A
assistente social diz que está aqui para nos ajudar. Seu nome é
Lucy Fisher, e ela parece impressionada que eu fale inglês tão bem.
Conto-lhe sobre meu trabalho na Síria, sobre as abelhas e as
colônias, mas percebo que ela, na verdade, não me ouve. Está
preocupada com os papéis a sua frente.
Afra
nem ao menos vira o rosto para ela. Se você não soubesse que ela
estava cega, pensaria que olhava pela janela. Hoje tem um pouco de
sol, e ele se reflete das suas íris, o que faz com que pareçam
água. As mãos dela estão entrelaçadas sobre a mesa da cozinha, e
os lábios, cerrados. Ela entende um pouco de inglês, o suficiente
para compreender, mas não fala com ninguém, além de mim. A única
outra pessoa com quem a escutei falando foi Angeliki, cujos seios
vazavam leite. Eu me pergunto se ela conseguiu encontrar uma maneira
de sair daquela mata.
– Que
tal as instalações, sr. e sra. Ibrahim? – Lucy Fisher, com seus
grandes olhos azuis e os óculos com armação prateada, consulta
seus papéis, como se a resposta a sua pergunta estivesse neles.
Esforço-me para ver sobre o que o marroquino falava.
Ela
olha para mim agora, e seu rosto irradia cordialidade.
– São
muito limpas e seguras – digo –, em comparação a outros
lugares. – Não conto a ela sobre esses outros lugares, e
certamente não conto sobre os camundongos e as baratas em nosso
quarto. Temo parecer ingratidão.
Ela
não faz muitas perguntas, mas explica que logo seremos entrevistados
por um agente da imigração. Empurra os óculos para o alto do nariz
e me garante, num tom suave e preciso, que assim que recebermos a
documentação probatória do nosso pedido de asilo, Afra poderá
consultar um médico sobre a dor em seus olhos. Ela olha para Afra e
noto que as mãos de Lucy Fisher estão entrecruzadas a sua frente
exatamente da mesma maneira que minha esposa. Tem algo nisso que me
parece estranho. Então, ela me passa um maço de papéis. Um pacote
do Ministério do Interior: informação sobre pedido de asilo,
elegibilidade, observações sobre seleção, observações sobre o
processo de entrevista. Dou uma olhada e ela espera, paciente,
observando-me.
Para
permanecer no Reino Unido como refugiado é preciso que você não
consiga viver em segurança em nenhuma parte do seu próprio país,
por temer ser perseguido ali.
– Nenhuma
parte? – pergunto. – Vocês nos mandarão de volta para uma
região diferente?
Ela
franze o cenho, puxando uma mecha de cabelo, e seus lábios se cerram
como se ela tivesse comido algo horroroso.
– O
que vocês precisam fazer agora – diz – é organizar sua
história. Pensem no que vão dizer ao agente de imigração. Prestem
atenção para que tudo seja claro, coerente e tão objetivo quanto
possível.
– Mas
vocês mandarão a gente de volta para a Turquia ou a Grécia? O que
significa perseguição para vocês? – Digo isto mais alto do que
pretendia, e meu braço começa a latejar. Esfrego a linha grossa da
carne rígida, lembrando-me do gume da faca, e o rosto de Lucy Fisher
fica borrado, minhas mãos tremem. Desabotoo o botão de cima da
minha camisa. Tento manter as mãos quietas.
– Está
quente aqui? – pergunto.
Ela
diz algo que não consigo escutar, só vejo que seus lábios se
movem. Agora, ela está se levantando, e posso sentir Afra se mexendo
na cadeira ao meu lado. Há o som de água correndo. Um rio fluindo.
Mas vejo uma centelha, como a borda de uma faca muito afiada. A mão
de Lucy Fisher girando a torneira, caminhando até mim, colocando o
copo em minhas mãos, e erguendo-o até o meu rosto, como se eu fosse
uma criança. Bebo a água, toda ela, e Lucy Fisher senta-se. Agora,
posso vê-la claramente, e ela parece amedrontada. Afra coloca a mão
na minha perna.
O
céu estala. Está chovendo. Chuva torrencial. Pior ainda do que
Leros, onde a terra estava saturada de chuva e mar. Percebo que ela
falou, escuto sua voz em meio à chuva, escuto a palavra inimigo, e
ela me encara de cenho franzido, seu rosto branco parece afogueado.
– Como
é? – pergunto.
– Eu
disse que estamos aqui para ajudar tanto quanto possível.
– Escutei
a palavra inimigo – digo.
Ela
joga os ombros para trás e aperta os lábios, olha novamente para
Afra, e na centelha de raiva que acende seu rosto e seus olhos,
entendo sobre o que o marroquino estava falando. Mas não é comigo
que ela está zangada; ela não pode realmente me ver.
– Eu
só disse que não sou sua inimiga. – Agora, seu tom de voz é o de
quem se desculpa, ela não deveria ter dito aquilo, escapou, está
sob pressão, noto isso pela maneira com que puxa sua mecha de
cabelo. Mas as palavras ainda ressoam no cômodo, mesmo enquanto ela
junta suas coisas, mesmo enquanto fala com Afra, que agora balança a
cabeça muito de leve para ela, ao menos para reconhecer sua
presença.
– Espero
que esteja bem, sr. Ibrahim – ela diz ao sair.
Seria
bom se eu soubesse quem era meu inimigo.
Mais
tarde, saio para o jardim cimentado e me sento na cadeira sob a
árvore. Lembro-me das abelhas zumbindo, do som de paz, quase consigo
sentir o cheiro do mel, flores de limoeiro e anis, mas isto é,
repentinamente, substituído pelo cheiro oco de cinzas.
Há
um zumbido. Não um som coletivo, como o de milhares de abelhas nos
apiários, mas um único zumbido. No chão, junto aos meus pés, há
uma abelha. Olhando de perto, vejo que ela não possui asas. Estendo
a mão, e ela sobe no meu dedo, indo até a palma; uma mamangaba,
roliça e peluda, pelagem muito macia, com largas faixas de amarelo e
preto e uma longa língua enfiada debaixo do corpo. Agora, ela
caminha nas costas do meu pulso, então a levo para dentro, e me
sento na poltrona, observando-a enquanto ela se aninha na minha mão,
preparando-se para dormir. Na sala de visitas, a proprietária nos
traz chá com leite. Esta noite, está movimentado aqui. A maioria
das mulheres foi para a cama, menos uma, que fala baixinho com um
homem a seu lado, em farsi. Pelo jeito como ela usa seu hijab
solto sobre o cabelo, sei que, provavelmente, é do Afeganistão.
O
marroquino sorve o chá como se fosse a melhor coisa que ele já
provou. Estala os lábios após cada gole. Ocasionalmente, verifica
seu celular, depois fecha seu livro e tamborila nele com a palma da
mão, como se fosse a cabeça de uma criança.
– O
que é isso na sua mão? – ele pergunta.
Estendo
a mão para que ele possa ver a abelha.
– Ela
não tem asas – digo. – Desconfio que tem o vírus da asa
deformada.
– Sabe
– ele diz –, no Marrocos existe uma estrada do mel. Vêm pessoas
do mundo todo para experimentar o nosso mel. Em Agadir, temos
cachoeiras e montanhas cheias de flores que atraem pessoas e abelhas.
Eu me pergunto como são essas abelhas britânicas. – Ele se
inclina mais para perto, para dar uma olhada melhor, ergue a mão
como se estivesse prestes a acariciá-la com o dedo, como se ela
fosse um cachorro minúsculo, mas muda de ideia. – Ela ferroa? –
pergunta.
– É
possível.
Ele
leva a mão para a segurança do seu colo. – O que você vai fazer
com ela?
– Não
posso fazer grande coisa. Vou levá-la de volta lá para fora. Deste
jeito, ela não vai viver muito. Foi banida da colônia por não ter
asas.
Ele
olha para o pátio, através das portas de vidro. Trata-se de um
pequeno quadrado cimentado, com lajotas e uma cerejeira no meio.
Eu
me levanto e encosto o rosto no vidro. São nove horas e o sol está
se pondo. A cerejeira é alta e negra, contra o céu em brasa.
– Agora
tem sol, mas em três minutos vai chover – digo. – As abelhas não
saem na chuva. Elas jamais saem na chuva, e aqui chove setenta por
cento do tempo.
– Acho
que as abelhas inglesas são diferentes – ele diz. Quando me viro
para ele, está novamente sorrindo. Não gosto que ele me ache
divertido.
Há
um banheiro no andar de baixo, e um dos homens foi ocupar o vaso
sanitário. Seu jorro no vaso soa como uma cachoeira.
– Maldito
estrangeiro – diz o marroquino, levantando-se para ir para a cama.
– Ninguém urina em pé. Sente-se!
Saio
para o pátio e coloco a abelha na flor de uma urze junto à cerca.
No
canto da sala há um computador com acesso à internet. Sento-me à
mesa para ver se Mustafá me mandou outra mensagem. Ele deixou a
Síria antes de mim, e andamos trocando mensagens ao longo de nossas
viagens. Está à minha espera no norte da Inglaterra, em Yorkshire.
Lembro-me de como suas palavras me mantiveram em movimento. Onde
há abelhas há flores, e onde há flores há vida nova e esperança.
Vim para cá por causa de Mustafá. Ele é o motivo de Afra e eu
continuarmos em frente até chegarmos ao Reino Unido. Mas agora só
consigo ficar com o olhar fixo no reflexo do meu rosto na tela. Não
quero que Mustafá saiba o que me tornei. Estamos finalmente no mesmo
país, mas se nos encontrarmos, ele verá um homem destruído. Não
acredito que me reconhecerá. Dou as costas para a tela.
Espero
ali até que a sala se esvazie, até que todos os moradores com suas
línguas estrangeiras e maneiras estrangeiras tenham saído, e o
único som seja o do trânsito à distância. Imagino uma colmeia
fervilhando de abelhas amarelas, e que quando elas saem, vão direto
para o céu e para longe, à procura de flores. Tento visualizar a
região além, as estradas, as luzes da rua e o mar.
A
luz do sensor acende-se repentinamente no jardim. De onde estou
sentado na poltrona, de frente para as portas, posso ver uma sombra,
uma coisa pequena e escura, passando rápido pelo pátio. Parece ser
uma raposa. Levanto-me para dar uma olhada, e a luz se apaga. Encosto
o rosto no vidro, mas a coisa é maior do que uma raposa e está em
pé. Ela se move e a luz torna a se acender. É um menino com as
costas viradas para mim. Por um buraco na cerca, ele olha o outro
jardim. Bato com força no vidro, mas ele não se vira. Procuro a
chave e encontro-a pendurada em um prego atrás da cortina. Quando me
aproximo, o menino se vira de frente para mim, como se estivesse a
minha espera, olhando-me com aqueles olhos negros que pedem respostas
para todas as questões do mundo.
– Mohammed
– digo baixinho, para não assustá-lo.
– Tio
Nuri – ele diz –, veja aquele jardim, tem muito verde ali!
Ele
sai de lado para que eu possa dar uma olhada. Está tão escuro que
não consigo ver nenhum verde, apenas as sombras suaves de arbustos e
árvores.
– Como
foi que você me achou? – pergunto, mas ele não responde. Sinto
que preciso ser cauteloso. – Você quer entrar? – Mas ele se
senta no cimento, pernas cruzadas, e volta a espiar pelo buraco.
Sento-me ao seu lado.
– Tem
um litoral aqui – ele diz.
– Eu
sei.
– Não
gosto do mar – ele diz.
– Eu
sei. Eu me lembro.
Ele
está segurando alguma coisa na mão. É branca e posso sentir o
cheiro de limões, mas aqui não tem limões.
– O
que é isso? – pergunto.
– Uma
flor.
– Onde
você a conseguiu?
Abro
a mão e ele a coloca na minha palma. Diz que a colheu no limoeiro em
Alepo.
[…]
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
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