sexta-feira, 9 de junho de 2023

Cartas para minha avó

Faz tanto tempo que queria ter essa conversa com você, vó. Acho que me faltava coragem para ir a esse lugar mais profundo, para acessar memórias que me são tão dolorosas. Desculpe-me, Antônia, por ter demorado.
Um dia li um texto lindo que a artista Renata Felinto escreveu numa rede social. Aquilo me tocou profundamente e sinto que é algo que gostaria de ter te falado, então reproduzo nesta carta:

Eu não sei vocês, mas aqui a gente limpa a casa todo dia. todo dia. E tem umas limpezas que eu tenho certeza que só ocorreriam naquela faxina de fim de ano. Coisa que talvez a gente nunca limpasse se não fosse esse contexto de estar 24h em casa e se deparar a todo momento com aquela situação que te incomoda, independente de ter toc ou qualquer outro transtorno.
Eu sei que pra o povo preto tem um agravante. Apesar de todo mundo saber que a gente sempre limpou das casas grandes aos triplex, tem aquela coisa de “sou pobre, mas sou limpa”, que não sai da gente assim como os xingamentos absolutamente infundados de “preta fedida”, e vira uma neura manter a casa limpíssima, ainda que não receba ninguém em casa nesse momento. Então ninguém vai reparar e não vai precisar dizer “desculpa alguma coisa”. Olha amiga, pega o racismo disfarçado de uma mania de limpeza e coloca no molho, deixa lá até dissolver. Depois joga no ralo.
Abandona esses estigmas que nos imprimiram devido a muitas violências históricas. Varre o chão se estiver sujo e não precisa passar dez panos com desinfetante ou lavar e esfregar todo dia. Deixar uma panela pra mais tarde também não é problema.
Fazer um almoço mais simples nesse domingo também não tem problema. Almoço de domingo dá um super trabalho! Faz um prato mais simples e não menos saboroso e temperado de afeto.
Vai ver um filme. Fica no celular com as pessoas de quem gosta. Arruma as fotos de família. Separa as roupas que pode doar. Cuida das plantas. Penteia as crias. Fica de boa.
As coisas mudaram. O tempo é outro. O Tempo/Troco chegou para nos ensinar. Se vai trabalhar amanhã na rua, descansa minimamente. Se vai ficar em casa, descansa também porque tá puxado dentro de casa. É pra gente mudar a forma de agir e pensar. É pra gente ter cuidado com a gente. Com nosso interior. Permita-se ver uma coisinha desarrumada, ser menos pretensiosa na cozinha, estar mais à vontade, ficar em silêncio. Faça as coisas que as nossas mais velhas não podiam fazer: tentar respirar. Se não for por você, faz por elas. Descanse um pouco aê. Vai chegar ninguém não.
A gente dedica tanto tempo arrumando fora que se esquece de organizar dentro, dentro da gente. Obs.: se chegar, manda de volta pra casa sem abrir a porta. Relaxa. São 11h27.

Fui muito julgada por não saber arrumar a casa e cozinhar como você e minha mãe. As pessoas me olhavam daquele jeito, como se dissessem “Essa não puxou a avó”. É, nesse quesito, não. E está tudo bem.
Sempre fico triste quando penso que você não teve muitos dias de descanso na vida, exceto aqueles em que viajava para Aparecida, pois gostava de visitar o Santuário. Minha mãe também passou a maior parte da vida trabalhando, mas como nos colocava para ajudá-la em casa, teve alguns momentos de paz. Eu já parti de outro lugar e, apesar de trabalhar muito, não perco mais as oportunidades de cuidar de mim — e acho que fazer isso também é um modo de honrar você.
É triste perceber que para vocês duas não houve opção, desde cedo foram empurradas para o trabalho doméstico. Claro que era exagero da sua filha lavar as paredes da casa toda com cloro e sabão na faxina de Ano-Novo, mas a questão é: de onde veio essa imposição? Essa necessidade de se comparar com outras mulheres e dizer que sua casa é mais limpa, que você é uma mulher de verdade por saber desossar um frango e manter a casa impecável mesmo com crianças pequenas?
A verdade é que minha mãe nunca pôde se fazer essa pergunta. E as horas em que vocês duas passavam falando mal das vizinhas que não cuidavam da casa direito poderiam ter sido preenchidas com momentos de autodescobrimento, de prazer. Porém há mãos que condicionam nossas vidas antes de nascermos, coloca sobre nós um imperativo categórico de submissão e competição, como se nós só pudéssemos falar de garfos, toalha de mesa torta, panela que não está brilhando, criticar arroz papa, da vizinha que risca suas frigideiras de teflon.
Eu gostaria que vocês pudessem ter tido mais tempo para olhar para fora, porém o mundo as converteu, controlou, nem sequer deu chance. Lembro dos chás de Tupperware em casa que minha mãe oferecia e o quão tensa ela ficava nos dias que antecediam, se achava que a casa não estava impecavelmente limpa, se as mulheres convidadas iriam reparar no rasgo do sofá, na estante da sala riscada por nós. “Não repara na bagunça”, minha mãe dizia, somente para ouvir como resposta “Sua casa é incrivelmente arrumada, não sei como você consegue com quatro crianças!”. E esse era um dos maiores elogios que minha mãe poderia ouvir. Nunca a elogiaram por sua habilidade de fazer render comida quando passávamos por um período mais escasso, do quanto o “colocar mais água no feijão” realmente funcionava sem perder o gosto delicioso e o tempero que só ela tinha. Sua admirável habilidade de equilibrar os filhos em uma bicicleta e nos levar para a escola.
Foram raras as vezes em que ofereciam ajuda para minha mãe. Ela era vista como uma mulher forte que dava conta de tudo, mas foram muitas as vezes em que a vi chorar escondido ou disfarçar as lágrimas enquanto lavava roupas no tanque. “Desculpe qualquer coisa”, ela se despedia assim das mulheres do chá. Sempre se desculpando por tudo, nunca se sentindo plena e completa. Mesmo tendo oferecido um banquete, seu sentimento era de falta, escassez, incompletude.
As mulheres do chá não ajudavam muito, pois sempre saíam falando de alguma coisa naquela competição tóxica. “Fulana saiu dizendo que seu chá não foi bom, seu apartamento é muito pequeno e ela precisou ficar em pé.” Essa era uma das falas que mais a machucava. De fato, nosso apartamento era pequeno e foi motivo de muitas brigas com meu pai, “que gastava o dinheiro com mulher na rua”. Se as mulheres do chá saíssem dizendo que a comida não era boa, ela ficava brava e respondia à altura, pois era extremamente confiante em seus dotes culinários. Se reclamassem do cheiro do Varsol, Erani retrucaria dizendo que elas não se preocupavam com limpeza como ela. Sobre o tamanho do apartamento, porém, ela não tinha resposta.
Foram várias as vezes que minha mãe desejou um lugar maior, uma casa mais confortável, mas meu pai estava ocupado com outras coisas. Ela fez o que podia para manter a casa o mais confortável possível, embora soubesse que parte do dinheiro não chegava por causa das ligações escusas que meu pai recebia de madrugada. Ele era a figura central de sua raiva, embora “as mulheres da rua” fossem o motivo de briga. Minha mãe acreditava que as mulheres do chá falavam pelas suas costas porque as mulheres da rua tomavam o dinheiro do meu pai. É um ciclo de auto-ódio que chega para nós pelo cordão umbilical. Como dois funcionários de empresas concorrentes que brigam, disputam qual empresa é a melhor e não percebem que estão servindo ao mesmo senhor.
Para amenizar a situação, meu pai fazia promessas. Se minha mãe dizia que queria viajar, que gostaria de sua companhia para comprar algo para a casa, a resposta era quase sempre um “um dia, querida, nós vamos” ou “eu te levo lá”. Quando pensava em partir, o som daquelas palavras a perturbava, e ela ficava.
Toda a força que ela poderia ter encontrado para ser seu próprio guia perdia-se naquela esperança. Cada remo jogado ao mar, cada não saída do porto, cada voo cancelado. Tudo por causa de um “eu te levo lá”. O que ela não lembrava é que, na mesma frase, havia sempre o complemento “vou comprar cerveja”. “Eu te levo lá, mas agora vou comprar cerveja”. A importância à frase quem deu foi ela, foi ela que transformou em sonho palavras corriqueiras ditas num dia quente e fez delas um compromisso firmado para a vida inteira. Mas o que ela podia fazer? “Ruim com ele, pior sem ele”. Uma vida da eterna espera, da crença no homem que pode ser mudado por amor.
Entre as muitas coisas que minha mãe me ensinou, algumas talvez não tenham sido intencionais. Desde muito cedo, eu sabia que não queria viver um casamento como o dos meus pais. Não queria gritos, brigas, o casamento como expressão hierárquica do amor. Nunca quis amar em orações subordinadas. Penso que um pouco do meu horror ao serviço doméstico tem a ver com o que vi dentro de casa. Eu não queria ter que fazer jantar todos os dias e, em algumas noites, esperar por alguém que não vem. Passar e engomar camisas, saber o que é vinco de uma calça de linho e gastar horas da minha vida com isso. Tomei tamanha ojeriza das tarefas ligadas ao lar que por muito tempo neguei que gostava de cuidar de plantas e fazer coisas que foram determinadas como femininas. Eu tinha pavor de ser “mulherzinha”, de precisar conversar sobre frivolidades. Com o tempo percebi que o problema não eram as coisas ditas femininas, mas sim a fixação nesse lugar, ou melhor, a hierarquização dessas tarefas — o fato de as “coisas de mulher” serem consideradas menores e menos valorizadas socialmente, quando, na verdade, são essenciais na vida de todas as pessoas.
A arrogância masculina faz com que se negue ou menospreze tarefas que são fundamentais. Não amo cozinhar ou cuidar da casa, vó, mas cuido para não reproduzir o olhar masculino sobre isso, pois seria desconsiderar o papel fundamental de vocês duas na minha vida. Sigo criticando essa mão que impõe, mas quando penso a partir das referências das deusas iorubá, percebo que há várias formas de ser mulher e mãe, incluindo aquelas que não quiseram maternar. E admiro quem sabe arrumar bem uma casa e cozinhar. E me identifico com Iansã, sem deixar de admirar Oxum.
Meu pai foi um grande incentivador dos meus estudos, mas era minha mãe quem levava eu e meus irmãos para a escola. Foi ela que nos ensinou a pegar ônibus para que pudéssemos ir às nossas atividades. Foi ela quem lavou e engomou nossos uniformes e penteou nossos cabelos de forma impecável para que fôssemos bem arrumados para a escola. Acima de tudo, foi ela quem me ensinou a enfrentar a vida de cabeça erguida. Porque não basta somente incentivar aos estudos, era preciso ter alguém que também incentivasse a andar com a espinha ereta. O racismo poderia ter feito com que eu desistisse de muitas coisas na minha vida, não foi fácil ser a única aluna negra na escola de inglês, a medalhista no campeonato de xadrez; eu poderia ter o conhecimento, mas não ter a coragem. E sendo mulher negra é preciso ter os dois.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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