terça-feira, 7 de março de 2023

Cartas para minha avó

Sabe, vó, apesar de dizer que jamais me casaria, vivi uma busca romântica pelo amor. Como fui preterida na escola, sonhava com o dia em que seria desejada como minhas colegas. Na maioria das vezes, eu era aquela que fazia a ponte entre o menino e uma amiga minha. “Agita ela aí pra mim”, era o que eu mais ouvia dos meninos, brancos e negros.
Eu era aquela que sempre “segurava vela”. Quando adolescente, a moda era fazer o baile da vassoura, festas em que se tirava uma pessoa para dançar ao entregar uma vassoura ao par com quem ela estava dançando. Nunca ninguém me tirou para dançar nesses bailes. O máximo que acontecia era eu sobrar com a vassoura. Sabendo disso, minha mãe organizou alguns bailes na nossa pequena sala com os amigos do bairro — e eu tinha que dançar sob a vigilância rígida da dona Erani — e nosso apartamento virou uma espécie de point. A maioria dos meus colegas adorava minha mãe e gostava de ficar em casa durante o dia. Dormir, só quem fosse bem próximo.
Eu dei o meu primeiro beijo quando tinha dezesseis anos. Minha mãe passou a autorizar que Dara, minha prima e eu fôssemos à praia sozinhas sem a vigilância dos meus irmãos. Eu era obediente quanto a ficar ou não com rapazes, mas naquele dia resolvi quebrar a regra. Estava no mar quando um jovem se aproximou e começou a conversar comigo. Eu me lembro que ele disse se chamar Júnior e que morava em um bairro próximo ao meu; era alto, deveria ter uns dezoito anos e seu hálito cheirava a cerveja. Um rapaz bonito, de cabelos cacheados, negro claro — para o meu rápido julgamento de quinze minutos, pareceu legal.
Conversa vai, conversa vem, decidi que era hora de dar o primeiro beijo, ter alguma história pra contar. Minha prima, mais velha do que eu, sempre falava de suas aventuras. Beijei, então, o rapaz. Não sei se foi minha falta de experiência, mas o beijo simplesmente não encaixou, foi bem ruim. Não houve delicadeza, o menino enfiou a língua na minha boca sem saber direito o que estava fazendo e, para completar, ele tentou abaixar o top do meu biquíni mais de uma vez. Precisei ser taxativa quanto a não querer aquilo. “Do que você tem medo?”, ele perguntou. “Não tenho medo de nada, só não quero”, respondi.
Quando cansei daquilo, falei que precisava ir embora, inventei alguma desculpa sobre meus irmãos estarem chegando, saí do mar e me deparei com irmã e prima boquiabertas. Elas estavam surpresas porque eu sempre fui a “certinha” e até tentaram colocar a situação como inapropriada — mas eu sabia das experiências delas e a história parou por ali. Ao chegar em casa fui acometida por um sentimento de culpa por estar escondendo algo da minha mãe — mas eu não podia contar.
Nunca mais vi aquele rapaz, nem quis manter contato. Meses depois, tive uma segunda experiência. Um amigo do meu irmão queria “agitar” um amigo dele pra mim. Aquela foi a primeira vez que isso aconteceu. Lembro bem da situação, combinamos de nos encontrar no calçadão da praia do Embaré para passear e eu conhecer o menino. Ele devia ter a mesma idade que eu, dezesseis anos, e se chamava Allan. Enquanto conversávamos, andando pelo calçadão, tudo correu bem — até o garoto avançar pra cima de mim. Enquanto me beijava, ficava levantando meu vestido, passando a mão no meu corpo. Ao mesmo tempo, eu tentava desviar das mãos dele e puxava meu vestido pra baixo. Lembro de ficar naquela situação por alguns minutos até dar a desculpa de que precisava voltar. Foi muito ruim, não gostei nada. Os que nos esperavam comemoraram, e Allan pediu para me ver uma próxima vez. Eu ainda não entendia que aquilo havia sido violento, só sabia que não tinha gostado. E não queria repetir.
Eu não sei como você e minha mãe conversaram sobre sexo, vó, se houve espaço e tempo pra isso. Acredito que não. Vocês duas sempre diziam que o exemplo ensina, e eu concordo. Os olhares cúmplices de vocês moldaram muito do que eu sou, mas ter visto a infelicidade da minha mãe, também. Eu não queria repetir os mesmos erros, queria ter a chance de fazer minhas próprias escolhas.
Lembro quando minha mãe me levou à ginecologista pela primeira vez. Eu tinha dezesseis anos e fomos ao postinho de saúde do bairro. Enquanto eu aguardava a consulta, a recepcionista me perguntou, rindo: “Está de quantos meses?”. Dona Erani, claro, ficou brava com a pergunta da mulher. Na época eu não havia entendido, mas hoje vejo o quanto a mulher foi preconceituosa. Eu era virgem, ainda não tinha dado o primeiro beijo, só estava ali porque havia começado a menstruar só um ano antes e minha mãe queria saber se estava tudo bem. A médica ficou surpresa quando eu disse que era virgem, mesmo assim recomendou que eu tomasse pílulas anticoncepcionais — o que soou como ofensa pra minha mãe, uma vez que ela acreditava que eu e minha irmã deveríamos casar virgens. Tudo era rodeado de muito tabu.
Esse ciclo eu rompi. Educo Thulane para se conhecer, não ter vergonha do corpo. Consegui tirar o peso do não dito, da vergonha em falar sobre menstruação. Conversamos sobre sexo, sem tabus. Ao mesmo tempo, a educo para não acreditar que liberdade sexual é só dizer sim. Também é sobre dizer não, se respeitar, não acreditar que é careta porque nunca namorou. São dois extremos muito perigosos que tentamos evitar. Uma coisa nós ainda temos de você: a força dos olhares cúmplices.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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