[...]
Pela
manhã, o muezim clamou para casas vazias, para que fossem rezar. Saí
para tentar achar um pouco de farinha e ovos, antes que o pão
acabasse. Arrastei os pés na poeira. Estava muito grossa, era como
caminhar na neve. Havia carros incendiados, varais de roupas sujas
penduradas em terraços abandonados, fios elétricos balançando
baixo nas ruas, lojas bombardeadas, prédios de apartamentos com os
telhados explodidos, pilhas de lixo nas ruas. Tudo fedia a morte e
borracha queimada. Ao longe, subia uma fumaça, espiralando para o
céu. Senti a boca seca, as mãos cerradas e trêmulas, encurralado
por aquelas ruas distorcidas. Na terra além, as aldeias estavam
queimadas, pessoas jorrando como um rio para ir embora, as mulheres
apavoradas porque os paramilitares estavam à solta, e elas temiam
ser estupradas. Mas ali, ao meu lado, havia uma roseira damascena
totalmente florida. Quando fechei os olhos e senti o perfume, pude
fingir, por um instante, não ter visto as coisas que tinha visto.
Ao
erguer os olhos do chão, vi que tinha chegado a um posto de
controle. Dois soldados achavam-se no meu caminho. Os dois portavam
metralhadoras. Um deles usava um keffiyeh xadrez. O outro
pegou uma arma na traseira de um caminhão e empurrou-a contra o meu
peito.
– Pegue
– o homem disse.
Tentei
imitar o rosto da minha mulher. Não queria demonstrar qualquer
emoção. Eles me devorariam por isto. O homem empurrou a arma com
mais força contra o meu peito, e eu tropecei, caindo de encontro ao
cascalho.
Ele
jogou a arma no chão, e olhei para cima, vendo os dois homens em pé
sobre mim, e agora o homem com o keffiyeh apontava a arma para
o meu peito. Não consegui manter a calma, e pude me ouvir implorando
pela minha vida, humilhando-me com os joelhos na terra.
– Por
favor – eu dizia –, não é que eu não queira. Sentiria orgulho,
seria o homem mais orgulhoso do mundo em pegar aquela arma em seu
nome, mas minha esposa está doente, gravemente doente, e precisa de
mim para cuidar dela. – Mesmo enquanto eu dizia isto, não achava
que eles se incomodariam. Por que deveriam? Crianças morriam a cada
minuto. Por que eles se preocupariam com minha esposa doente?
– Sou
forte – eu disse – e inteligente. Trabalharei duro para vocês.
Só preciso de alguns dias. É só o que peço.
O
outro homem tocou no ombro do homem com o keffiyeh, e ele
abaixou a arma.
– Da
próxima vez em que a gente te vir – disse o outro homem – ou
você pega uma arma e fica do nosso lado, ou procure alguém para
levar o seu corpo.
Decidi
ir direto para casa. Enquanto andava, percebia uma sombra atrás de
mim, e não tinha certeza se estava sendo seguido, ou se era a minha
mente me pregando peças. Ficava imaginando uma figura encapotada, do
tipo que aparece nos pesadelos infantis, pairando sobre a poeira
atrás de mim. Mas quando eu me virava, não havia ninguém.
Cheguei
em casa e Afra estava sentada na cama de armar, com as costas contra
a parede, de frente para a janela, segurando a romã, girando-a,
sentindo sua carne. Aguçou os ouvidos quando entrei, mas antes que
ela pudesse dizer qualquer coisa, andei pela casa procurando uma
mala, enchendo-a de coisas.
– O
que está acontecendo? – Seus olhos perscrutando a escuridão.
– Vamos
embora.
– Não.
– Se
eu ficar, eles me matam.
Eu
estava na cozinha, enchendo garrafas de plástico com água da
torneira. Embalei uma muda extra de roupas para cada um de nós.
Depois, busquei debaixo da cama os passaportes e o dinheiro guardado.
Afra não tinha conhecimento dele. Era o dinheiro que Mustafá e eu
tínhamos conseguido separar, antes de o negócio fracassar, e eu
também tinha um pouco numa conta particular, que eu esperava ainda
poder acessar depois que partíssemos. Ela dizia alguma coisa do
outro cômodo. Palavras de protesto. Também embalei o passaporte de
Sami; não conseguiria deixá-lo aqui. Depois, voltei para a sala com
nossas malas.
– Fui
parado pelo exército. Eles puseram uma arma no meu peito – eu
disse.
– Você
está mentindo. Por que isto nunca aconteceu antes?
– Vai
ver que antes ainda havia homens mais jovens por aqui. Eles não me
notavam. Não tinham motivo para isso. Nós somos os únicos idiotas
que sobraram.
– Eu
não vou.
– Eles
vão me matar.
– Que
seja.
– Eu
disse a eles que precisava de alguns dias para cuidar de você. Eles
concordaram em me dar só alguns dias. Se me virem de novo e eu não
me juntar a eles, vão me matar. Disseram que eu deveria arrumar
alguém para levar o meu corpo.
Quando
eu disse isto, seus olhos arregalaram-se e houve um medo súbito em
seu rosto, um medo real. Perante a ideia de me perder, talvez
pensando no meu cadáver, ela criou vida e levantou-se. Apalpou o
caminho pelo corredor e eu fui atrás, sem fôlego, e então ela se
deitou na cama e fechou os olhos. Tentei argumentar com ela, mas ela
ficou ali deitada como um gato morto, com seu abaya preto e o hijab
preto, e aquele rosto pétreo que eu agora desprezava.
Sentei-me
na cama de Sami e olhei pela janela; vi o céu cinzento, um cinza
metálico, e não havia passarinhos. Fiquei ali o dia todo, a noite
toda, até ser engolido pela escuridão. Lembrei-me de como as
abelhas operárias viajavam para encontrar novas flores e néctar, e
depois voltavam para contar às outras abelhas. A abelha sacudia o
corpo, o ângulo da sua dança em relação ao favo contava às
outras abelhas a direção das flores em relação ao sol. Desejei
que houvesse alguém para me guiar, para me dizer o que fazer e que
caminho seguir, mas me senti completamente só.
Pouco
antes da meia-noite, deitei-me ao lado de Afra. Ela não tinha se
movido um centímetro. Eu tinha a fotografia e a carta debaixo do meu
travesseiro. E dessa vez, quando acordei no meio da noite, vi que ela
estava de frente para mim, sussurrando meu nome.
– O
quê? – perguntei.
– Escute.
Na
frente da casa, passos e vozes masculinas, depois uma risada, uma
risada do fundo da garganta.
– O
que eles estão fazendo? – ela perguntou.
Saí
da cama e fui em silêncio até o lado dela, peguei na sua mão
ajudando-a a se levantar, levando-a até e porta dos fundos e para o
jardim. Ela seguiu sem fazer perguntas, sem hesitação. Bati o pé
no chão para encontrar o telhado de metal, depois o deslizei para o
lado e ajudei-a a se sentar ao lado da abertura, com as pernas sobre
a beirada, de modo a eu poder entrar primeiro e descê-la. Em
seguida, puxei o telhado sobre nós.
Nossos
pés afundaram em centímetros de água, cheia de lagartos e insetos
que tinham feito do espaço sua casa. Eu tinha cavado aquele
esconderijo no ano anterior. Afra passou os braços à minha volta e
afundou o rosto na curva do meu pescoço. Ficamos assim no escuro, os
dois cegos então, naquela cova feita para dois. No silêncio
absoluto, o único som restante na terra era a sua respiração. E
talvez ela estivesse certa. Talvez devêssemos ter morrido assim, e
ninguém precisaria pegar os nossos corpos. Então uma criatura
mexeu-se por lá, junto à minha orelha esquerda, e acima de nós, e
do lado de fora coisas moveram-se, quebraram-se e estalaram. Agora,
os homens deviam ter entrado na casa. Eu podia senti-la tremendo
contra mim.
– Sabe
de uma coisa, Afra? – eu disse.
– O
quê?
– Preciso
peidar.
Houve
um segundo de silêncio, e então ela começou a rir. Riu e riu junto
ao meu pescoço. Foi uma risada silenciosa, mas todo o seu corpo
sacudiu-se com ela, e apertei-a mais contra mim, pensando que sua
risada era a coisa mais linda que restava na terra. Mas por um
instante não consegui dizer, de fato, se ela ainda estava rindo ou
se tinha começado a chorar, até sentir meu pescoço molhado de
lágrimas. E então sua respiração suavizou-se e ela adormeceu,
como se aquele buraco negro fosse o único lugar onde se sentisse
segura. Onde a escuridão interior encontrava a escuridão exterior.
Por
um tempinho, eu soube o que significava estar cego. E então, as
lembranças afloraram, como sonhos, muito ricas em cores. A vida
antes da guerra. Afra num vestido verde, segurando Sami pela mão;
ele tinha acabado de começar a andar e bamboleava ao lado dela,
apontando para um avião que cruzava o frio céu azul. Estávamos
indo para algum lugar. Era verão, e ela caminhava na frente, com
suas irmãs. Ola usava amarelo. Zeinah, rosa. Zeinah agitava as mãos
em volta, enquanto falava, como era seu costume. As outras duas
disseram “Oh!”, em uníssono em reação a algo que ela dizia.
Havia um homem ao meu lado, meu tio. Pude ver sua bengala, escutar
seu tum-tum-tum no cimento. Ele me contava sobre seu trabalho; tinha
um café na Velha Damasco, e queria se aposentar agora, mas o filho
não queria assumir o negócio, rapaz preguiçoso e ingrato...
Naquele
momento, Afra ergueu Sami até o quadril, depois se virou para trás
e sorriu, e seus olhos captaram a luz e viraram água. E então, tudo
desvaneceu. Onde estavam todas aquelas pessoas, agora?
Pisquei
no escuro. Estava impenetrável. Afra suspirou em seu sono. Perguntei
a mim mesmo se deveria quebrar seu pescoço, acabar com a sua
desgraça, dar-lhe a paz que ela queria. O túmulo de Sami estava
nesse jardim. Ela ficaria perto dele. Não precisaria deixá-lo. Ela
deixaria de se torturar.
– Nuri
– ela disse.
– Hã?
– Eu
te amo.
Não
respondi, e suas palavras tornaram-se parte da escuridão, deixei que
penetrassem no solo, na terra alagada.
– Eles
vão nos matar? – ela perguntou, com um leve tremor na voz.
– Você
está com medo.
– Não.
Estamos muito perto disso, agora.
Então,
ouviram-se passos bem próximos, e as vozes ficaram mais altas.
– Eu
falei para você – um homem disse –, eu falei para não deixar
ele ir.
Prendi
a respiração e abracei-a com força para ela não se mexer. Pensei
em cobrir sua boca com a mão. Não confiava que ela não falaria,
não gritaria. Agora era sua escolha: viver ou morrer. Acima, houve
movimento, confusão, resmungos, e então, finalmente, os passos
afastaram-se. Só depois que Afra soltou a respiração foi que
percebi que ela ainda tinha um instinto de vida.
Tinha
amanhecido, quando decidi que os homens deviam ter ido embora, fazia
algumas horas que não se ouvia um som, e a luz infiltrava-se pelas
beiradas do teto de metal, iluminando paredes enlameadas. Abri o
telhado e vi o céu, amplo e incólume, o azul de sonhos. Afra estava
acordada mas em silêncio, perdida em seu mundo escuro.
Quando
entramos em casa, desejei também ser cego. A sala de visitas estava
destruída, e as paredes cobertas de grafites. Vencemos ou morremos.
– Nuri?
Não
respondi.
– Nuri...
O que eles fizeram?
Vi-a
parada em meio às coisas quebradas, uma figura fantasmagórica e
escura, ereta, imóvel e cega.
Mas
permaneci em silêncio e ela deu um passo à frente, ajoelhou-se,
tateando com as mãos. Do chão, pegou um enfeite quebrado: um
pássaro de cristal com as palavras 99 nomes para Alá
inscritas em ouro numa asa aberta. Presente de casamento da avó.
Girou-o nas mãos, como tinha feito com a romã, sentindo suas
linhas, suas curvas. Depois, baixinho, como se fosse a voz de uma
criança ressuscitada de anos atrás, começou a recitar a lista
gravada em sua mente:
– O
que estabelece a ordem, o conquistador, o que tudo sabe, o que tudo
vê, o que tudo cura, o doador da vida, o tomador da vida…
– Afra!
– eu disse.
Ela
pousou o enfeite e inclinou-se à frente, tateando o espaço adiante
com os dedos. Então, pegou um carrinho de brinquedo. Eu tinha
guardado todos em um armário, algumas semanas depois da morte de
Sami. Agora, não tolerava olhar para eles, quebrados e espalhados
pelo chão. Havia até um pote de chocolate ali espalhado, a
guloseima preferida de Sami, rolando para longe de Afra, e parando ao
pé da cadeira. A essa altura devia estar embolorado, mas eu o tinha
guardado no armário, junto com todas as coisas que me lembravam ele.
Ao perceber que tinha um carrinho de brinquedo na mão, Afra largou-o
imediatamente, e virou a cabeça para mim, conseguindo, de algum
modo, encarar meus olhos com os dela.
– Vou-me
embora – eu disse –, quer você venha ou não.
Deixei-a
ali e fui buscar nossas malas. Achei-as no quarto, intocadas,
pendurei-as nos ombros e voltei para a sala, encontrando-a em pé, no
meio do cômodo. Em suas mãos abertas, ela tinha peças coloridas de
Lego, remanescentes de uma casa construída por Sami, a casa em que
viveríamos ao chegarmos à Inglaterra, ele havia dito, depois de
concordar que seria bom ir.
– Lá
não vai ter bombas – ele havia dito –, e as casas não vão se
quebrar, como acontece com estas.
Eu
não tinha certeza se ele estava se referindo às casas de Lego ou às
casas de verdade, e fiquei triste ao perceber que Sami tinha nascido
num mundo onde tudo poderia se quebrar. Casas de verdade
desmoronavam, desintegravam-se. Nada era sólido no mundo de Sami. E
mesmo assim, de algum modo ele tentava imaginar um lugar onde as
construções não caíam a sua volta. Eu tinha guardado a casa de
Lego a salvo, no armário, com cuidado, para ter certeza de que
estava exatamente como Sami a havia deixado. Até pensei em
desmontá-la e remontá-la com cola, para podermos guardá-la para
sempre.
– Nuri
– Afra disse, rompendo o silêncio. – Para mim basta. Por favor,
leve-me embora daqui.
E
ela ficou ali, com os olhos movendo-se pela sala, como se pudesse ver
tudo.
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
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