sábado, 15 de abril de 2023

A Moral

A virtude, assim como o gênio, não se ensina; a ideia que se faz da virtude é estéril, e só pode servir de instrumento, como as coisas técnicas em matéria de arte. Esperar que os nossos sistemas de moral e as nossas éticas possam tornar os homens virtuosos, nobres e santos é tão insensato como imaginar que os nossos tratados sobre estética possam produzir poetas, escultores, pintores e músicos.
Não há senão três causas fundamentais das ações humanas, e nada se faz sem elas. Temos: a) o egoísmo, que quer o seu próprio bem (não tem limites); b) a maldade, que deseja o mal de outrem (vai até a extrema crueldade); c) a piedade, que quer o bem de outrem (vai até a generosidade, à grandeza de alma). Toda ação humana depende de uma dessas três causas, ou mesmo de duas.

I – O Egoísmo

O egoísmo inspira um tal horror que inventamos a delicadeza para ocultá-lo como uma parte vergonhosa; mas ele rasga todos os véus, e trai-se em todo encontro em que nos esforçamos instintivamente por utilizar cada novo conhecimento a fim de servir a alguns dos nossos inúmeros projetos. O nosso primeiro pensamento é sempre saber se tal homem nos pode ser útil para alguma coisa. Se não nos pode servir, já não tem valor algum… Suspeitamos a tal ponto desse sentimento em nossos semelhantes que, se nos suceder pedir-lhes um conselho ou um esclarecimento, perdemos toda a confiança no que nos disserem se supusermos, por um momento, que têm aí um interesse qualquer; porque pensamos imediatamente que o nosso conselheiro quer servir-se de nós como de um instrumento; e atribuímos o seu parecer não à prudência da sua razão, mas às suas intenções secretas, por muito grande que seja a primeira, por muito fracas e distantes que sejam as segundas.
O egoísmo, por natureza, não tem limites; o homem só tem um desejo absoluto, conservar a existência, eximir-se de qualquer dor, de qualquer privação; o que almeja é a maior soma possível de bem-estar, é a posse de todos os gozos de que é capaz de imaginar, e que se esforça por variar e desenvolver incessantemente. Qualquer obstáculo que surja entre o seu egoísmo e as suas cobiças excita-lhe a raiva, a cólera, o ódio: é um inimigo que é preciso esmagar. Desejaria tanto quanto possível gozar tudo, possuir tudo; não o podendo, almejaria pelo menos dominar tudo: “Tudo para mim, nada para os outros”, é a sua divisa. O egoísmo é colossal, o universo não pode contê-lo. Porque se dessem a cada um a escolha entre o aniquilamento do universo e a sua própria perda, é ocioso dizer qual a resposta.
Cada um considera-se o centro do mundo, açambarca tudo, até as próprias agitações dos impérios se consideram primeiro do ponto de vista do interesse de cada um, por muito ínfimo e distante que possa estar. Haverá contraste mais surpreendente? De um lado, esse interesse superior, exclusivo, que cada um tem por si mesmo; e, do outro, esse olhar indiferente que lança a todos os homens. Chega a ser uma coisa cômica, essa convicção de tanta gente procedendo como se só eles tivessem uma existência real, e os seus semelhantes fossem meras sombras, puros fantasmas.
Para pintar de um traço a enormidade do egoísmo numa hipérbole empolgante, cheguei a isto: Muita gente seria capaz de matar um homem para se apoderar da gordura do morto e untar com ela as botas. Só me resta um escrúpulo: será realmente uma hipérbole?
O Estado, essa obra-prima de egoísmo inteligente e raciocinado, esse total de todos os egoísmos individuais, colocou os direitos de cada um nas mãos de um poder infinitamente superior ao poder do indivíduo, e que o obriga a respeitar os direitos dos outros. É assim que são lançados na sombra o egoísmo desmedido de quase todos, a maldade de muitos, a ferocidade de alguns; a sujeição mantém-nos acorrentados, daí resulta uma aparência enganadora. Mas o poder protetor do Estado encontra-se, como às vezes sucede, sofismado ou paralisado, vê-se surgir à luz do dia os apetites insaciáveis, a sórdida avareza, a secreta falsidade, a maldade, a perfídia dos homens, e então recuamos, gritamos, como se esbarrássemos com um monstro ainda desconhecido; contudo, sem a sujeição das leis, sem a necessidade que há da honra e da consideração, todas essas paixões triunfariam constantemente.
É necessário ler as coisas célebres, a história dos tempos da anarquia, para saber o que há no íntimo do homem, o que vale a sua moralidade! Esses milhares de entes que temos à vista, obrigando-se mutuamente a respeitar a paz, são outros tantos tigres e lobos, que uma forte mordaça impede de morder. Suponha-se a força pública suprimida, a mordaça tirada, recuar-se-ia de medo ante o espetáculo que se teria à vista, e que todos imaginam facilmente; não é isto confessar quão pouco os homens se fundam na religião, na consciência, na moral, seja qual for a sua base? Todavia, é então que, em face dos sentimentos egoístas, antimorais, entregues a eles mesmos, se veria igualmente o verdadeiro instinto moral do homem revelar-se, desenvolver o seu poder, e mostrar o que pode fazer; e ver-se-ia que há tanta variedade nos caracteres morais como há variedades de inteligência, o que não é dizer pouco.
Tem a consciência origem na natureza? Pode-se duvidar. Pelo menos, há também uma consciência bastarda, conscientia spuria, que se confunde frequentemente com a verdadeira. A angústia e o arrependimento causados pelos nossos atos não são muitas vezes outra coisa senão receio das consequências. A violação de certas regras exteriores, arbitrárias e mesmo ridículas, desperta escrúpulos perfeitamente análogos aos remorsos de consciência. É por esse motivo que certos judeus ficarão obsediados com a ideia de terem fumado o cachimbo em sua casa ao sábado, contrariamente ao preceito de Moisés, capítulo XXXV, parágrafo 3º: “não se acenderá o lume no dia de sábado em vossas casas”. Certo fidalgo, certo oficial, não se consola por haver faltado numa ocasião qualquer às regras desse código dos loucos, que se chama ponto de honra, de tal modo que mais de um, não lhe sendo possível manter a sua palavra ou satisfazer as exigências do código da honra, deu um tiro nos miolos (conheço exemplos). Todavia, esse mesmo homem violará todos os dias, com a maior facilidade, a sua palavra, contanto que não tenha acrescentado este termo fatídico, este Schiboleth: pela honra.
Em geral, uma inconsequência, uma imprevidência, qualquer ato contrário aos nossos projetos, aos nossos princípios, às nossas convenções, seja de que natureza forem, e mesmo qualquer indiscrição, qualquer imperícia, qualquer grosseria, deixam após elas um verme que nos rói em silêncio, um espinho enterrado no coração. Muita gente se espantaria se visse os elementos de que se compõe essa consciência, de que formam uma ideia tão grandiosa: cerca de 1/5 de medo dos homens; 1/5 de temores religiosos; 1/5 de preconceitos; 1/5 de vaidade; 1/5 de hábito; tanto valeria dizer como o inglês: I cannot afford to keep a conscience: Não sou assaz rico para ter o luxo de uma consciência.
Embora os princípios e a razão abstrata não sejam de modo algum a origem primitiva ou o primeiro fundamento da moralidade, são contudo indispensáveis à vida moral; é como um reservatório alimentado pela fonte de toda a moralidade, mas que não corre a todo instante, que se conserva, e no momento útil pode espalhar-se onde se torna necessário… Sem princípios firmes, os instintos antimorais, uma vez postos em movimento pelas expressões exteriores, dominar-nos-iam imperiosamente. Manter a firmeza dos princípios, segui-los a despeito dos motivos opostos que nos solicitam, é o que se chama ser senhor de si.
Os atos e o procedimento de um indivíduo e de um povo podem ser modificados pelos dogmas, pelo exemplo, e pelo hábito; mas os atos considerados em si próprios são apenas imagens vãs, é a disposição do espírito que impele a praticá-los, que lhes dá uma importância moral. Esta pode conservar-se absolutamente a mesma, embora tenha manifestações exteriores completamente diferentes. Com um grau igual de maldade, um pode morrer no cadafalso, e outro acabar o mais sossegadamente possível no meio dos seus. Pode o mesmo grau de maldade exprimir-se num povo por meio de atos grosseiros, mortes, selvageria, num outro, suavemente e em miniatura, por intrigas da corte, opressões e velhacarias sutis de toda espécie; o fundo das coisas é o mesmo. Poder-se-ia imaginar um Estado perfeito, ou mesmo, talvez, um dogma inspirando uma fé absoluta nas recompensas e nos castigos depois da morte, que lograsse evitar todos os crimes: politicamente seria muito, moralmente não se ganharia coisa alguma, só os atos seriam acorrentados e não a vontade. Os atos poderiam ser corretos, a vontade permaneceria pervertida.

Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo

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