediato. Envolto nas chamas, ele foi lentamente carregado pela correnteza para o mar. Eles viram a faixa branca queimar e cair. Os espíritos fariam a viagem de volta através do mar guiados pela luz do barquinho em chamas.
O mar foi encoberto pela escuridão à medida que o fogo se reduzia lentamente, até apagar-se por completo. Isaku e sua mãe permaneceram na praia por um longo tempo.
O clima ameno continuou por muitos dias, e gigantescas colunas de nuvens formavam-se no horizonte. Havia ocasiões em que o céu escurecia de repente e lançava chuvas fortes sobre a aldeia.
A mãe de Isaku passava os dias colhendo legumes selvagens nas montanhas com as outras mulheres ou pegando frutos do mar e algas na linha da água. Isaku percebeu que às vezes ela se sentava imóvel, o olhar perdido no espaço. Cada vez que via a mãe assim ele se lembrava do corpo do pai movendo-se em cima dela na escuridão da noite. O pai ficava em silêncio, mas a mãe emitia sons como se estivesse sendo torturada. Embora soasse como alguém em agonia, Isaku sabia que ela estava em êxtase.
Um ano e meio tinha se passado desde que o pai de Isaku partira. Sua mãe passara todo esse tempo sem experimentar nenhum prazer; sem dúvida ela estava recordando a última vez em que estivera nos braços do marido. Tecendo fios para fazer uma peça de roupa para o pai dele, ela parou o tear e em silêncio acariciou o pano.
O calor do verão diminuiu e as noites ficaram mais frescas. Era típico do começo do outono que chovesse de forma persistente, e aquele ano não foi exceção.
Depois de cerca de um mês o céu assumiu uma cor clara, luminosa, e uma abóbada azul sem nuvens se abriu. O mar estava calmo e as lulas começavam a aparecer.
Dois homens foram para a aldeia vizinha com lulas secas para trocar por equipamentos de pesca, como anzóis e pontas de espetos. Cinco dias depois voltaram com notícias sobre aqueles que estavam cumprindo contrato de servidão. Não havia nada sobre o pai de Isaku, mas a irmã mais velha de Tami tinha morrido. Acontecera seis semanas antes, e diziam que havia sido cremada no povoado onde trabalhava.
No dia seguinte ninguém saiu para pescar, e Isaku juntou-se aos outros na casa de Tami. No lugar do corpo, a cuia e os hashis que a irmã de Tami usava foram colocados dentro do caixão enquanto as mulheres mais velhas entoavam os sutras.
O cortejo se formou e começou a avançar lentamente. Isaku foi atrás, com uma carga de lenha nas costas. A família de Tami seguia diretamente atrás do caixão. Seguiram pela trilha montanha acima, atravessando a floresta, e chegaram à clareira. Ali o caixão foi colocado no crematório.
O fogo foi aceso e as chamas consumiram o caixão. A alma estava dentro do caixão, mesmo que não houvesse corpo, e partiria com a fumaça para um local muito distante no oceano. Os sutras foram entoados com mais ênfase, e Isaku uniu as palmas das mãos em prece. De súbito Tami começou a chorar. Os cabelos dela estavam amarrados para trás, e alguns cachos soltos balançavam ao vento. Isaku a observou por trás; os ombros dela tremiam com os soluços. A aldeia passou três dias em luto.
Chegou o período em que as mulheres iam para as estreitas faixas de plantação para colher milho miúdo e outros grãos, que trariam em sacolas para suas casas, mas o solo era pedregoso e improdutivo, produzindo apenas safras muito fracas, A mãe de Isaku foi até a plantação deles e voltou com uma quantidade insignificante de grãos para estocar.
Lá embaixo, na praia, os homens começaram a pescar os polvos de outono. Era hábito eles aparecerem na época em que a grama eulália começava a produzir espigas, mas naquele ano estavam vindo para a praia bem mais cedo. Isaku levou o barco para o mar e entre as pedras ocupou-se pegando polvos. Ele parou de remar e deslizou na água o espeto com gancho com o paninho vermelho na ponta, movendo-o nos buracos entre as pedras ou tufos de algas. Quando um polvo confundia o paninho vermelho com comida e aparecia, Isaku o fisgava com o gancho do espeto. Não muito depois, podia-se ver em todas as casas da aldeia polvos pendurados para secar ao sol.
Os ventos de outono começaram a soprar, e quando as espigas da grama eulália amadureceram, a quantidade de polvos diminuiu muito. Não havia quase mais nenhum sinal deles, por mais que Isaku movesse o paninho vermelho na água. Mesmo assim, nas raras ocasiões em que via um polvo sendo atraído pelo paninho, ele o fisgava com precisão. Isaku calculou que sua habilidade tinha aumentado desde o outono anterior.
Quando moveu o espeto dentro da água, ele se lembrou da pesca de saury. Fora ele quem menos pescara entre todos os pescadores, mas, como era apenas sua segunda temporada, estava feliz por ter chegado ao estágio em que conseguia pegar alguns peixes. Sentia-se confiante de que, à medida que os anos passassem e ele adquirisse mais experiência, acabaria se tornando um ótimo pescador.
Os homens ficaram intrigados com a pequena quantidade de polvos naquele ano. Normalmente, os polvos seriam secos e trocados por grãos com os mercadores da aldeia vizinha ou com os moradores das aldeias da montanha até o Ano-Novo. O polvo era essencial para conseguirem provisões que lhes permitissem passar o inverno, e uma pesca pobre significava um efeito muito sério nos estoques de comida da aldeia. Uma atmosfera de calamidade abateu-se sobre os pescadores.
A mãe de Isaku levou o irmão e irmã mais novos em repetidas viagens à floresta para pegar galhos secos. Em preparação para o inverno que se aproximava, Isaku ajudou a mãe a cortar esses galhos e a empilhar a lenha junto à lateral da casa.
Ele parava sempre o que estava fazendo na água para olhar para as montanhas distantes. A chance de serem abençoados pela sorte era mínima, mas, se acontecesse, os habitantes da aldeia seriam salvos e a atmosfera carregada que pairava sobre o lugar devido à escassez de polvos desapareceria em um instante.
Numa manhã, enquanto estava sentado em seu barco na água, Isaku notou uma pequena mudança no pico da montanha mais distante. As montanhas ou eram cobertas de verde ou tinham a cor de pedra natural, mas o tom de verde naquela encosta estava um tanto diferente do das outras. Só podia ser um sinal de que as cores do outono estavam a caminho.
Naquela tarde, quando voltou para casa, ele disse para a mãe:
Parece que as montanhas estão mudando de cor.
Ela continuou a cortar lenha, não disse nada, nem mesmo olhou diretamente para ele. Talvez já tivesse notado a mudança de cor na montanha, ou talvez já tivesse perdido a esperança de que O-fune-sama visitasse a costa onde moravam naquele inverno. Isaku não sabia o que lhe ia pela cabeça.
Cerca de duas semanas depois o topo da montanha começou a ficar vermelho, e à medida que os dias passavam a cor foi ficando mais profunda até que se espalhou pelas outras encostas. Nuvens velozes surgiram no céu, e a água ficou mais fria.
As cores do outono se espalharam como fogo na mata, tingindo as encostas antes de envolver a própria aldeia. Nesse meio-tempo os pequenos polvos deixaram a costa para não ser mais vistos.
Kura, a esposa de Takichi, foi a mulher grávida escolhida para realizar o ritual de O-fune-sama. Sua barriga já estava bem visível e, sendo uma mulher de constituição alta e robusta, o chefe da aldeia não hesitou em escolhê-la para a tarefa.
Naquele dia, todos da aldeia se reuniram na praia. Com os cabelos penteados e presos na nuca, Kura exibia uma expressão solene ao entrar no barco de Takichi. Ela parecia ainda maior, em contraste com o marido franzino.
Takichi pegou o remo e levou o barco para dentro do mar. Evitando os locais onde a água produzia espuma acima das pedras escondidas, ele remou o barco até um pouco além dos recifes e parou. Kura se levantou e lançou no mar a guirlanda sagrada que carregava. Isaku e os outros juntaram as palmas em oração enquanto o barco se virava e voltava para a praia.
Todos seguiram Kura até a casa do chefe da aldeia.
O chefe estava sentado na posição ortodoxa, as pernas dobradas sob o corpo, ao recebê-la em casa. Kura se ajoelhou diante dele e espalmou as mãos no chão ao se curvar profundamente. Levantando-se, ela chutou a pequena mesinha quadrada colocada diante do chefe. Por pouco a mesinha não se chocou contra a parede e a comida da cuia espalhou-se pelo chão. Kura era muito mais poderosa do que a mulher que Isaku havia visto no ano anterior; ela até mesmo conseguiu arrancar murmúrios de admiração dos homens reunidos na entrada.
Depois de ajustar o quimono, ela curvou-se novamente para o chefe da aldeia e saiu com Takichi, em direção a sua casa.
Naquela noite Isaku foi convidado para representar sua família na casa de Takichi. A escolha de Kura para o ritual de O-fune-sama era uma ocasião de bom auspício, e a tradição dizia que o bebê dela cresceria forte e saudável. O pai de Kura também estava lá. Foi trazido vinho de milho miúdo, e serviram a todos sopa de milho. A mãe de Takichi estava lá, encurvada junto do fogão.
Depois que a sua esposa chutou a mesa através da sala daquele jeito, as pessoas estão dizendo que é bem possível que O-fune-sama esteja a caminho — disse Isaku, tomando um gole do vinho em sua cuia. Bem que um barco podia virar do mesmo modo que a mesinha foi virada, pensou ele.
Isso seria muito bom — murmurou Takichi. O pai de Kura ficou apenas ali sentado, tomando o vinho enquanto a filha servia água quente na cuia da mãe de Takichi. — Vamos ter problemas se O-fune-sama não vier. O bebê significa outra boca para alimentar. Talvez eu tenha de fazer o mesmo que seu pai fez e me vender para evitar que morram de fome — disse ele, olhando placidamente para Isaku.
Isaku teve uma contração involuntária, mas aquilo não era exatamente inesperado. Takichi tinha de assumir a tarefa de sustentar não só sua velha mãe mas também a esposa e o bebê que não ia demorar para nascer. Sem terem conseguido vender o saury e, depois com a parca pesca de polvos, a família de Takichi não tinha conseguido reunir grãos suficientes na aldeia vizinha, o que os deixava numa situação difícil.
Essa situação era exatamente a mesma vivida no passado pela família de Isaku. Embora seu pai fosse um ótimo pescador, uma temporada de pesca fraca o deixara sem escolha a não ser vender-se como servo. Havia um limite para a quantidade de comida que podia ser tirada do mar, e a cada ano a pesca era mais escassa. Se O-fune-sama não aparecesse na costa naquele ano, haveria uma enxurrada de pessoas se encaminhando para a servidão.
Eu tive de bater em Kura uma vez para fazer com que pensasse direito. Ela disse que iria assim que o bebê deixasse de mamar. Ela é grande e provavelmente conseguiria um bom preço, mas eu não concordo com isso. Minha mulher não vai vender-se. Eu é que tenho de ir.
Os olhos de Takichi brilhavam enquanto ele falava. O pai de Kura não disse nada, continuou olhando para as chamas em silêncio.
Isaku tomou um gole da sopa de legumes que Kura havia servido para ele, depois foi embora. O vinho o fez cambalear. Lágrimas surgiram em seus olhos enquanto caminhava até sua casa. Ele compreendia como seu pai devia ter se sentido quando deixara a família para trás. Suas últimas palavras tinham sido “não deixe as crianças morrer de fome”, mas Teru tinha morrido. Quando o pai partira, confiando o bem-estar da família a alguém totalmente despreparado como Isaku, devia estar consciente de que a morte entre eles seria algo muito possível. A mãe tentava dar aos filhos tanto alimento quanto possível, colocando os pedaços sólidos de legumes nas cuias das crianças, deixando para si mesma apenas o líquido. Ela sabia o que o pai deles pensava e estava fazendo o que podia para manter as crianças vivas.
Isaku sentiu que balançava diante do mar sem vento, imerso no barulho das ondas.
Isaku tinha apenas uma vaga memória da última vez que O-fune-sama havia visitado aquele litoral, mas, quando se lembrou da atmosfera estranhamente festiva, imaginou que devia ser realmente um verdadeiro tesouro para deixar o povo tão alegre.
Ele caminhou pela trilha na direção dos vagos contornos de sua casa contra o céu noturno.

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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