Faz
tanto tempo que queria ter essa conversa com você, vó. Acho que me
faltava coragem para ir a esse lugar mais profundo, para acessar
memórias que me são tão dolorosas. Desculpe-me, Antônia, por ter
demorado.
Um
dia li um texto lindo que a artista Renata Felinto escreveu numa rede
social. Aquilo me tocou profundamente e sinto que é algo que
gostaria de ter te falado, então reproduzo nesta carta:
Eu
não sei vocês, mas aqui a gente limpa a casa todo dia. todo dia. E
tem umas limpezas que eu tenho certeza que só ocorreriam naquela
faxina de fim de ano. Coisa que talvez a gente nunca limpasse se não
fosse esse contexto de estar 24h em casa e se deparar a todo momento
com aquela situação que te incomoda, independente de ter toc ou
qualquer outro transtorno.
Eu
sei que pra o povo preto tem um agravante. Apesar de todo mundo saber
que a gente sempre limpou das casas grandes aos triplex, tem aquela
coisa de “sou pobre, mas sou limpa”, que não sai da gente assim
como os xingamentos absolutamente infundados de “preta fedida”, e
vira uma neura manter a casa limpíssima, ainda que não receba
ninguém em casa nesse momento. Então ninguém vai reparar e não
vai precisar dizer “desculpa alguma coisa”. Olha amiga, pega o
racismo disfarçado de uma mania de limpeza e coloca no molho, deixa
lá até dissolver. Depois joga no ralo.
Abandona
esses estigmas que nos imprimiram devido a muitas violências
históricas. Varre o chão se estiver sujo e não precisa passar dez
panos com desinfetante ou lavar e esfregar todo dia. Deixar uma
panela pra mais tarde também não é problema.
Fazer
um almoço mais simples nesse domingo também não tem problema.
Almoço de domingo dá um super trabalho! Faz um prato mais simples e
não menos saboroso e temperado de afeto.
Vai
ver um filme. Fica no celular com as pessoas de quem gosta. Arruma as
fotos de família. Separa as roupas que pode doar. Cuida das plantas.
Penteia as crias. Fica de boa.
As
coisas mudaram. O tempo é outro. O Tempo/Troco chegou para nos
ensinar. Se vai trabalhar amanhã na rua, descansa minimamente. Se
vai ficar em casa, descansa também porque tá puxado dentro de casa.
É pra gente mudar a forma de agir e pensar. É pra gente ter cuidado
com a gente. Com nosso interior. Permita-se ver uma coisinha
desarrumada, ser menos pretensiosa na cozinha, estar mais à vontade,
ficar em silêncio. Faça as coisas que as nossas mais velhas não
podiam fazer: tentar respirar. Se não for por você, faz por elas.
Descanse um pouco aê. Vai chegar ninguém não.
A
gente dedica tanto tempo arrumando fora que se esquece de organizar
dentro, dentro da gente. Obs.: se chegar, manda de volta pra casa sem
abrir a porta. Relaxa. São 11h27.
Fui
muito julgada por não saber arrumar a casa e cozinhar como você e
minha mãe. As pessoas me olhavam daquele jeito, como se dissessem
“Essa não puxou a avó”. É, nesse quesito, não. E está tudo
bem.
Sempre
fico triste quando penso que você não teve muitos dias de descanso
na vida, exceto aqueles em que viajava para Aparecida, pois gostava
de visitar o Santuário. Minha mãe também passou a maior parte da
vida trabalhando, mas como nos colocava para ajudá-la em casa, teve
alguns momentos de paz. Eu já parti de outro lugar e, apesar de
trabalhar muito, não perco mais as oportunidades de cuidar de mim —
e acho que fazer isso também é um modo de honrar você.
É
triste perceber que para vocês duas não houve opção, desde cedo
foram empurradas para o trabalho doméstico. Claro que era exagero da
sua filha lavar as paredes da casa toda com cloro e sabão na faxina
de Ano-Novo, mas a questão é: de onde veio essa imposição? Essa
necessidade de se comparar com outras mulheres e dizer que sua casa é
mais limpa, que você é uma mulher de verdade por saber desossar um
frango e manter a casa impecável mesmo com crianças pequenas?
A
verdade é que minha mãe nunca pôde se fazer essa pergunta. E as
horas em que vocês duas passavam falando mal das vizinhas que não
cuidavam da casa direito poderiam ter sido preenchidas com momentos
de autodescobrimento, de prazer. Porém há mãos que condicionam
nossas vidas antes de nascermos, coloca sobre nós um imperativo
categórico de submissão e competição, como se nós só pudéssemos
falar de garfos, toalha de mesa torta, panela que não está
brilhando, criticar arroz papa, da vizinha que risca suas frigideiras
de teflon.
Eu
gostaria que vocês pudessem ter tido mais tempo para olhar para
fora, porém o mundo as converteu, controlou, nem sequer deu chance.
Lembro dos chás de Tupperware em casa que minha mãe oferecia e o
quão tensa ela ficava nos dias que antecediam, se achava que a casa
não estava impecavelmente limpa, se as mulheres convidadas iriam
reparar no rasgo do sofá, na estante da sala riscada por nós. “Não
repara na bagunça”, minha mãe dizia, somente para ouvir como
resposta “Sua casa é incrivelmente arrumada, não sei como você
consegue com quatro crianças!”. E esse era um dos maiores elogios
que minha mãe poderia ouvir. Nunca a elogiaram por sua habilidade de
fazer render comida quando passávamos por um período mais escasso,
do quanto o “colocar mais água no feijão” realmente funcionava
sem perder o gosto delicioso e o tempero que só ela tinha. Sua
admirável habilidade de equilibrar os filhos em uma bicicleta e nos
levar para a escola.
Foram
raras as vezes em que ofereciam ajuda para minha mãe. Ela era vista
como uma mulher forte que dava conta de tudo, mas foram muitas as
vezes em que a vi chorar escondido ou disfarçar as lágrimas
enquanto lavava roupas no tanque. “Desculpe qualquer coisa”, ela
se despedia assim das mulheres do chá. Sempre se desculpando por
tudo, nunca se sentindo plena e completa. Mesmo tendo oferecido um
banquete, seu sentimento era de falta, escassez, incompletude.
As
mulheres do chá não ajudavam muito, pois sempre saíam falando de
alguma coisa naquela competição tóxica. “Fulana saiu dizendo que
seu chá não foi bom, seu apartamento é muito pequeno e ela
precisou ficar em pé.” Essa era uma das falas que mais a
machucava. De fato, nosso apartamento era pequeno e foi motivo de
muitas brigas com meu pai, “que gastava o dinheiro com mulher na
rua”. Se as mulheres do chá saíssem dizendo que a comida não era
boa, ela ficava brava e respondia à altura, pois era extremamente
confiante em seus dotes culinários. Se reclamassem do cheiro do
Varsol, Erani retrucaria dizendo que elas não se preocupavam com
limpeza como ela. Sobre o tamanho do apartamento, porém, ela não
tinha resposta.
Foram
várias as vezes que minha mãe desejou um lugar maior, uma casa mais
confortável, mas meu pai estava ocupado com outras coisas. Ela fez o
que podia para manter a casa o mais confortável possível, embora
soubesse que parte do dinheiro não chegava por causa das ligações
escusas que meu pai recebia de madrugada. Ele era a figura central de
sua raiva, embora “as mulheres da rua” fossem o motivo de briga.
Minha mãe acreditava que as mulheres do chá falavam pelas suas
costas porque as mulheres da rua tomavam o dinheiro do meu pai. É um
ciclo de auto-ódio que chega para nós pelo cordão umbilical. Como
dois funcionários de empresas concorrentes que brigam, disputam qual
empresa é a melhor e não percebem que estão servindo ao mesmo
senhor.
Para
amenizar a situação, meu pai fazia promessas. Se minha mãe dizia
que queria viajar, que gostaria de sua companhia para comprar algo
para a casa, a resposta era quase sempre um “um dia, querida, nós
vamos” ou “eu te levo lá”. Quando pensava em partir, o som
daquelas palavras a perturbava, e ela ficava.
Toda
a força que ela poderia ter encontrado para ser seu próprio guia
perdia-se naquela esperança. Cada remo jogado ao mar, cada não
saída do porto, cada voo cancelado. Tudo por causa de um “eu te
levo lá”. O que ela não lembrava é que, na mesma frase, havia
sempre o complemento “vou comprar cerveja”. “Eu te levo lá,
mas agora vou comprar cerveja”. A importância à frase quem deu
foi ela, foi ela que transformou em sonho palavras corriqueiras ditas
num dia quente e fez delas um compromisso firmado para a vida
inteira. Mas o que ela podia fazer? “Ruim com ele, pior sem ele”.
Uma vida da eterna espera, da crença no homem que pode ser mudado
por amor.
Entre
as muitas coisas que minha mãe me ensinou, algumas talvez não
tenham sido intencionais. Desde muito cedo, eu sabia que não queria
viver um casamento como o dos meus pais. Não queria gritos, brigas,
o casamento como expressão hierárquica do amor. Nunca quis amar em
orações subordinadas. Penso que um pouco do meu horror ao serviço
doméstico tem a ver com o que vi dentro de casa. Eu não queria ter
que fazer jantar todos os dias e, em algumas noites, esperar por
alguém que não vem. Passar e engomar camisas, saber o que é vinco
de uma calça de linho e gastar horas da minha vida com isso. Tomei
tamanha ojeriza das tarefas ligadas ao lar que por muito tempo neguei
que gostava de cuidar de plantas e fazer coisas que foram
determinadas como femininas. Eu tinha pavor de ser “mulherzinha”,
de precisar conversar sobre frivolidades. Com o tempo percebi que o
problema não eram as coisas ditas femininas, mas sim a fixação
nesse lugar, ou melhor, a hierarquização dessas tarefas — o fato
de as “coisas de mulher” serem consideradas menores e menos
valorizadas socialmente, quando, na verdade, são essenciais na vida
de todas as pessoas.
A
arrogância masculina faz com que se negue ou menospreze tarefas que
são fundamentais. Não amo cozinhar ou cuidar da casa, vó, mas
cuido para não reproduzir o olhar masculino sobre isso, pois seria
desconsiderar o papel fundamental de vocês duas na minha vida. Sigo
criticando essa mão que impõe, mas quando penso a partir das
referências das deusas iorubá, percebo que há várias formas de
ser mulher e mãe, incluindo aquelas que não quiseram maternar. E
admiro quem sabe arrumar bem uma casa e cozinhar. E me identifico com
Iansã, sem deixar de admirar Oxum.
Meu
pai foi um grande incentivador dos meus estudos, mas era minha mãe
quem levava eu e meus irmãos para a escola. Foi ela que nos ensinou
a pegar ônibus para que pudéssemos ir às nossas atividades. Foi
ela quem lavou e engomou nossos uniformes e penteou nossos cabelos de
forma impecável para que fôssemos bem arrumados para a escola.
Acima de tudo, foi ela quem me ensinou a enfrentar a vida de cabeça
erguida. Porque não basta somente incentivar aos estudos, era
preciso ter alguém que também incentivasse a andar com a espinha
ereta. O racismo poderia ter feito com que eu desistisse de muitas
coisas na minha vida, não foi fácil ser a única aluna negra na
escola de inglês, a medalhista no campeonato de xadrez; eu poderia
ter o conhecimento, mas não ter a coragem. E sendo mulher negra é
preciso ter os dois.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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