Fui
levar ao aeroporto o meu amigo Carlos Manuel. Trata-se de um
inveterado viajante, mas que realiza sempre o mesmo percurso aéreo.
Já viajava antes de ser, e conservou o hábito. Há em seu
passaporte apenas dois carimbos, invariavelmente repetidos. Porque já
o conheçam bastante, ou por um segundo motivo, que se deduzirá no
fim, as autoridades aeronáuticas, alfandegárias e policiais não o
convidam a identificar-se (e se o fizessem não seriam atendidas,
pois meu amigo é displicente e omisso em muitas situações civis).
Ele chega ao país e sai com desembaraço, embora sem arrogância,
abstendo-se de fazer qualquer declaração. Costuma bocejar diante
das formalidades, e se alguém de mais préstimo se dispõe a
cumpri-las em sua intenção, isso é lá com a pessoa. O céu
constitui a rua entre duas casas, e não vai um cristão incomodar-se
toda vez que precisa sair de um domicílio e entrar noutro.
Alheia-se
totalmente da organização política das duas nações, mas tira da
vida cotidiana de ambas boa parte de seus interesses. Está muito
ligado ao povo, com quem mantém contato direto e espontâneo,
aprazendo-se na companhia de empregadas domésticas, sorveteiros,
jornaleiros, estafetas, operários de construção civil, e outros
ramos (sem ser demagogo). E não desdenha o convívio com as classes
mais favorecidas, cujos salões frequenta moderadamente, não sendo
raro vê-lo deixar o living de uma casa amiga para se dirigir aos
fundos e ali estabelecer relações cordiais com o pessoal de
serviço.
Dono
de insaciável curiosidade intelectual, meu amigo é dos que
pretendem aprender tudo e o mais depressa possível, resultando daí
certa confusão encantadora entre os materiais do seu saber, a
começar pelo veículo do pensamento, que engloba dois modos
distintos de falar. Não se sabe onde acaba uma língua e começa
outra. Há meses em que tem predominância um idioma, com sua
estética e psicologia próprias; em outros períodos, as
peculiaridades da segunda fala se destacam, quando não se mesclam às
da primeira, de forma arbitrária, mas imperiosa; e nesse último
caso, os lábios do meu amigo deixam escapar qualquer coisa como o
sabir, o pidgin-English ou o broken English, uma dessas línguas
mistas que, segundo Vendryes, resultam da fusão de dois ou mais
idiomas, e que, desprovidas de morfologia característica, não podem
ser reivindicadas por nenhum dos idiomas componentes — verdadeiro
caso de hibridação linguística.
Nossa
profunda e leal amizade não é isenta de corisco e chuva miúda, mas
logo o tempo clareia, e reconhecemos a mútua boa-fé. Se uma vez,
magoado pela injustiça, me anunciou seu intento de voar no mesmo dia
para a outra cidade, e lá apanhar uma “escopeta” com que
“mataria mi corazón”, a verdade é que, um instante depois,
revelava que isso era “de broma”. E sou obrigado a confessar que
frequentemente me acusa de falta de juízo, pelos riscos físicos a
que o exponho oferecendo-lhe objetos de uso perigoso que, por
incapacidade de escolher presentes adequados, me parecem os mais
festivos e recomendáveis às pessoas de minha estima.
Não
costuma contar-me sua vida, embora conte a minha a terceiros, e certa
vez uma senhora abordou-me, sorrindo: “Já sei que esta manhã não
ficou nada satisfeito, porque a crônica não saiu boa; o Carlos
Manuel me contou”. Conspirasse eu contra o regime, e estaria bem
arranjado, pois é comum o meu amigo chegar a uma assembleia e dizer:
“Sabem quem foi ver ontem o cda? Chico Barbosa”. A feijoada, a
vitrola que não funciona, um dinheiro que entrou a mais, uma calça
que se rasgou, tudo são fatos que atravessam o sigilo familiar e se
expõem ao olho público. E o que em outros seria indiscrição, nele
é uma forma de gostar e louvar. Finalmente, o narrador se esquece do
que contou. Ao mesmo tempo, conta-me histórias absurdas, que não
aconteceram “no corpo”, mas que, ao serem contadas, acontecem. E
não é mentiroso nem poeta, mas natural.
Sonha
muito e dorme pouco. De sua luta com o sono falarei na próxima.
Idade do meu amigo*: quatro anos e três caramelos.
*Carlos
Manuel Graña Drummond, neto mais velho de Drummond.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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