A
virtude, assim como o gênio, não se ensina; a ideia que se faz da
virtude é estéril, e só pode servir de instrumento, como as coisas
técnicas em matéria de arte. Esperar que os nossos sistemas de
moral e as nossas éticas possam tornar os homens virtuosos, nobres e
santos é tão insensato como imaginar que os nossos tratados sobre
estética possam produzir poetas, escultores, pintores e músicos.
Não
há senão três causas fundamentais das ações humanas, e nada se
faz sem elas. Temos: a) o egoísmo, que quer o seu próprio bem (não
tem limites); b) a maldade, que deseja o mal de outrem (vai até a
extrema crueldade); c) a piedade, que quer o bem de outrem (vai até
a generosidade, à grandeza de alma). Toda ação humana depende de
uma dessas três causas, ou mesmo de duas.
I
– O Egoísmo
O
egoísmo inspira um tal horror que inventamos a delicadeza para
ocultá-lo como uma parte vergonhosa; mas ele rasga todos os véus, e
trai-se em todo encontro em que nos esforçamos instintivamente por
utilizar cada novo conhecimento a fim de servir a alguns dos nossos
inúmeros projetos. O nosso primeiro pensamento é sempre saber se
tal homem nos pode ser útil para alguma coisa. Se não nos pode
servir, já não tem valor algum… Suspeitamos a tal ponto desse
sentimento em nossos semelhantes que, se nos suceder pedir-lhes um
conselho ou um esclarecimento, perdemos toda a confiança no que nos
disserem se supusermos, por um momento, que têm aí um interesse
qualquer; porque pensamos imediatamente que o nosso conselheiro quer
servir-se de nós como de um instrumento; e atribuímos o seu parecer
não à prudência da sua razão, mas às suas intenções secretas,
por muito grande que seja a primeira, por muito fracas e distantes
que sejam as segundas.
O
egoísmo, por natureza, não tem limites; o homem só tem um desejo
absoluto, conservar a existência, eximir-se de qualquer dor, de
qualquer privação; o que almeja é a maior soma possível de
bem-estar, é a posse de todos os gozos de que é capaz de imaginar,
e que se esforça por variar e desenvolver incessantemente. Qualquer
obstáculo que surja entre o seu egoísmo e as suas cobiças
excita-lhe a raiva, a cólera, o ódio: é um inimigo que é preciso
esmagar. Desejaria tanto quanto possível gozar tudo, possuir tudo;
não o podendo, almejaria pelo menos dominar tudo: “Tudo para mim,
nada para os outros”, é a sua divisa. O egoísmo é colossal, o
universo não pode contê-lo. Porque se dessem a cada um a escolha
entre o aniquilamento do universo e a sua própria perda, é ocioso
dizer qual a resposta.
Cada
um considera-se o centro do mundo, açambarca tudo, até as próprias
agitações dos impérios se consideram primeiro do ponto de vista do
interesse de cada um, por muito ínfimo e distante que possa estar.
Haverá contraste mais surpreendente? De um lado, esse interesse
superior, exclusivo, que cada um tem por si mesmo; e, do outro, esse
olhar indiferente que lança a todos os homens. Chega a ser uma coisa
cômica, essa convicção de tanta gente procedendo como se só eles
tivessem uma existência real, e os seus semelhantes fossem meras
sombras, puros fantasmas.
Para
pintar de um traço a enormidade do egoísmo numa hipérbole
empolgante, cheguei a isto: Muita gente seria capaz de matar um homem
para se apoderar da gordura do morto e untar com ela as botas. Só me
resta um escrúpulo: será realmente uma hipérbole?
O
Estado, essa obra-prima de egoísmo inteligente e raciocinado, esse
total de todos os egoísmos individuais, colocou os direitos de cada
um nas mãos de um poder infinitamente superior ao poder do
indivíduo, e que o obriga a respeitar os direitos dos outros. É
assim que são lançados na sombra o egoísmo desmedido de quase
todos, a maldade de muitos, a ferocidade de alguns; a sujeição
mantém-nos acorrentados, daí resulta uma aparência enganadora. Mas
o poder protetor do Estado encontra-se, como às vezes sucede,
sofismado ou paralisado, vê-se surgir à luz do dia os apetites
insaciáveis, a sórdida avareza, a secreta falsidade, a maldade, a
perfídia dos homens, e então recuamos, gritamos, como se
esbarrássemos com um monstro ainda desconhecido; contudo, sem a
sujeição das leis, sem a necessidade que há da honra e da
consideração, todas essas paixões triunfariam constantemente.
É
necessário ler as coisas célebres, a história dos tempos da
anarquia, para saber o que há no íntimo do homem, o que vale a sua
moralidade! Esses milhares de entes que temos à vista, obrigando-se
mutuamente a respeitar a paz, são outros tantos tigres e lobos, que
uma forte mordaça impede de morder. Suponha-se a força pública
suprimida, a mordaça tirada, recuar-se-ia de medo ante o espetáculo
que se teria à vista, e que todos imaginam facilmente; não é isto
confessar quão pouco os homens se fundam na religião, na
consciência, na moral, seja qual for a sua base? Todavia, é então
que, em face dos sentimentos egoístas, antimorais, entregues a eles
mesmos, se veria igualmente o verdadeiro instinto moral do homem
revelar-se, desenvolver o seu poder, e mostrar o que pode fazer; e
ver-se-ia que há tanta variedade nos caracteres morais como há
variedades de inteligência, o que não é dizer pouco.
Tem
a consciência origem na natureza? Pode-se duvidar. Pelo menos, há
também uma consciência bastarda, conscientia spuria, que se
confunde frequentemente com a verdadeira. A angústia e o
arrependimento causados pelos nossos atos não são muitas vezes
outra coisa senão receio das consequências. A violação de certas
regras exteriores, arbitrárias e mesmo ridículas, desperta
escrúpulos perfeitamente análogos aos remorsos de consciência. É
por esse motivo que certos judeus ficarão obsediados com a ideia de
terem fumado o cachimbo em sua casa ao sábado, contrariamente ao
preceito de Moisés, capítulo XXXV, parágrafo 3º: “não se
acenderá o lume no dia de sábado em vossas casas”. Certo fidalgo,
certo oficial, não se consola por haver faltado numa ocasião
qualquer às regras desse código dos loucos, que se chama ponto de
honra, de tal modo que mais de um, não lhe sendo possível manter a
sua palavra ou satisfazer as exigências do código da honra, deu um
tiro nos miolos (conheço exemplos). Todavia, esse mesmo homem
violará todos os dias, com a maior facilidade, a sua palavra,
contanto que não tenha acrescentado este termo fatídico, este
Schiboleth: pela honra.
Em
geral, uma inconsequência, uma imprevidência, qualquer ato
contrário aos nossos projetos, aos nossos princípios, às nossas
convenções, seja de que natureza forem, e mesmo qualquer
indiscrição, qualquer imperícia, qualquer grosseria, deixam após
elas um verme que nos rói em silêncio, um espinho enterrado no
coração. Muita gente se espantaria se visse os elementos de que se
compõe essa consciência, de que formam uma ideia tão grandiosa:
cerca de 1/5 de medo dos homens; 1/5 de temores religiosos; 1/5 de
preconceitos; 1/5 de vaidade; 1/5 de hábito; tanto valeria dizer
como o inglês: I cannot afford to keep a conscience:
Não sou assaz rico para ter o luxo de uma consciência.
Embora
os princípios e a razão abstrata não sejam de modo algum a origem
primitiva ou o primeiro fundamento da moralidade, são contudo
indispensáveis à vida moral; é como um reservatório alimentado
pela fonte de toda a moralidade, mas que não corre a todo instante,
que se conserva, e no momento útil pode espalhar-se onde se torna
necessário… Sem princípios firmes, os instintos antimorais, uma
vez postos em movimento pelas expressões exteriores, dominar-nos-iam
imperiosamente. Manter a firmeza dos princípios, segui-los a
despeito dos motivos opostos que nos solicitam, é o que se chama ser
senhor de si.
Os
atos e o procedimento de um indivíduo e de um povo podem ser
modificados pelos dogmas, pelo exemplo, e pelo hábito; mas os atos
considerados em si próprios são apenas imagens vãs, é a
disposição do espírito que impele a praticá-los, que lhes dá uma
importância moral. Esta pode conservar-se absolutamente a mesma,
embora tenha manifestações exteriores completamente diferentes. Com
um grau igual de maldade, um pode morrer no cadafalso, e outro acabar
o mais sossegadamente possível no meio dos seus. Pode o mesmo grau
de maldade exprimir-se num povo por meio de atos grosseiros, mortes,
selvageria, num outro, suavemente e em miniatura, por intrigas da
corte, opressões e velhacarias sutis de toda espécie; o fundo das
coisas é o mesmo. Poder-se-ia imaginar um Estado perfeito, ou mesmo,
talvez, um dogma inspirando uma fé absoluta nas recompensas e nos
castigos depois da morte, que lograsse evitar todos os crimes:
politicamente seria muito, moralmente não se ganharia coisa alguma,
só os atos seriam acorrentados e não a vontade. Os atos poderiam
ser corretos, a vontade permaneceria pervertida.
Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo
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