segunda-feira, 13 de março de 2023

O homem que escutava as abelhas | 2

A assistente social diz que está aqui para nos ajudar. Seu nome é Lucy Fisher, e ela parece impressionada que eu fale inglês tão bem. Conto-lhe sobre meu trabalho na Síria, sobre as abelhas e as colônias, mas percebo que ela, na verdade, não me ouve. Está preocupada com os papéis a sua frente.
Afra nem ao menos vira o rosto para ela. Se você não soubesse que ela estava cega, pensaria que olhava pela janela. Hoje tem um pouco de sol, e ele se reflete das suas íris, o que faz com que pareçam água. As mãos dela estão entrelaçadas sobre a mesa da cozinha, e os lábios, cerrados. Ela entende um pouco de inglês, o suficiente para compreender, mas não fala com ninguém, além de mim. A única outra pessoa com quem a escutei falando foi Angeliki, cujos seios vazavam leite. Eu me pergunto se ela conseguiu encontrar uma maneira de sair daquela mata.
Que tal as instalações, sr. e sra. Ibrahim? – Lucy Fisher, com seus grandes olhos azuis e os óculos com armação prateada, consulta seus papéis, como se a resposta a sua pergunta estivesse neles. Esforço-me para ver sobre o que o marroquino falava.
Ela olha para mim agora, e seu rosto irradia cordialidade.
São muito limpas e seguras – digo –, em comparação a outros lugares. – Não conto a ela sobre esses outros lugares, e certamente não conto sobre os camundongos e as baratas em nosso quarto. Temo parecer ingratidão.
Ela não faz muitas perguntas, mas explica que logo seremos entrevistados por um agente da imigração. Empurra os óculos para o alto do nariz e me garante, num tom suave e preciso, que assim que recebermos a documentação probatória do nosso pedido de asilo, Afra poderá consultar um médico sobre a dor em seus olhos. Ela olha para Afra e noto que as mãos de Lucy Fisher estão entrecruzadas a sua frente exatamente da mesma maneira que minha esposa. Tem algo nisso que me parece estranho. Então, ela me passa um maço de papéis. Um pacote do Ministério do Interior: informação sobre pedido de asilo, elegibilidade, observações sobre seleção, observações sobre o processo de entrevista. Dou uma olhada e ela espera, paciente, observando-me.

Para permanecer no Reino Unido como refugiado é preciso que você não consiga viver em segurança em nenhuma parte do seu próprio país, por temer ser perseguido ali.

Nenhuma parte? – pergunto. – Vocês nos mandarão de volta para uma região diferente?
Ela franze o cenho, puxando uma mecha de cabelo, e seus lábios se cerram como se ela tivesse comido algo horroroso.
O que vocês precisam fazer agora – diz – é organizar sua história. Pensem no que vão dizer ao agente de imigração. Prestem atenção para que tudo seja claro, coerente e tão objetivo quanto possível.
Mas vocês mandarão a gente de volta para a Turquia ou a Grécia? O que significa perseguição para vocês? – Digo isto mais alto do que pretendia, e meu braço começa a latejar. Esfrego a linha grossa da carne rígida, lembrando-me do gume da faca, e o rosto de Lucy Fisher fica borrado, minhas mãos tremem. Desabotoo o botão de cima da minha camisa. Tento manter as mãos quietas.
Está quente aqui? – pergunto.
Ela diz algo que não consigo escutar, só vejo que seus lábios se movem. Agora, ela está se levantando, e posso sentir Afra se mexendo na cadeira ao meu lado. Há o som de água correndo. Um rio fluindo. Mas vejo uma centelha, como a borda de uma faca muito afiada. A mão de Lucy Fisher girando a torneira, caminhando até mim, colocando o copo em minhas mãos, e erguendo-o até o meu rosto, como se eu fosse uma criança. Bebo a água, toda ela, e Lucy Fisher senta-se. Agora, posso vê-la claramente, e ela parece amedrontada. Afra coloca a mão na minha perna.
O céu estala. Está chovendo. Chuva torrencial. Pior ainda do que Leros, onde a terra estava saturada de chuva e mar. Percebo que ela falou, escuto sua voz em meio à chuva, escuto a palavra inimigo, e ela me encara de cenho franzido, seu rosto branco parece afogueado.
Como é? – pergunto.
Eu disse que estamos aqui para ajudar tanto quanto possível.
Escutei a palavra inimigo – digo.
Ela joga os ombros para trás e aperta os lábios, olha novamente para Afra, e na centelha de raiva que acende seu rosto e seus olhos, entendo sobre o que o marroquino estava falando. Mas não é comigo que ela está zangada; ela não pode realmente me ver.
Eu só disse que não sou sua inimiga. – Agora, seu tom de voz é o de quem se desculpa, ela não deveria ter dito aquilo, escapou, está sob pressão, noto isso pela maneira com que puxa sua mecha de cabelo. Mas as palavras ainda ressoam no cômodo, mesmo enquanto ela junta suas coisas, mesmo enquanto fala com Afra, que agora balança a cabeça muito de leve para ela, ao menos para reconhecer sua presença.
Espero que esteja bem, sr. Ibrahim – ela diz ao sair.
Seria bom se eu soubesse quem era meu inimigo.

Mais tarde, saio para o jardim cimentado e me sento na cadeira sob a árvore. Lembro-me das abelhas zumbindo, do som de paz, quase consigo sentir o cheiro do mel, flores de limoeiro e anis, mas isto é, repentinamente, substituído pelo cheiro oco de cinzas.
Há um zumbido. Não um som coletivo, como o de milhares de abelhas nos apiários, mas um único zumbido. No chão, junto aos meus pés, há uma abelha. Olhando de perto, vejo que ela não possui asas. Estendo a mão, e ela sobe no meu dedo, indo até a palma; uma mamangaba, roliça e peluda, pelagem muito macia, com largas faixas de amarelo e preto e uma longa língua enfiada debaixo do corpo. Agora, ela caminha nas costas do meu pulso, então a levo para dentro, e me sento na poltrona, observando-a enquanto ela se aninha na minha mão, preparando-se para dormir. Na sala de visitas, a proprietária nos traz chá com leite. Esta noite, está movimentado aqui. A maioria das mulheres foi para a cama, menos uma, que fala baixinho com um homem a seu lado, em farsi. Pelo jeito como ela usa seu hijab solto sobre o cabelo, sei que, provavelmente, é do Afeganistão.
O marroquino sorve o chá como se fosse a melhor coisa que ele já provou. Estala os lábios após cada gole. Ocasionalmente, verifica seu celular, depois fecha seu livro e tamborila nele com a palma da mão, como se fosse a cabeça de uma criança.
O que é isso na sua mão? – ele pergunta.
Estendo a mão para que ele possa ver a abelha.
Ela não tem asas – digo. – Desconfio que tem o vírus da asa deformada.
Sabe – ele diz –, no Marrocos existe uma estrada do mel. Vêm pessoas do mundo todo para experimentar o nosso mel. Em Agadir, temos cachoeiras e montanhas cheias de flores que atraem pessoas e abelhas. Eu me pergunto como são essas abelhas britânicas. – Ele se inclina mais para perto, para dar uma olhada melhor, ergue a mão como se estivesse prestes a acariciá-la com o dedo, como se ela fosse um cachorro minúsculo, mas muda de ideia. – Ela ferroa? – pergunta.
É possível.
Ele leva a mão para a segurança do seu colo. – O que você vai fazer com ela?
Não posso fazer grande coisa. Vou levá-la de volta lá para fora. Deste jeito, ela não vai viver muito. Foi banida da colônia por não ter asas.
Ele olha para o pátio, através das portas de vidro. Trata-se de um pequeno quadrado cimentado, com lajotas e uma cerejeira no meio.
Eu me levanto e encosto o rosto no vidro. São nove horas e o sol está se pondo. A cerejeira é alta e negra, contra o céu em brasa.
Agora tem sol, mas em três minutos vai chover – digo. – As abelhas não saem na chuva. Elas jamais saem na chuva, e aqui chove setenta por cento do tempo.
Acho que as abelhas inglesas são diferentes – ele diz. Quando me viro para ele, está novamente sorrindo. Não gosto que ele me ache divertido.
Há um banheiro no andar de baixo, e um dos homens foi ocupar o vaso sanitário. Seu jorro no vaso soa como uma cachoeira.
Maldito estrangeiro – diz o marroquino, levantando-se para ir para a cama. – Ninguém urina em pé. Sente-se!
Saio para o pátio e coloco a abelha na flor de uma urze junto à cerca.
No canto da sala há um computador com acesso à internet. Sento-me à mesa para ver se Mustafá me mandou outra mensagem. Ele deixou a Síria antes de mim, e andamos trocando mensagens ao longo de nossas viagens. Está à minha espera no norte da Inglaterra, em Yorkshire. Lembro-me de como suas palavras me mantiveram em movimento. Onde há abelhas há flores, e onde há flores há vida nova e esperança. Vim para cá por causa de Mustafá. Ele é o motivo de Afra e eu continuarmos em frente até chegarmos ao Reino Unido. Mas agora só consigo ficar com o olhar fixo no reflexo do meu rosto na tela. Não quero que Mustafá saiba o que me tornei. Estamos finalmente no mesmo país, mas se nos encontrarmos, ele verá um homem destruído. Não acredito que me reconhecerá. Dou as costas para a tela.
Espero ali até que a sala se esvazie, até que todos os moradores com suas línguas estrangeiras e maneiras estrangeiras tenham saído, e o único som seja o do trânsito à distância. Imagino uma colmeia fervilhando de abelhas amarelas, e que quando elas saem, vão direto para o céu e para longe, à procura de flores. Tento visualizar a região além, as estradas, as luzes da rua e o mar.
A luz do sensor acende-se repentinamente no jardim. De onde estou sentado na poltrona, de frente para as portas, posso ver uma sombra, uma coisa pequena e escura, passando rápido pelo pátio. Parece ser uma raposa. Levanto-me para dar uma olhada, e a luz se apaga. Encosto o rosto no vidro, mas a coisa é maior do que uma raposa e está em pé. Ela se move e a luz torna a se acender. É um menino com as costas viradas para mim. Por um buraco na cerca, ele olha o outro jardim. Bato com força no vidro, mas ele não se vira. Procuro a chave e encontro-a pendurada em um prego atrás da cortina. Quando me aproximo, o menino se vira de frente para mim, como se estivesse a minha espera, olhando-me com aqueles olhos negros que pedem respostas para todas as questões do mundo.
Mohammed – digo baixinho, para não assustá-lo.
Tio Nuri – ele diz –, veja aquele jardim, tem muito verde ali!
Ele sai de lado para que eu possa dar uma olhada. Está tão escuro que não consigo ver nenhum verde, apenas as sombras suaves de arbustos e árvores.
Como foi que você me achou? – pergunto, mas ele não responde. Sinto que preciso ser cauteloso. – Você quer entrar? – Mas ele se senta no cimento, pernas cruzadas, e volta a espiar pelo buraco. Sento-me ao seu lado.
Tem um litoral aqui – ele diz.
Eu sei.
Não gosto do mar – ele diz.
Eu sei. Eu me lembro.
Ele está segurando alguma coisa na mão. É branca e posso sentir o cheiro de limões, mas aqui não tem limões.
O que é isso? – pergunto.
Uma flor.
Onde você a conseguiu?
Abro a mão e ele a coloca na minha palma. Diz que a colheu no limoeiro em Alepo.
[…]

Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas

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