quarta-feira, 12 de abril de 2023

Shakespeare


Emília era uma bela jovem com quem eu mantinha uma relação amorosa. Não morávamos na mesma casa. O casamento, ou outra coisa parecida, não faz bem aos amantes.
Um dia, Emília estava conversando comigo quando disse, inesperadamente:
Você escreveu que o amor, como a borboleta, tem uma curta vida de esplendor. Nosso amor está acabando?”
Sem esperar a resposta, Emília, que sonhava casar comigo e, como todas as mulheres, ter filhos, perguntou:
Gostaria de ter uma namorada escritora, doutora em Letras?”
As que conheço são feias e chatas. Não possuem, como você, as necessárias virtudes físicas.”
Físicas?”
Do grego physikós”, soletrei a palavra. “As qualidades exteriores e materiais — aspecto, configurações, compleição.”
Emília respondeu:
Você ainda vai encontrar uma.”
É uma profecia?”
Não, uma maldição.”
No dia seguinte, aconteceu o episódio da churrascaria. Emília era vegetariana e eu louco por carne. Pelo menos uma vez por semana jantava sozinho numa churrascaria. A própria Emília sugerira esse arranjo.
Estava devorando uma picanha com farofa quando uma mulher linda se aproximou da minha mesa.
Você não é o Salustiano Gonçalo?”
Ela vai dizer que leu um dos meus livros, pensei. Larguei no prato o pedaço de picanha que ia enfiar na boca e levantei-me.
Fomos apresentados na festa da Carmita, lembra?”
Claro. Na festa da Carmita.”
Está lembrado mesmo? Há uns três ou quatro meses?”
Não, desculpe. Há três ou quatro meses eu ficava bêbado em todas as festas.”
Eu notei.”
Mas agora”, eu disse, olhando fixamente para a mulher, “não esqueço você nunca mais. Só tomo guaraná.”
Soube, na festa da Carmita, que você era especialista em literatura elisabetana e como me doutorei nessa área fui lhe perguntar algo sobre o Webster. Você me respondeu de maneira muito rude.”
Eu estava perplexo. Encontrar uma mulher daquelas, doutora em Letras, numa churrascaria? Que coincidência mais diabólica.
Afinal, consegui falar. “O que foi que eu disse na festa? Já peço desculpas, antes mesmo de saber os detalhes da minha grosseria.”
Você disse: eu quero que o Webster se foda.”
Posso imaginar o choque que você teve.”
Apenas um pouco surpresa, mas achei graça. Quem ficou muito constrangida foi a moça que estava ao seu lado. Haviam dito que você era um pernóstico que gostava de exibir erudição. Um homem pedante é pior do que um bêbado impaciente. O guaraná melhorou o seu pernosticismo?”
Continuou igual. Quer conversar sobre o Webster?” Sentamos, comemos churrasco, e falamos sobre Webster, Shakespeare evidentemente, Marlowe, Peele, Dekker, Ford, Lyly e outros elisabetanos. Ela gostava muito de carne, o que era óbvio, pois a encontrei numa churrascaria, e também era escritora, e, como eu, havia publicado dois livros. Marcamos outro encontro, na churrascaria. A profecia de Emília se realizara.
Emília, ao contrário da doutora em Letras, era muito introvertida, mas a nossa relação era a melhor possível, sob todos os aspectos. Emília era meiga e sua bondade não tinha limites, deixei de beber graças a ela e sentia-me feliz ao seu lado. Mas me apaixonei pela mulher da churrascaria.
Não foi só Emília que sofreu, quando rompemos. Não vou entrar em detalhes, foi tudo muito doloroso para ambos. Quando penso nisso, sinto sempre um aperto no coração.
O nome da escritora doutora em Letras era Lucimar. Passei a me encontrar com ela diariamente. Lucimar era professora numa dessas faculdades de Letras. Eu não era empregado de ninguém, minha situação financeira permitia que eu me dedicasse apenas aos estudos e à literatura.
Uns quinze dias após irmos para a cama, Lucimar sugeriu que morássemos juntos, mas os meus livros não caberiam na sua casa, onde não havia lugar para novas estantes.
Tenho livros até debaixo da cama”, ela disse.
Nunca pensei em morar com nenhuma mulher, mas Lucimar mudou-se para o meu apartamento e eu aceitei a situação. Também não me incomodei com as obras que ela mandou fazer, derrubar uma parede, reformar os banheiros e a cozinha. Nem com a compra de móveis novos, entre os quais uma grande estante de madeira maciça, o que era absolutamente necessário, pois ela também possuía muitos livros, era uma professora de Letras.
Eu gostava muito de conversar e fazer amor com Lucimar. Mas deixei claro para ela que não pretendia me casar ou coisa parecida, isto é, ter filhos, essa mania das mulheres. Odeio bebezinhos.
Estávamos juntos havia alguns meses, quando um dia, ao chegar em casa, encontrei Lucimar sentada no sofá com ar preocupado.
Tudo bem?”, perguntei.
Você leu? Shakespeare foi escolhido o homem do Milênio. Você não odeia essa coisa de o homem disso e o homem daquilo?”
Você prefere a pessoa do ano, como fazem os americanos politicamente corretos?”
A pessoa notável nunca é uma mulher.”
A Musa do Verão nunca é um homem.”
Estou falando sério. Você acha que não podiam escolher uma mulher do milênio? Em mil anos, não houve uma mulher que merecesse essa honraria?”
Bem, acho que transcorridos os próximos mil anos vão eleger certamente a Mulher do Milênio. Quer dizer, a Pessoa do Milênio.”
Estou falando sério.”
Também estou falando sério. Acho isso mesmo. Mas, nesse milênio que passou, não dá para ser uma mulher.”
Então não existe uma escritora, uma cientista, uma artista, uma filósofa, uma humanista, uma santa, uma mulher, enfim, digna do galardão?”
Esse título é uma besteira.”
Mas você gostaria de ser o Escritor do Ano.”
Isso é invenção sua.”
Ouvi você dizer várias vezes que é melhor escritor do que a grande maioria dos escolhidos, muitos dos quais não passam de imbecis rabiscadores de asneiras.”
Eu disse isso?”
Salustiano, eu não esqueço nada. Por isso me doutorei com a nota máxima. Para você, a escolha do Escritor do Ano é sempre produto de uma esperta manipulação da mídia, feita pelo editor e pelo autor.”
Mas não é por ciúme ou inveja que digo isso. Não me interessa esse laurel ordinário.”
Você sofre porque o seu nome nunca aparece nos suplementos literários dos jornais do eixo Rio-São Paulo.”
Apenas comento que os nomes badalados nesses veículos são sempre os mesmos, páginas inteiras são dedicadas aos livrecos lançados por eles.”
Também lamenta nunca ter saído nenhuma notícia sobre a publicação de um livro seu.”
Saiu alguma, sobre os que você escreveu?” Lucimar estava me irritando.
Não.”
Eles estão nas livrarias?”
E os seus, por acaso estão nas livrarias?”
Meu editor diz que eu não sou conhecido, os livreiros só compram livros de autores conhecidos.”
Não será porque você pagou pela edição dos livros e por isso o seu editor não se interessa como devia pela distribuição?”
Está aborrecida comigo porque o Shakespeare foi escolhido o Homem do Milênio, e não a madame de Staël?”
Salustiano, ironia não é o seu forte. Você não acha excessiva essa fúria encomiástica shakespeariana?”
Não. Até me agrada que o nome escolhido seja o de um poeta, num milênio de grandes avanços da ciência e da tecnologia, em que surgiram grandes figuras no ensaísmo e nas artes em geral. Preciso defender o nosso homem para uma professora doutora em literatura elisabetana? Bastam cinco minutos.”
O seu homem. Vai usar que argumentos? Dos autores mais recentes? Os fastidiosos, de Honan? Ou irá me repetir a lengalenga hagiográfica do Bloom, sobre Shakespeare-o-inventor-do humano e sua influência não apenas sobre a literatura, mas sobre a Vida? O homem que modificou o caráter e a personalidade humanas? Maior que Homero, Platão et caetera?”
A palavra homem era proferida por Lucimar como se fosse uma obscenidade repugnante.
Nessa linha.”
Vai me dizer, ainda, que o vocabulário de Shakespeare tem vinte mil palavras enquanto o de Milton, por exemplo, tem apenas seis mil?”
Você sabe que isso é verdade.”
Milton estava cego quando escreveu Paraíso perdido. E inúmeras das vinte mil palavras de Shakespeare são contribuições dos atores, improvisos que, introduzidos nas peças, passaram a fazer parte do texto do homem. Isso também não é uma verdade?”
Concordo.”
Vai citar também autores mais frívolos, como o Brode, e seus estudos sobre Shakespeare e o cinema?”
Está chateada comigo por quê? Você me deu o livro do Brode, me fez assistir a versões cinematográficas com ambientação moderna de Hamlet, de Romeu e Julieta, de Ricardo III, dizendo que eram a prova da incomparável atualidade de Shakespeare, que nenhum outro autor...”
Você está se evadindo do foco da nossa discussão. Madame de Staël... Que golpe baixo.”
Lucimar, você parece um desses detratores furibundos de Shakespeare, felizmente poucos, que o chamam de verborrágico, antifeminista, reacionário, um plagiário que teve a sorte de viver numa época propícia à sua astúcia criativa.”
É isso mesmo. Agora, chega, cansei desse assunto.”
Não vamos brigar por causa de Shakespeare.”
Você não passa de um machista preconceituoso.”
Vocês vão ser as donas deste milênio que está começando.”
Agradeço em nome das mulheres.”
Não está com fome? Vamos comer naquela churrascaria, lembra? Nunca mais voltamos lá.”
Quer me comprar com um pedaço de churrasco?”
Com farofa e outros acompanhamentos.”
Vai à merda. Quem é Emília?”
Sei lá quem é Emília. A do Monteiro Lobato?”
Ontem uma moça veio aqui, queria apanhar um livro. Disse que o nome dela era Emília.”
Não tenho a menor ideia de quem seja.”
Sabe que livro era?”
Não sei do que você está falando.”
Eram os sonetos de Shakespeare.”
É mesmo?”
E você não sabe quem é essa moça? Vem aqui apanhar um livro dela e você não sabe quem é?”
Não estou lembrado desse nome. Conheço um monte de gente. Minha memória não é tão boa quanto a sua, não tirei a nota máxima no meu exame final de doutorado.”
Era uma moça muito bonita, tive a impressão de conhecê-la de algum lugar. Você é amiga do Salustiano?, perguntei, faça o favor de entrar. Ela respondeu que sim, mas que vocês não se veem há algum tempo, que se não fosse incômodo para mim, ela gostaria de apanhar o livro com o qual tinha uma ligação sentimental. Parecia uma pessoa muito romântica, aquela moça. Está calado? O gato comeu a sua língua? Não quer saber o resto da história?”
Lucimar, não estou entendendo...”
Ela entrou e disse, os livros de Shakespeare estão todos juntos, eu posso achar o meu. E foi procurar os sonetos do homem. Mas eu fui mais rápida e achei o livro antes. Tinha uma dedicatória: Para Emília, meu amor para sempre, Salustiano.”
Não existe amor para sempre, o amor tem a vida de uma borboleta...”
Você chama a mulher de meu amor para sempre e não sabe quem ela é?”
Ela levou o livro?”
É isso o que você tem a dizer? Em vez de responder, faz uma pergunta? Além de mentiroso, maquiavélico?”
Quando penso que tudo isso começou porque o Shakespeare foi escolhido o Homem do Milênio...”
Isso apenas ajudou, seu idiota. Jura que não vai se encontrar com essa Emília. Odeio ser enganada.”
Juramentos? Uma doutora em Letras falando em juramentos? E que entidade sagrada eu tomarei como testemunha?”
Sabe de uma coisa, Salustiano Gonçalo?”
Diga.”
Você não passa de um idiota. Seus dois livros são um amontoado de besteiras. Como aqueles a quem critica, você também é um rabiscador de asneiras. O pior aluno do meu curso conhece mais literatura elisabetana do que você.”
Lucimar não mora mais comigo. Levou, junto com os seus livros, uma porção dos meus, os melhores e mais raros. Indenizou-se.
Não arranjei nenhuma nova namorada. Eu pensava constantemente em Emília. Era amor, o que eu sentia por ela. Incrível, só agora eu percebia o que havia perdido. Tentei uma reaproximação. Queria me casar com ela, teria filhos, me tornaria vegetariano, mas Emília nem sequer me deu a oportunidade de lhe dizer isso. A única coisa minha que Emília queria, eram os sonetos de Shakespeare que eu havia lhe dado.
O amor, a vida de uma borboleta ou de uma tartaruga?
Que frase cretina.

Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas

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